A campanha eleitoral raiz de todos os males
Estamos novamente em época de eleições. A campanha
já está nas ruas e na televisão. Entre os candidatos a prefeito e vereador
estão muitos evangélicos, talvez mais numerosos do que nunca. Algumas
denominações estão fazendo um esforço coordenado para marcar presença na
política municipal e vários deputados evangélicos querem governar as suas
cidades. Entre a indiferença e o entusiasmo, o eleitorado evangélico se prepara
para votar.
O ceticismo toma conta de muitos. Afinal, a
performance dos políticos evangélicos em geral tem deixado a desejar nos
últimos quinze anos. Embora as análises desses evangélicos pessimistas
divirjam, estão de acordo que não há remédio: qualquer nova leva de políticos
evangélicos padecerá dos mesmos defeitos ou de outros igualmente nocivos.
Mas outros evangélicos ainda são otimistas. Alguns
porque negam as críticas comumente feitas à classe política evangélica, outros
porque estão sempre na busca de uma fórmula que supere as limitações constatadas,
seja por meio de um corporativismo mais eficiente, seja pelo surgimento de um
“messias” político evangélico.
Em recente viagem (estou virando o Mineiro com Cara
de Matuto!), fiz uma conferência para um grupo de evangélicos de vários países
do Terceiro Mundo. Um africano, creio que do Quênia, fez um questionamento que
poderia ter vindo de um brasileiro. Ele disse:
Um evangélico entra na política porque
é uma pessoa de muitos dons e os outros acham que ele poderá
ser a solução para os problemas da nação. E quando já está
lá, ele perde completamente o contato com seu ministério anterior e a
igreja o deixa pairando no ar. Ele perde a direção, pelo menos com relação à visão
que tinha quando começou. Da mesma forma, pergunto até que ponto o dom
carismático entra nisso, porque muitas vezes quem tem mais dons é o mais
anti-democrático. Ele acha que ninguém mais pode tomar o seu lugar, e o povo
diz que ‘ele é o nosso homem’, até que surja outra pessoa e ocorra uma divisão.
A pergunta toca em duas feridas abertas da nossa
comunidade evangélica, tanto aqui como (pelo que parece) em outros países: os
políticos que decepcionam (culpa deles? culpa da igreja?) e os líderes
personalistas anti-democráticos dentro da própria igreja, um modelo freqüentemente
transferido para a política. A minha resposta na ocasião, agora um pouco
recheada, foi a seguinte:
Este é um exemplo da transferência de práticas do
campo religioso para o campo político. Se temos na igreja este modelo de líder
messiânico que pensa possuir todos os dons carismáticos em si mesmo (ao
contrário do modelo neotestamentário que diz que todos os cristãos têm dons mas
ninguém tem todos os dons, e por isso precisamos viver e presidir em
comunidade), existe a tendência de transferir o modelo para a nossa ação
política também.
Por que o cristão que entra na política tantas
vezes “dá errado” depois? Claro que pode haver um problema individual: alguns
candidatos são totalmente despreparados. Mas não devemos pensar essa questão em termos
de falhas individuais. Há limitações da
igreja que se revelam aqui. Na vida pública, as falhas da igreja se tornam
muito mais visíveis. Elas sempre existiram, mas eram mais privadas e quase
ninguém reparava. A gente não “deu errado” de repente porque entrou na
política. Sempre tivemos esses problemas mas não os enxergávamos. Isso porque
trata-se de uma questão de poder. Quanto mais poder existe em uma situação,
mais graves parecem ser os erros. Mas as tendências sempre existiram. A
situação de poder apenas revela a verdade que não víamos antes.
Precisamos pensar essas questões em termos de
modelos. Não é só questão de preparo individual (habilidades e virtudes),
embora estas também sejam importantes. Um modelo comum no Brasil é a
candidatura auto-impelida. Um indivíduo se considera possuidor de dons ou então
se sente vocacionado. Talvez tenha tido uma revelação, uma visão, um sonho...
Aliás, a respeito disso, se você teve uma revelação para se envolver na
política, se envolva. Mas não fale da sua revelação para ninguém, não a utilize
como arma para constranger outros a apoiar você! Já houve vários exemplos na
América Latina de evangélicos candidatos a presidente dizendo que tinham uma
revelação... E aí, quando não ganhavam, tinham de explicar o porquê.
Mesmo em casos nos quais o candidato não reivindica
uma revelação,
o desejo de se envolver é muitas vezes auto-impelido, auto-gerado. Então,
a pessoa se deixa exposta, porque entra em situações nas quais o poder está
muito mais presente, e não sabe como lidar com isso.
O segundo modelo, igualmente problemático, é o
modelo corporativista, no qual a igreja como instituição (ou pelo menos o
grande líder carismático) se mobiliza e diz: “vamos nos envolver na política,
vamos ter candidatos”. Isso traz enormes problemas. A política é reduzida a um
corporativismo, a um meio de conseguir coisas para a igreja como instituição.
Parece que por trás disso há uma idéia de que a sociedade nos deve pagar um
tipo de imposto porque nós temos a verdade, temos o direito de ser ajudados.
Esse é um estranho conceito de missão, que é muito relacionado com a corrupção,
o fisiologismo e o oportunismo, porque você precisa conseguir recursos estando
próximo do governo ou de interesses poderosos.
