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quinta-feira, 11 de julho de 2013

REFLEXÃO 114 - A CELEBRAÇÃO DA ALTERIDADE MATRIMONIAL

A celebração da alteridade (dependência) matrimonial
Valdir R. Steuernagel

Vez por outra você e eu já escutamos uma frase que diz assim: Jesus queria o reino de Deus e o que apareceu foi a Igreja. Para falar a verdade, não gosto dessa frase. Ela é muito idealista. Fala de uma coisa hipotética que não temos. Pois o que temos, afinal, é a Igreja. Mas quem sabe eu não goste dela também porque ela fala de mim. Eu e você somos, no final das contas, a Igreja, que, por ter a nossa cara, é tão insuficiente, limitada e conservadora. Ela é o que somos.
Para falar em termos históricos, é possível observar que a Igreja tem sido muitas vezes, ontem e hoje, de natureza conservadora. Ela estabeleceu uma cultura do status quo. Manteve velhos costumes, advogou a vida de ontem e se tornou retrógada na relação com o mundo. É que, muitas vezes, no decorrer da história, a Igreja teve a cara das pessoas, de sua cultura e de seu tempo em detrimento da cara de Jesus e dos evangelhos. Mas não é assim que a Igreja deveria ser, e não é essa a natureza da fé cristã.
A fé cristã é proposicional — ou seja, ela propõe. A fé cristã é pró-ativa, fazendo uma proposta criativa da vida para a sociedade, em geral, e as pessoas, em particular. Para usar um conceito que estava na moda ontem, se poderia dizer que a fé cristã convida a Igreja a ser de vanguarda e não a caminhar a reboque dos costumes, da cultura e da sociedade.


