A Ceia
do Senhor e as Crianças
Jesus Cristo, querendo mostrar
que veio dilatar antes que limitar a misericórdia do Pai, abraça ternamente as
criancinhas a si trazidas, repreendendo os discípulos que tentavam impedi-las de
acesso, afirmando que delas é o reino dos céus (Mt 19:13-15; Mc 10:13-16; Lc
18:15-17)... As crianças estão incluídas no pacto de Deus. A ação de
recebê-las, o abraço, a imposição de
mãos e a oração de Cristo, demonstram que as crianças não apenas são dele, como
também são por ele santificadas. A expressão usada pelos evangelistas, brevfh
kai; paidiva – nenês e criancinhas (Mt 19:14; Mc 10:13; Lc 18:15), designa
literalmente criancinhas de peito. Não se fala aqui de crianças já crescidas,
portanto já aptas a vir por si mesmas. Vir, nestes textos, fala de ter
acesso. As crianças podem vir a Cristo, pois das tais é o reino dos céus.
João Calvino, Institutas da
Religião Cristã. Vol. IV., XVI.7.
Pode uma criança receber a Ceia do Senhor? A questão levanta diversos
pontos de vista dos variados grupos cristãos. O presente trabalho busca
responder a tal pergunta sob uma ótica da doutrina reformada, alinhavando o
argumento em três etapas: nosso entendimento acerca do significado da Ceia, a
situação das crianças diante de Deus e as implicações dessas duas considerações
para a participação ou não dos infantes nesse sacramento.
O Significado da Ceia do
Senhor
Os presbiterianos vêem a ceia
do Senhor não apenas como ordenança, mas também como sacramento. Existem dois sacramentos:
a Ceia e o batismo. Tais ordenanças são verdadeiramente meios de graça, ou
seja, ainda que sejam rituais simbólicos, representam uma realidade espiritual.
No caso da Ceia, os elementos não sofrem nenhuma alteração mística – o pão
continua sendo pão, e o vinho continua sendo vinho. Não obstante, o crente,
mediante a ação do Espírito Santo, é verdadeiramente nutrido espiritualmente em
sua participação. A Ceia é "um banquete espiritual, onde Cristo se atesta
ser o pão que dá vida (Jo 6:51), pelo qual são nossas almas alimentadas para a
verdadeira e bem-aventurada imortalidade [...] Com efeito, Cristo é o alimento
único de nossa alma e, por isso, a Ele nos convida o Pai Celeste, para que,
refeitos por Sua participação, colijamos vigor incessantemente, até que se haja
de ter chegado à imortalidade celestial" (Calvino, 1989, p. 339).
Essa participação de Cristo
pressupõe salvação. A Ceia é um dos sinais da inclusão do cristão na realidade
salvífica estabelecida pelo pacto da graça. O comer o pão e o beber do cálice
têm um caráter de anúncio da morte do Senhor, até que ele venha (1Co 11:26).
Para anunciar algo, é necessário que possuamos capacidade de articulação, de
raciocínio consciente acerca daquilo que anunciamos. E para anunciar a morte do
Senhor precisamos de algo mais: o entendimento, não apenas teórico, mas também,
e principalmente, experimental, das conseqüências purificadoras, regeneradoras
e redentoras dessa morte para nós. Faz-se mister experimentarmos a morte de
Cristo e sua ressurreição (implícita na expressão "até que ele venha"
– ele voltará por que ressuscitou!) de tal modo que o Senhor seja para nós
"sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção" (1Co 1:30).
A Ceia é também um memorial:
"fazei isto em memória de mim" (1Co 11:24, 25). Na Ceia toda a Igreja
reflete mais profundamente acerca da pessoa e obra do Filho encarnado que,
"por Sua descida à terra, nos aplanou a ascensão ao céu. Pois, tomada a
nossa mortalidade, conferiu-nos sua imortalidade; assumida a nossa fraqueza,
confirmou-nos em Seu poder; recebida em si a nossa pobreza, transferiu-nos a
Sua opulência; assumindo a nossa injustiça, revestiu-nos de sua justiça"
(Calvino, 1989, p. 340).
Consideremos o aspecto de
querigma escatológico. Trata-se de um anúncio de sua morte "até que ele
venha". Encontramos aqui algo extremamente positivo. A comunidade que
prova a Ceia é a comunidade dos "últimos dias" (At 2:17), dos fiéis
que amam ao Senhor e suspiram continuamente "maranata!" (1Co 16:22).
A Ceia cristã não é um ritual fúnebre, mas o anúncio de um vencedor que
retornará com poder e muita glória (Mt 24:30).
