A Cruz Completa
Introdução:
A revista Época, na edição
202, de amanhã, 01/04/02, em reportagem de Antonio Gonçalves Filho sobre os
"evangelhos apócrifos", ressalta que a Páscoa deveria ser a data mais
importante para o cristianismo, mais até do que o Natal, visto que o Cristo
crucificado e ressuscitado é o centro da fé que move dois bilhões de pessoas no
mundo.
Sem a crucificação e
ressurreição de Cristo não haveria igreja e nem esperança a ser celebrada no
memorial da Ceia, pois não teríamos evangelho que se proclamasse. Creio que o
próprio Cristo queria criar em seus discípulos este sentimento, pois em Marcos
8.34 ele instiga o imaginário popular ordenando a tomada individual da cruz por
parte de cada discípulo.
Tomar a cruz implica na
negação de si mesmo, o que não é meramente uma exortação. É uma ordem. Devemos
negar o próprio eu, dando as costas à idolatria e ao egocentrismo. Negar-se a
si mesmo é muito mais do que abandonar a prática usual de pecado. É colocar-se
em inteira e incondicional submissão ao Cristo crucificado.
Tomar a própria cruz é muito
mais do que pensar nos sofrimentos naturais ou nos problemas existenciais que
nos afligem. A cruz era instrumento de crudelíssima tortura e seu patibulum - a
viga horizontal da cruz - devia ser carregado pelo condenado em vias públicas
até o local da execução, tornando patente a sua desonra e humilhação.
Crucificar alguém era como desnuda-lo de sua dignidade e promover o
esvaziamento de todos os seus conceitos existenciais. Tomar a cruz exige, por isso,
uma dedicação absoluta e uma identificação ideológica, física e espiritual de
nossa parte para com Jesus, sem precedentes na história da humanidade.
Segundo o ensinamento de
Jesus mesmo, tomar a cruz significa fazer de nossas vidas um hábito peculiar de
seguir o seu exemplo, sem contestações ou ajustes aos interesses pessoais que
destoam da propositura do evangelho. Afinal, assevera John Stott no livro A
Verdade do Evangelho, a fé cristã e a fé do Cristo crucificado. Diria que além
de ser a fé do Cristo crucificado, a fé cristã é a fé do povo que se predispõe
à crucificação diuturna na busca de ideais cristocêntricos, cristológicos e
cristossímeis. A fé cristã é a fé das pessoas que tomam a cruz completa.
Vejamos em seguida, alguns
momentos específicos na vida de Jesus que nos orientam para o entendimento do
que seria a nossa cruz completa.
1. O Batismo - Mateus
3.13-17:
Se observarmos o texto com a
devida atenção, verificamos que o batismo de Jesus não foi um mero ritual. Foi
para cumprir toda a justiça de Deus, verso 15, o que indica que aquele ato era
uma confissão pública de compromisso assumido. Compromisso motivado pela
renúncia deliberada a partir da interação da Palavra de Deus na mente e no
coração do homem Jesus, como deveria ser em nossas mentes e em nossos corações.
Vemos também que foi por
imersão, verso 16. Jesus saiu da água, o que significa que o envolvimento era
total e irrestrito. Não houve partes ou particularidade da vida de Jesus que
tenha ficado de fora do compromisso messiânico. A totalidade do ser se
entregara para a missão assim como deveríamos nos entregar integralmente, sem
restrições, ao Senhor que nos comissiona.
Além disso, vemos que o
batismo de Jesus foi um cerimonial promovido pela ação do Espírito Santo, verso
16. Jesus estava totalmente revestido de unção e de poder do Espírito Santo,
como nós deveríamos estar hoje, como igreja, para realizar as obras que
realizou e para ministrar a sua graça salvadora em cumprimento da profecia de
Isaías, como nos indica Lucas 4.17-21.