Ao dizer isso, participo da convicção de que a Igreja precisa se renovar constantemente, ouvindo a Deus nos evangelhos, e ter uma relação criativa e pró-ativa com a sociedade. Afinal, a Igreja é mensageira de uma riqueza enorme para a vida em todas as suas dimensões. Ela é agenciadora de uma palavra de vida, que brota de um Deus que expressa o amor e busca o relacionamento e a comunidade. E isso é assim no que se refere à vida das pessoas entre si e no que se refere ao assunto em pauta neste artigo: a riqueza do potencial relacional da sexualidade.
O mandato divino e a liberdade
Tenho brigado um bocado para aceitar a verdade que diz ser melhor seguir o caminho de Deus. Aceitar esse caminho viria a se constituir na própria vida. Em outras palavras, demorei a entender e aceitar que Deus não estava contra mim. Que Ele queria o melhor para a humanidade e para mim. Que Ele sorria quando eu estava bem e que, para eu estar bem, era natural que descobrisse que andar no caminho da vida é andar no caminho de Deus.
Uma das coisas básicas desta caminhada é que Deus sabe o que é bom para o ser humano, porque, sendo o Criador, Ele ama sua criatura e, sendo aquele que me ama, Ele cria. E, ao criar o ser humano à sua imagem (Gn 1.26), dá-lhe o prazer e o privilégio de relacionar-se com Deus e uns com os outros.
O ser humano não é e não vive à toa. Há um propósito na vida que Deus quer ver-nos descobrir. E essa descoberta é o caminho da própria liberdade. Ser livre, então, é ser quem se é: criado por Deus para amá-lo, relacionar-se com o outro nos níveis pessoal e social, e exercer a mordomia em relação a toda a natureza e aos seus recursos minerais, vegetais e animais.
A descoberta da vida no outro
É básico afirmar a relacionalidade como uma parte constitutiva da própria vida. A pessoa não é criada para viver isoladamente. Ela é criada para viver em sociedade. O outro, portanto, acaba sendo um fator de humanização. O outro é um espelho da nossa própria humanidade.
Se olho para a minha própria vida, percebo a essencialidade do outro. Afinal, eu nem seria sem o outro, sem ser desafiado e completado por ele ou ela.
Por vezes tenho dito que Silêda, com quem me casei há tantos anos, me humanizou. Ela não gosta muito que eu fale isso, mas é a verdade. Na minha relação com ela percebi melhor quem eu era e do quanto eu carecia da presença dela para caminhar rumo ao alvo de ser mais gente. O relacionamento com ela apontava áreas que eu precisava corrigir, melhorar e, ou, implementar. E, olhando nesse espelho que era ela, me tornei mais gente. E isso tem sido bom.
Não há vantagem num solitarismo asfixiador. Há virtude no relacionamento porque a própria vida está vinculada ao outro. Deus nos fez para Ele e para e outro. E nada como uma boa festa com o papo correndo solto...
A sabedoria da monogamia
Na geografia da criação de Deus há níveis de relacionamento e intimidade. Se a pessoa humana é criada para a convivência e não para a solidão, ela é criada também para a intimidade que se constitui no encontro da diversidade. Os dois diferentes relatos da criação falam dessa realidade.
No primeiro relato da criação, o homem e a mulher, sob a bênção de Deus, são afirmados tendo em vista a constituição da família e o exercício da mordomia: "E Deus os abençoou, e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a, dominai sobre..." (Gn 1.28). No segundo relato, a festa e a profundidade da complementação são trazidas à tona, ao se afirmar a negatividade da solidão, a carência e a possibilidade da idoneidade na complementação, e a comemoração desta: "Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne" (Gn 2.23).
O ápice do relacionamento está estabelecido na complementação que se dá na afirmação e respeito pela alteridade do outro. Não há, portanto, complementação profunda que seja possível com a afirmação da mesmice. E isso fica bem claro na sexualidade.
É por isso que a fé cristã afirma tanto a relação com o outro que é diferente — homem e mulher — como a relação que seja íntima e profunda — a monogamia. Pois é deste concerto harmônico que nasce, afinal, o caminho do reconhecimento do Criador, a afirmação da diversidade do outro e a complementação profunda da qual brota a própria vida. Essa possibilidade é afirmada pelo relato da criação quando se afirma a comunhão profunda por meio do desnudamento: "Ora, um e outro, o homem e sua mulher, estavam nus, e não se envergonhavam" (Gn 2.25).
É interessante observar quantas vezes esta simples conversa com vocês, leitores da Ultimato, citou os pressupostos dos relatos da criação, como estão registrados no livro de Gênesis. É que lá, nessa teologia da criação, está presente tanto a realidade de quem Deus é como o que Ele espera ansiosamente de nós. É lá que Ele expressa seu amor por nós e seu desejo de convivência com sua própria criação. Também é lá que Ele compartilha conosco qual seria o melhor jeito de a gente pensar e articular a vida pessoal e em sociedade. É lá, portanto, que está presente a riqueza da complementação e a afirmação da intimidade na alteridade.
Não é que tudo isso seja vivido de maneira pronta e fácil. A vivência em sociedade, em família e em monogamia é o testemunho tanto dessa dificuldade como também dessa desafiadora possibilidade. Uma possibilidade que só pode ser vivida na presença do Deus criador. Sem a relação com Ele a própria vida perde seu centro e o que se colhe é uma espécie de autonomia que perdeu seu senso de pertencimento e vocação. Ou seja, a gente já não sabe para que vive nem para onde vai.
Caminhar é bom...
Outro dia cheguei em casa e nosso álbum de casamento estava sobre a bancada. Junto com ele um pacote de fotografias e uns dois exemplares do nosso convite de casamento. Por uns dias as fotos ficaram por ali, os filhos fazendo brincadeiras com a magreza da Silêda e o tamanho da minha barba e do meu cabelo. Então, uma noite, um dos meninos fez referência ao nosso convite de casamento, no qual falávamos do "amor a três". O convite dizia assim: "Um dia, nós descobrimos a maravilha do amor a três... E decidimos, agradecidos: ‘Eu e a minha casa serviremos ao Senhor’". É claro que um dos filhos nos lembrou que não é isso que o texto bíblico afirma quando diz que é bom serem dois. Estávamos afirmando, no entanto, que para que Silêda e eu pudéssemos vivenciar a intimidade da complementaridade na alteridade, precisaríamos afirmar a Deus e reconhecer a nossa relação dependente dele. É por isso que queríamos "caminhar a três". Caminhar na presença de Deus.
Muitos anos se passaram desde então. Nem sempre as coisas estão "prontas", nem sempre o relacionamento tem sido fácil ou as tentações têm sido ausentes. Mas o fato é que, olhando um para o outro, em suas diferenças, complementação e idoneidade, nos afirmamos e abraçamos mutuamente. Na consciência de que esta é a melhor opção, pois ela se gesta na dependência de Deus, na relação com o outro e os outros, e no exercício da cidadania mordoma. Não conheço outro caminho, porque este é o melhor caminho. Caminhar, pois, é bom... na presença de Deus, do outro e dos outros.

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