A CONCEPÇÃO
AMBROSIANA DA IGREJA COMO ESCOLA
1. A visão ambrosiana da educação e da Igreja
Visamos, nesse ponto, indicar
as marcas essenciais da educação na visão ambrosiana e o papel da Igreja
enquanto sua transmissora.
1.1. A
educação segundo Ambrósio
Indicando
as principais características da educação na concepção de Ambrósio, devemos
referir-nos a duas matrizes educacionais, isto é, aquela bíblica e a pagã. Elas
contribuíram, significativamente, com seus ideais, à formação da visão
ambrosiana acerca da educação, só que, precisa-se dizer logo, não se pode
tratá-las como fatores iguais, mas, antes, opostos. A concepção pagã da
educação, de fato, marca presença no pensamento de Ambrósio como um contributo
negativo que, via oppositionis, lhe
ajuda a cristalizar uma concepção bem diferente que se baseia, essencialmente,
na Bíblia.
Assim,
apoiando-se nos ideais apresentados no Antigo e no Novo Testamento, Ambrósio,
além de incluir no âmbito de seu interesse educacional as dimensões naturais da
existência do homem, põe em relevo, sobretudo, aquelas sobrenaturais, o que não
foi priorizado pela cultura clássica. Trata-se, aqui, de realizar um processo
que ajuda o homem a se relacionar, de modo familiar, com Deus mesmo, isto é, de
rendê-lo, pela santificação, semelhante ao Ser Absoluto1 . A
educação, pois, colocando o homem nessa nova dimensão que corresponde à visão
bíblica, recebe assim nova orientação de sentido em relação ao que preconizava
o ideal helenístico-romano.
Devemos
ter presente, naturalmente, que a realização desse objetivo da educação cristã
não pode ser separada do fenômeno de fé. Essa é o pressuposto necessário no
processo edu-cativo e só com base nela se abre um caminho para uma educação e
para uma formação, cujo critério fundamental para determinar os conteúdos e a
prática pedagógica é que estes levem o homem a crescer na união com Deus, ou,
mais especificamente, com Cristo2 .
Isso
significa que a educação não prepara o homem para o ato de fé: esta não pode
ser o fruto dos empreendimentos educativos. O ato da fé entra na dimensão muito
sugestiva, é fruto da livre decisão humana e brota da experiência muito pessoal
com o divino3 . O processo educativo, pois, vem como uma coisa
posterior ao livre ato da fé: é, como conseqüência, na e não para a fé.
Sendo
assim, podemos dizer que a educação, na visão de Ambrósio, consiste no
aprofundamento do encontro primitivo e das relações entre o homem e Deus, o que
se efetua numa progressiva conscientização e sensibilização dos fiéis à obra
salvífica de Deus para torná-los mais capazes em perceber, assimilar e
responder, sujeitando-se continuamente à realidade criadora e redentora
divinas, com a própria vida a esse agir divino4 . A educação, pois, pode ser
considerada como processo que prepara o homem para uma sempre mais intensiva
experiência do Ser Divino.
Essa
teocêntrica direção da educação não vislumbra, porém, os seus interesses para
com o homem; aliás, seu teocentrismo inclui perfeitamente o aspecto
antropológico, no sentido de que é muito claro, para Ambrósio, que somente em
Deus o homem pode alcançar a plenitude da sua existência. Nesse caso, a
educação pode ser vista como um meio que, antes de tudo, faz o homem descobrir
a si mesmo, isto é, sua individualidade, a qual, enquanto portadora da imagem
divina, testemunha a conexão ôntica entre ele e o Ser Divino5 . Educar
significa direcionar o homem a Deus e criar-lhe a possibilidade de desenvolver
uma existência completa e total, quer dizer, aquela que consiste no
aperfeiçoamento de todas as faculdades e as capacidades correspondentes à sua
verdadeira essência.
Tendo
esses escopos, a educação, como conseqüência, visa tirar todos os obstáculos
que dificultam a união entre o homem e Deus, libertando, o primeiro, de suas
imperfeições. Essa função da libertação, concebida de modo ético, consiste
tanto em demonstrar ao homem de que, quando ele peca, cai na escravidão, no
poder das forças contrárias a Deus e Dele se separa, quanto em ajudá-lo a
superar, oferecendo os devidos meios, o seu estado de limitação para alcançar a
liberdade e a perfeição do Ser Divino6 .
Quando
Ambrósio fala da união entre o fiel e Deus, ele sublinha, ainda, que dessa
união brotam frutos tanto na vida terrena do homem, quanto naquela
ultraterrestre. Em ambos os casos trata-se da felicidade e do amadurecimento
pessoal, vistos, durante a existência terrena, como germes da felicidade e do
amadurecimento no eon escático,
quando o homem alcança a perfeição em suas três principais dimensões: ôntica,
cognitiva e volitiva. Sendo assim, a educação é esse meio que conduz o homem a
tal desenvolvimento, que lhe possibilita tornar-se pessoa que, em virtude da
Criação e da Redenção, deve ser, isto
é, a pessoa santa e semelhante a Deus; porque, somente desse modo, ele pode ser
considerado digno de existir diante Dele tanto na vida presente, bem como na
eternidade7 .
