A celebração
da alteridade (dependência) matrimonial
Valdir R. Steuernagel
Vez por outra você e eu já
escutamos uma frase que diz assim: Jesus queria o reino de Deus e o que
apareceu foi a Igreja. Para falar a verdade, não gosto dessa frase. Ela é muito
idealista. Fala de uma coisa hipotética que não temos. Pois o que temos,
afinal, é a Igreja. Mas quem sabe eu não goste dela também porque ela fala de
mim. Eu e você somos, no final das contas, a Igreja, que, por ter a nossa cara,
é tão insuficiente, limitada e conservadora. Ela é o que somos.
Para falar em termos históricos,
é possível observar que a Igreja tem sido muitas vezes, ontem e hoje, de
natureza conservadora. Ela estabeleceu uma cultura do status quo. Manteve velhos costumes, advogou a vida de ontem e se
tornou retrógada na relação com o mundo. É que, muitas vezes, no decorrer da
história, a Igreja teve a cara das pessoas, de sua cultura e de seu tempo em
detrimento da cara de Jesus e dos evangelhos. Mas não é assim que a Igreja
deveria ser, e não é essa a natureza da fé cristã.
A fé cristã é proposicional — ou
seja, ela propõe. A fé cristã é pró-ativa, fazendo uma proposta criativa da
vida para a sociedade, em geral, e as pessoas, em particular. Para usar um
conceito que estava na moda ontem, se poderia dizer que a fé cristã convida a
Igreja a ser de vanguarda e não a caminhar a reboque dos costumes, da cultura e
da sociedade.
Ao dizer isso, participo da
convicção de que a Igreja precisa se renovar constantemente, ouvindo a Deus nos
evangelhos, e ter uma relação criativa e pró-ativa com a sociedade. Afinal, a
Igreja é mensageira de uma riqueza enorme para a vida em todas as suas
dimensões. Ela é agenciadora de uma palavra de vida, que brota de um Deus que
expressa o amor e busca o relacionamento e a comunidade. E isso é assim no que
se refere à vida das pessoas entre si e no que se refere ao assunto em pauta
neste artigo: a riqueza do potencial relacional da sexualidade.
O mandato divino e a liberdade
Tenho brigado um bocado para
aceitar a verdade que diz ser melhor seguir o caminho de Deus. Aceitar esse
caminho viria a se constituir na própria vida. Em outras palavras, demorei a
entender e aceitar que Deus não estava contra mim. Que Ele queria o melhor para
a humanidade e para mim. Que Ele sorria quando eu estava bem e que, para eu
estar bem, era natural que descobrisse que andar no caminho da vida é andar no
caminho de Deus.
Uma das coisas básicas desta
caminhada é que Deus sabe o que é bom para o ser humano, porque, sendo o
Criador, Ele ama sua criatura e, sendo aquele que me ama, Ele cria. E, ao criar
o ser humano à sua imagem (Gn 1.26), dá-lhe o prazer e o privilégio de
relacionar-se com Deus e uns com os outros.
O ser humano não é e não vive à
toa. Há um propósito na vida que Deus quer ver-nos descobrir. E essa descoberta
é o caminho da própria liberdade. Ser livre, então, é ser quem se é: criado por
Deus para amá-lo, relacionar-se com o outro nos níveis pessoal e social, e
exercer a mordomia em relação a toda a natureza e aos seus recursos minerais,
vegetais e animais.
A descoberta da vida no outro
É básico afirmar a
relacionalidade como uma parte constitutiva da própria vida. A pessoa não é
criada para viver isoladamente. Ela é criada para viver em sociedade. O outro,
portanto, acaba sendo um fator de humanização. O outro é um espelho da nossa
própria humanidade.
Se olho para a minha própria
vida, percebo a essencialidade do outro. Afinal, eu nem seria sem o outro, sem
ser desafiado e completado por ele ou ela.
Por vezes tenho dito que Silêda,
com quem me casei há tantos anos, me humanizou. Ela não gosta muito que eu fale
isso, mas é a verdade. Na minha relação com ela percebi melhor quem eu era e do
quanto eu carecia da presença dela para caminhar rumo ao alvo de ser mais
gente. O relacionamento com ela apontava áreas que eu precisava corrigir,
melhorar e, ou, implementar. E, olhando nesse espelho que era ela, me tornei
mais gente. E isso tem sido bom.
Não há vantagem num solitarismo
asfixiador. Há virtude no relacionamento porque a própria vida está vinculada
ao outro. Deus nos fez para Ele e para e outro. E nada como uma boa festa com o
papo correndo solto...