Estes dois modelos, o auto-gerado e o
institucional, são muito dúbios. Precisamos de um terceiro modelo, um modelo
comunitário, que não é individualista nem corporativista. O envolvimento deve
ser como parte de um grupo, mas um grupo (quer seja somente de evangélicos quer
seja também de não-evangélicos) constituído para fins políticos e
sem interesses institucionais para defender. Isso dá um elemento de
responsabilidade, de accountability
(prestação de contas), de transparência. Dá também um elemento de
responsabilidade ideológica, de que você está envolvido com um certo projeto
político, uma certa visão do que significa ser cristão na política, e que você
será responsável perante aquela visão ideológica. Já existe no Brasil o MEP
(Movimento Evangélico Progressista). Eu gostaria que existisse também um MEC
(Movimento Evangélico de Centro) e um MED (Movimento Evangélico de Direita)!
Gostaria de ver movimentos evangélicos do mesmo tipo do MEP, ao longo do
espectro político, com propostas diferentes e concorrendo pelo voto evangélico,
mas de maneira legítima e séria, procurando educar e conscientizar o povo
evangélico a votar e se envolver com consciência. Isso seria um sinal de
maturidade democrática. Seria possível ter debates acalorados mas sérios e
respeitosos. Infelizmente, isso não existe. É impossível ter um debate sério
sobre evangélicos e política porque as pessoas envolvidas nos outros
dois modelos fogem dos debates. Por isso, precisamos incentivar esse modelo comunitário de engajamento político
evangélico, para evitar os males do isolacionismo e do institucionalismo.
Então, o estilo do mandato pode ser em grande parte
previsto pelo modelo da candidatura e pela natureza da campanha. O estilo de
campanha determina o mandato. Os acordos feitos com lideranças evangélicas, o
tipo de apelo feito ao eleitorado evangélico, as ingenuidades alimentadas entre
o eleitorado, a relação construída na campanha em termos de expectativas
levantadas e de “dívidas” (literais e figuradas) contraídas — tudo isso
determinará o mandato. O candidato que se “endividou” na campanha de formas
inconciliáveis com a democracia, ou com a justiça social, ou com a diferença
entre moralidade e legislação (nem todas as partes da moral cristã devem ser
matéria de legislação), ou com a correta separação entre igrejas e Estado, com
certeza “decepcionará” durante seu mandato. Mas isso deve ser surpresa somente
para os ingênuos. O privilegiamento institucional será um presente de grego
para as igrejas, criando dependências, incentivando hipócritas, amarrando a boca
profética. O candidato precisa educar os
ingênuos e frear os sedentos de poder
e de benesses.
O âmago de tudo isso é a grande questão ausente dos
nossos debates teológicos: o poder. Tanto o personalismo individualista como o
institucionalismo corporativista sofrem de uma doutrina fraca do pecado. Alias,
nós evangélicos, ironicamente, muitas vezes temos um conceito fraco do pecado!
Não temos a doutrina protestante clássica de desconfiança no ser humano —
qualquer ser humano, mesmo que seja um cristão sério, convertido, batizado no
Espírito Santo; ou mesmo vários deles reunidos na cúpula de uma denominação. A
doutrina clássica de que os pecadores precisam se controlar mutuamente num
sistema de mútua prestação de contas é substituída por uma esperança “messiânica”
num grande líder político evangélico ou pela fé numa “vanguarda” de líderes
evangélicos com um direito divino de governar. Os partidos comunistas antigamente tinham essa
idéia da “vanguarda”. Os líderes iluminados do partido tinham a capacidade de
interpretar infalivelmente os acontecimentos históricos e, portanto, o direito
de guiar o povo. As vanguardas marxistas desmoronaram, mas vanguardas
evangélicas estão surgindo. Devemos desconfiar de todas elas. Não se pode
confiar tanto em ninguém, por mais
consagrado que pareça, por mais unção do Espírito diga ter, por mais que
reivindique governar ou legislar em nome de Deus. Nada substitui sistemas de
prestação mútua de contas, de transparência e participação democrática. A
democracia também não garante nada, mas é o sistema menos ruim, menos perigoso, porque mais próximo da visão bíblica do
ser humano.
A teologia protestante clássica frisa que as
relações de poder são inevitáveis (fazem parte do tecido da vida humana), mas
sempre perigosas. O nosso meio evangélico, por outro lado, tende a enfatizar
apenas um dos lados dessa ambivalência, de acordo com a nossa situação social.
Quando impotentes, frisamos o perigo do poder e a necessidade de evitá-lo
totalmente (“crente não se mete em política”). Mas quando o poder se abre para
nós, imaginamos a possibilidade de exercê-lo sem ambigüidade, em nome do “povo
de Deus”. Não conseguimos equilibrar os dois lados da equação.
Se alguém me pergunta se confio em algum político
evangélico (seja Garotinho, Benedita, Iris Rezende, Bispo Rodrigues ou qualquer
outro), respondo que não. E o chocante não é essa minha resposta, mas o fato de
que muitos evangélicos acham quase uma heresia dizer isso. Mas, biblicamente,
não devemos confiar nos príncipes, mesmo que sejam evangélicos e tenhamos
ajudado a colocá-los no poder! É por termos uma doutrina superficial do pecado
que nos damos mal politicamente e criamos
ídolos evangélicos que
depois nos desapontam.
AUTOR DESCONHECIDO
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