1.2. A Igreja
como escola
Tendo
presente a essência da educação na visão de Ambrósio, devemos indicar, agora, o
papel da Igreja relacionado com o processo educativo. O pensamento de Ambrósio
se caracteriza por uma forte exclusividade, no sentido de que a Igreja não é
considerada uma das instituições onde se realiza a educação, mas como a única
instituição.
Confluem
para essa idéia ao menos dois fatores: o primeiro é a convicção que Ambrósio
tem de que a Igreja foi convocada à existência por Deus, que continua presente
nela: como a Igreja brotou da Palavra divina, assim, também, o projeto
educativo tem Nela a sua origem. A educação, pois, na Igreja não se desenvolve
por um estabelecimento humano, mas divino, e tem suas garantias na pessoa de
Deus8. O segundo fator põe em relevo a conexão intrínseca entre o fenômeno da
fé, da Igreja e da educação: só as pessoas que acreditam na Palavra de Cristo
constituem a Igreja9 , o que significa que lá, onde existe a Igreja, lá,
também, se realiza, necessariamente, em todo o fiel, o processo educativo,
enquanto assumido na livre decisão.
Esses
fatores fazem com que a Igreja possa ser, de fato, considerada o único lugar
onde se abre o espaço para o homem realizar a adesão a Deus e aperfeiçoar a sua
existência. É nela onde Cristo apresenta seu projeto educativo e fornece os
meios para atuá-lo: na Igreja, pois, por intermédio do Espírito Santo10 , se
proclama, na liturgia, a Palavra divina, se propaga, durante a instrução
catequética, a doutrina dogmática e moral, se celebram os sacramentos, se
realiza o caminho de virtude e se faz a experiência da oração.
Considerando
o fato de que todos esses meios são de autoria divina, resulta, em
conseqüência, que a Igreja, enquanto seu elemento humano, permanece sempre
discípula. Ela é escola, antes de
tudo, só se é vista como grupo de pessoas que, motivadas pela fé, aceitam o
projeto de Cristo e fazem Dele o seu único Mestre11 .
Só
no seu elemento divino a Igreja é sujeito ou agente da educação: ela cumpre seu
papel educador quando, por meio dos autorizados representantes, transmite e
promove a Palavra salvífica do único Mestre. Nesse modo, a Igreja tem razão de
sua existência como escola só
enquanto relacionada estritamente com a Escritura e em plena dependência desta.
E
é fácil, de fato, notar a fidelidade de Ambrósio, ao idear a visão da Igreja
como escola, aos dados bíblicos. Ele
a elabora quase exclusivamente à base da Escritura e é ela que forma o pano de
fundo de cada elemento de sua concepção.
Isso
se percebe já no esforço que Ambrósio faz para demonstrar que a Igreja promove
o projeto educativo somente aos moldes evangélicos. Assim, como Jesus educava
os discípulos para que eles aderissem ao seu projeto e seguissem o seu
destino12 , a função educadora da Igreja consiste em fazer o homem percorrer o
caminho que Cristo percorreu e participar dos mesmos acontecimentos13 . Por
isso, também, em cada elemento do processo educativo se espelham os atos e as palavras
de Jesus: como os mistérios sacramentários, a prática de virtude e a oração
marcavam a vida de Jesus, que terminou com a morte, ressurreição e ascensão
para realizar a união com Deus, assim, também, a Igreja apresenta ao homem os
mesmos meios para alcançar a mesma meta14 .
Esse
formalismo bíblico está confirmado, ainda, por vários outros aspectos da
dimensão educacional da Igreja. Constatamos, de fato, que os conceitos e as
categorias que pertencem ao campo semântico do vocabulário escolar e educacional
como os termos referentes seja às pessoas que desenvolvem a ação educadora na
Igreja (magister, doctor), seja às
que se submetem ao processo educativo (discipulus),
seja à matéria a ser ensinada (doctrina,
disciplina), seja à atividade docente (docere)
e à de aprendizagem (discere), seja o
termo central da paidéia greco-romana, a virtus,
todos eles são de proveniência e de caráter eminentemente bíblico ou
fundamentados na Escritura. Da Bíblia e à sua luz, também, Ambrósio tira e
interpreta não só a doutrina de cunho moral e dogmático15 ou todos os
componentes da caminhada do discipulado16 , mas até os princípios da filosofia,
da poesia e da retórica, isto é, os componentes principais da paidéia clássica,
ele reduz à Escritura17 .
Justamente
podemos, pois, aplicar à Igreja uma fórmula que Ambrósio referiu à atividade
docente dos mestres humanos18 , e que explica perfeitamente o seu status na dimensão educacional: a Igreja
é escola secundum Scripturas, segundo
as Escrituras, isto é, ela é, na visão ambrosiana, a escola bíblica.