Por último, a Ceia é também um
sinal de nossa participação no Corpo de Cristo que é a sua comunidade de fiéis.
O vinho é símbolo da "nova aliança no meu sangue" (Lc 22:20; 1Co 11:25).
Uma das conseqüências da queda do homem foi a ruptura de suas estruturas
relacionais. Enganado e subjugado por Satanás, o ser humano desconsidera o
próximo e o irmão: "Acaso sou eu tutor de meu irmão?" (Gn 4:9). Essa
atitude caínica é a expressão do homem enquanto ser sem Cristo, dominado pelo
egocentrismo e indiferença. Daí seus relacionamentos funcionais, seu vazio
interior e sua solidão crônica.
A aliança no sangue de Cristo
promove a restauração de nossa capacidade relacional, a abertura da possibilidade
de comunhão entre eu e o "meu irmão", e o estabelecimento de um novo
vínculo comunitário. A reunião da Ceia é a reunião da família em torno da mesa,
partindo o pão e compartilhando de união e intimidade. As pessoas reunidas para
essa refeição são diferentes uma das outras. Expressam diversidade, mas estão
ligadas na unidade produzida pelo Espírito mediante o sangue da aliança,
derramado em favor delas. São indivíduos que entenderam o alto preço que custou
a sua redenção e união em um corpo. Captaram o sentido profundo do ensino do
apóstolo:
Mas, agora, em Cristo Jesus , vós,
que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo. Porque ele
é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e tendo derrubado a parede de separação
que estava no meio, a inimizade, aboliu na sua carne a lei dos mandamentos na
forma de ordenanças, para que dos dois criasse em si mesmo um novo homem,
fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da
cruz, destruindo por ela a inimizade. E vindo, evangelizou paz a vós outros que
estáveis longe, e paz também aos que estavam perto; porque, por ele, ambos
temos acesso ao Pai, em
um Espírito. Assim , já não sois estrangeiros e peregrinos,
mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus, edificados sobre o
fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra
angular. Efésios 2:13-20.
Destarte, os discípulos do
Senhor podem cantar conscientemente:
Eu sei que foi pago um alto preço, para que contigo eu fosse
"um", meu irmão.Quando Jesus derramou sua vida Ele pensava em ti, ele
pensava em mim, pensava em nós. E nos via redimidos por seu sangue,Lutando o
bom combate do Senhor.
Lado a lado trabalhando, Sua igreja edificando, E vencendo as barreiras
pelo amor. E na força do Espírito Santo Nós proclamamos aqui Que pagaremos o
preço De sermos um só coração no Senhor. E por mais que as trevas militem E nos
tentem separar Com nossos olhos em Cristo Unidos iremos andar.
Pelo sangue de Cristo fomos
unidos num só Corpo Vivo, a comunidade dos santos que é a Igreja. Aqui fecha-se
a última dimensão da ceia: ela deve ser tomada com a plena consciência das
profundas implicações místico-espirituais-relacionais da obra completa de
Cristo em favor da Igreja. Isso é o que entendemos pela expressão "discernir
o corpo" de 1Co 11:29: "quem come e bebe sem discernir o corpo, come
e bebe a própria condenação" (Bíblia ecumênica). O comer e beber sem esse
discernimento traz conseqüências drásticas: disciplina em forma de
enfraquecimento, doença e morte (1Co 11:30). Comer e beber levianamente da Ceia é desconsiderar a profundidade de
seu significado, o que entristece ao Senhor que a concedeu para ser provada
como meio de nutrição espiritual e fortalecimento da fé e comunhão. Comer e
beber em pecado (e incluem-se aqui também os pecados relacionais – Mt 5:21-26)
é zombar dessa aliança, é pisar sobre o sangue de Cristo, considerando-o
inútil. E esse tipo de procedimento bloqueia o perdão de Deus (Hb 6:6). Daí a
necessidade do auto-exame sério, da análise conscienciosa e madura da vida
antes de tomarmos do pão e bebermos do cálice: "examine-se, pois, o homem
a si mesmo, e assim coma do pão e beba do cálice" (1Co 11:28).