A sabedoria da monogamia
Na geografia da criação de Deus
há níveis de relacionamento e intimidade. Se a pessoa humana é criada para a
convivência e não para a solidão, ela é criada também para a intimidade que se
constitui no encontro da diversidade. Os dois diferentes relatos da criação
falam dessa realidade.
No primeiro relato da criação, o
homem e a mulher, sob a bênção de Deus, são afirmados tendo em vista a
constituição da família e o exercício da mordomia: "E Deus os abençoou, e
lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a,
dominai sobre..." (Gn 1.28). No segundo relato, a festa e a profundidade
da complementação são trazidas à tona, ao se afirmar a negatividade da solidão,
a carência e a possibilidade da idoneidade na complementação, e a comemoração
desta: "Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne"
(Gn 2.23).
O ápice do relacionamento está
estabelecido na complementação que se dá na afirmação e respeito pela
alteridade do outro. Não há, portanto, complementação profunda que seja
possível com a afirmação da mesmice. E isso fica bem claro na sexualidade.
É por isso que a fé cristã afirma
tanto a relação com o outro que é diferente — homem e mulher — como a relação
que seja íntima e profunda — a monogamia. Pois é deste concerto harmônico que
nasce, afinal, o caminho do reconhecimento do Criador, a afirmação da
diversidade do outro e a complementação profunda da qual brota a própria vida.
Essa possibilidade é afirmada pelo relato da criação quando se afirma a
comunhão profunda por meio do desnudamento: "Ora, um e outro, o homem e sua
mulher, estavam nus, e não se envergonhavam" (Gn 2.25).
É interessante observar quantas
vezes esta simples conversa com vocês, leitores da Ultimato, citou os
pressupostos dos relatos da criação, como estão registrados no livro de
Gênesis. É que lá, nessa teologia da criação, está presente tanto a realidade
de quem Deus é como o que Ele espera ansiosamente de nós. É lá que Ele expressa
seu amor por nós e seu desejo de convivência com sua própria criação. Também é
lá que Ele compartilha conosco qual seria o melhor jeito de a gente pensar e
articular a vida pessoal e em sociedade. É lá, portanto, que está presente a
riqueza da complementação e a afirmação da intimidade na alteridade.
Não é que tudo isso seja vivido
de maneira pronta e fácil. A vivência em sociedade, em família e em monogamia é
o testemunho tanto dessa dificuldade como também dessa desafiadora
possibilidade. Uma possibilidade que só pode ser vivida na presença do Deus
criador. Sem a relação com Ele a própria vida perde seu centro e o que se colhe
é uma espécie de autonomia que perdeu seu senso de pertencimento e vocação. Ou
seja, a gente já não sabe para que vive nem para onde vai.
Caminhar é bom...
Outro dia cheguei em casa e nosso
álbum de casamento estava sobre a bancada. Junto com ele um pacote de
fotografias e uns dois exemplares do nosso convite de casamento. Por uns dias
as fotos ficaram por ali, os filhos fazendo brincadeiras com a magreza da
Silêda e o tamanho da minha barba e do meu cabelo. Então, uma noite, um dos
meninos fez referência ao nosso convite de casamento, no qual falávamos do
"amor a três". O convite dizia assim: "Um dia, nós descobrimos a
maravilha do amor a três... E
decidimos, agradecidos: ‘Eu e a minha casa serviremos ao Senhor’". É claro
que um dos filhos nos lembrou que não é isso que o texto bíblico afirma quando
diz que é bom serem dois. Estávamos afirmando, no entanto, que para que Silêda
e eu pudéssemos vivenciar a intimidade da complementaridade na alteridade,
precisaríamos afirmar a Deus e reconhecer a nossa relação dependente dele. É
por isso que queríamos "caminhar a três". Caminhar na presença de
Deus.
Muitos anos se
passaram desde então. Nem sempre as coisas estão "prontas", nem
sempre o relacionamento tem sido fácil ou as tentações têm sido ausentes. Mas o
fato é que, olhando um para o outro, em suas diferenças, complementação e
idoneidade, nos afirmamos e abraçamos mutuamente. Na consciência de que esta é
a melhor opção, pois ela se gesta na dependência de Deus, na relação com o
outro e os outros, e no exercício da cidadania mordoma. Não conheço outro
caminho, porque este é o melhor caminho. Caminhar, pois, é bom... na presença
de Deus, do outro e dos outros.
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