Tenho visto diversos
pregadores que, bem intencionados buscam estimular os crentes a participarem da
Ceia. Isso é bom. No entanto, tenho assistido ao crescimento de um tipo de
argumento imaturo e perigoso: dizem eles que não devemos ter todo esse pudor
para a participação na Ceia. Ceia é momento de alegria, de rosto sorridente, de
louvor alegre. Não participar é um grande pecado. Todos devem participar. Isso
parece certo em primeira vista, mas reveste-se de grande perigo de
enfraquecimento, doença e morte para o povo de Deus, se este tomar o sacramento
indignamente. O auto-exame amadurecido, sério e profundo está sendo considerado
por alguns como uma coisa mórbida, e até mesmo "fora de moda",
devendo ser substituído por um leve refluxo devocional embalado por alegres
cânticos de guerra espiritual e comunhão. Aqui reside um grande perigo para a Igreja
de Cristo. Não podemos esquecer que a Ceia é um profundo símbolo de nossa união
uns com os outros e, o mais importante, de nossa união com o nosso bendito
Senhor.
A Situação das Crianças Diante
de Deus Havendo definido o significado da Ceia, chega o momento de examinar a
situação das crianças diante de Deus. As
crianças são salvas? A resposta é sim e não.
Consideramos que as crianças,
como participantes do gênero humano, nascem "em pecado" (Sl 51:5; Rm
10-18, 23). O pecado não está apenas nas ações, mas na própria estrutura
humana. Esconde-se entre as dobras do cérebro, ou seja, em nossa interioridade
mais profunda, de modo que ao cometermos desvios do padrão da lei de Deus,
estamos agindo de acordo com a lei de que "o mal reside em nós" (Rm
7:17-21). É por isso que o publicano saiu justificado do Templo, em
contraposição ao fariseu. Este enfocou seu procedimento em sua confissão.
Aquele enfocou o seu coração mau, sua natureza caída. Enquanto orava, batia no
peito, apontando para o coração, sede da vida interior, dizendo: "Tem
compaixão de mim, pecador" (Lc 18:9-14). Isto posto, concluímos que
nenhuma criança é "inocente", isenta de pecado diante de Deus. Cada
infante é, desde a sua concepção, um "rebeldezinho" que necessita de
uma operação sobrenatural da graça de Deus para a sua salvação. Cada ser
humano, independentemente de sua idade, só pode ser salvo mediante o novo
nascimento (Jo 3:5).
Em segundo lugar, existe a
clássica afirmação de Cristo: "dos pequeninos é o reino dos céus" (Mt
19:13-15). O que significam essas palavras? Isso pode ser entendido mediante o
entendimento, inicialmente, de "para quem" se dirigem tais palavras.
Precisamos considerar que o próprio Senhor Jesus afirmou em diversas ocasiões
que a salvação era uma graça de Deus concedida aos eleitos (Jo 6:39, 65, 8:47,
15:16). Portanto, Mt 19:13-15 deve ser interpretado dentro do ensino geral das
Escrituras sobre a eleição. Isso quer dizer que a expressão "das crianças
(dos pequeninos) é o reino dos céus" precisa ser entendida de modo similar
à afirmação: "Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho
Unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida
eterna" (Jo 3:16). Assim como "mundo" de Jo 3:16,
"pequeninos" de Mt 19:14 refere-se àqueles que foram incluídos no pacto
da eleição firmado nos tempos eternos. A esses é prometida a salvação.
Conforme a Escritura, a
salvação das crianças é certa, desde que as mesmas estejam ainda em idade
anterior ao chamado período da "razão", pelo menos das crianças
filhas de pais crentes, e por isso incluídas no pacto (Gn 17:7; At 2:39).
Podemos utilizar a argumentação de Calvino sobre Mt 19:13-15, de que Cristo
fala aqui não de todas as crianças indiscriminadamente, mas, especificamente,
de crianças de colo (vide citação acima). Destarte, caso um infante venha a
falecer, Deus garante para ele a salvação. De um modo que não nos é revelado na
Escritura, Deus opera neles o novo nascimento, em caráter especial, tendo em
vista que não estão aptos a atenderem ao chamado do Evangelho.
À medida que tais crianças
forem crescendo, no entanto, sobrevindo a idade em que os mesmos obtenham mais
discernimento da realidade, devem os mesmos receber a Cristo em seus corações
sob pena de condenação eterna. As crianças que ultrapassaram o período de colo
e já adentraram nas primeiras fases de aprendizado também precisam
arrepender-se e crer no Evangelho, senão não serão salvas (Mc 1:15). Por isso é
que exigimos dos pais, no ato do batismo infantil, que eles comprometam-se a
ensinar o Evangelho aos filhos. O batismo, que substituiu o rito da
circuncisão, para nós não é sinônimo de salvação, mas um selo através do qual
os filhos são incluídos de modo geral no Pacto da Graça firmado com Abraão.
Isto insere os pais na promessa de bênçãos para si mesmos e para os seus
descendentes, de modo que eles pregam o Evangelho aos filhos sabedores que
Deus, a seu tempo, fará com que germine a semente plantada (Gn 17:7, 10; At
2:39). É por isso também que valorizamos a atuação de ministérios tais quais a
APEC (Aliança Pró-Evangelização de Crianças), que evangelizam aos pequeninos.
Tal argumentação tem sua
lógica e seu peso. Mas não invalida a premissa maior: os salvos em Cristo são
os eleitos em Cristo, independentemente de sua idade. Teríamos de entender que,
as crianças que morrem antes de atingir a idade da razão são todas eleitas para
a salvação. Entramos então dentro dos mistérios dos decretos divinos, cuja
profundidade é infinita, inatingível por nosso raciocínio finito (Rm 11:33-36).
Parece mais honesto concluir que somente "o Senhor conhece os que lhe
pertencem" (2Tm 2:19). Somente Ele é quem elege e opera todos os meios
para a regeneração e novo nascimento. Isso não compete a nós perscrutar.
Implicações Para a Santa Ceia
Como, porém, verificar que uma
criança chegou a uma situação plena de salvação em Cristo? Entendemos que a
configuração da estrutura infantil, a evolução da mente e da personalidade, as
diversas fases de formação do caráter e definição dos critérios de escolha –
tudo isso aponta para um fato: É difícil atribuir a uma criança, se não a
salvação, pelo menos a consciência plena de seu conteúdo. Uma criança, mesmo
que salva, dificilmente possui maturidade emocional e intelectual para
"examinar-se a si mesma" do modo como requerem as Escrituras.
As crianças são aptas a
participar da Ceia? Salvificamente algumas estão, mas emocional e
espiritualmente ainda não estão. Por isso exigimos a profissão de fé para o
acesso à mesa do Senhor. Neste ponto somos flexíveis quanto à idade: alguns
consideram ideal recebermos como membros comungantes apenas maiores de doze ou
catorze anos. Outros preferem analisar caso-a-caso. Esse cuidado decorre de
nosso entendimento dos dados expostos acima. As crianças, em nosso entender,
são tão valiosas que não poderíamos sujeitá-las aos perigos de disciplina
advinda da má utilização deste importante meio de graça. O argumento didático,
ou seja, a alegação de que a participação na Ceia elimina a
"curiosidade" das crianças ao mesmo tempo que as ensina desde já o
significado do sacramento, não nos convence. Da mesma forma o argumento
sociológico: as crianças têm de participar da Ceia para se sentirem como parte
do Corpo (nesse caso a Ceia teria como objetivo alimentar o sentimento de
pertencimento da criança à comunidade local). Respondemos a todas essas
questões com as Escrituras. Não há na Bíblia nenhum estímulo à uma Ceia
infanto-didática, nem à uma Ceia infanto-koinônica. A assertiva bíblica é
absoluta: "Examine-se, pois, o homem a sim mesmo, e, assim, coma do pão, e
beba do cálice; pois quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juízo
para si. Eis a razão porque há entre vós muitos fracos e doentes e não poucos
que dormem. Porque, se nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados.
Mas, quando julgados, somos disciplinados pelo Senhor, para não sermos
condenados com o mundo" (1Co 11:28-32).
Em suma, a participação na
Ceia sem o discernimento correspondente – sem o exame conveniente de si mesmo,
acarreta pesada disciplina, que pode incluir o enfraquecimento, a doença física
e a morte. Iríamos sujeitar nossos pequeninos a isso? Não seria o mesmo que
colocar nas mãos de um menino de 5 anos a direção de um carro em alta
velocidade? Não seria isso, além de uma imprudência, uma total falta de amor e
discernimento de nossa parte? Na impossibilidade de a criança poder realizar
uma tal profunda introspecção, cabe à Igreja vedar sua participação nesta
ordenança.
Em suma, entendemos que o
papel da Igreja não é promulgar uma maior abertura à Ceia, mas, pelo contrário,
zelar para que participem dela as pessoas verdadeiramente aptas. O sacramento
deve ser vedado aos impenitentes (aqueles que estão abertamente em pecado) e
também aos infantes (que em virtude da pouca idade estão imaturos para
assumirem a extensão e profundidade das implicações do mesmo). Isso fazemos não
por discriminação, mas por amor e cuidado.
Misael Batista do Nascimento
Pastor da Igreja Presbiteriana Central do Gama.
Obs.: Este estudo sobre a Ceia do Senhor se baseia em uma teologia calvinista (presbiteriana).
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