Uma última peculiaridade do
batismo de Jesus, que deveria ser realidade em nosso batismo, foi a alegria que
aquele momento proporcionou ao coração de Deus. Jesus realmente abdicou de seus
interesses humanóides para assumir o propósito de Deus como monotético fator de
motivação de sua vida.
Se Jesus não tivesse sido
batizado a cruz não teria significado sacrificial, mas apenas penal.
Um outro momento
significativo na trajetória de Jesus para a cruz foi...
2. A Tentação - Mateus
4.1-11:
Por mais absurdo que pareça,
era propósito de Deus aquela experiência controversa na vida de Jesus, assim
como muitas vezes o é em nossas vidas, verso 1.
A tentação exigiu de Jesus
preparo e firmeza espiritual, verso 2, visto que foi um confronto direto com o
diabo. O mesmo nos é exigido hoje. Satanás insiste em nos induzir, como tentou
fazer com Jesus, à soberba, à idolatria, à apostasia e a pratica sucessiva de
pecados, seja pela banalização dos conceitos ético-cristãos ou pela admissão de
uma postura sociológica que cristianiza costumes antagônicos a Palavra de Deus.
A vitória de Jesus, que será
também a nossa vitória, foi pela Palavra de Deus, a partir do conhecimento
associado a ação prática do Texto Sagrado, versos 4; 7 e 10. Não foi um ato de
bravura ou um feito sapiencial, foi vivência prática da Palavra.
Se Jesus não tivesse vencido
a tentação a cruz lhe seria merecida, anulando assim o seu significado vicário.
Um terceiro momento que
muito nos ensina sobre a nossa cruz completa é...
3. O Getsêmane - Mateus 26.36-46:
Este foi um momento de
angústia e de profunda depressão, verso 38, para Jesus, quando ele se derramou
em intensa intercessão, prostrando-se em aviltante e plena submissão a Deus, no
afã de cumprir o propósito salvífico, verso 39.
Muitas vezes nos sentimos
como Jesus, mas diferente dele, reagimos com lamúrias, com questionamentos e
com blasfêmias reclamando da solidão que faz ressoar altissonante a
confrontação direta entre a devoção sincera e a fraqueza humana, versos 40-41.
Muitas vezes nos vemos pressionados pelo desafio de resistir e vencer, apesar
das cicatrizes que ficarão, ou de ceder e nos retirarmos covardemente para nos
entregarmos a mediocridade espiritual.
Para Jesus, o Getsêmane foi
um momento de resignação, verso 42, como deve ser para nós. Todo o cristão tem
o seu Getsêmane. É o momento no qual é testada a nossa capacidade de
resignação, bem como a nossa fibra espiritual diante da traição que dilacera o
coração devido a negação do amor que demonstramos, versos 45-46. Mas, como Jesus,
devemos resistir e vencer a depressão, encarando o traidor sem nos demovermos
do objetivo espiritual traçado por Deus em tal experiência.
Se Jesus não resistisse a
amargura do Getsêmane Filipenses 2.5-11 jamais teria sido escrito pelo apóstolo
Paulo. O cristianismo não seria nada mais do que o propalado pelo postulados
marxistas, "o ópio do povo".
Depois disto Jesus passou
por experiências amargas no Sinédrio, o tribunal supremo dos judeus que impunha
obediência ao sistema mosaico, e diante de Pilatos, o governador romano
representante de César na Palestina, chegando ao momento último de sua
trajetória messiânica, que foi...
4. A Crucificação - Marcos
15.21-41:
Jesus não apenas nos ordenou
a tomada da cruz, como ele mesmo tomou a cruz para a nossa salvação.
A crucificação teve início
no pretório, o pátio da guarda romana. Jesus foi colocado na presença de uma
coorte, onde vestiram-no de púrpura, um tecido fino e valioso, e em sua cabeça
colocaram uma coroa de espinhos. Todos os soldados o saudavam, debochadamente,
como a um rei, pois esta era a acusação que sobre ele recaía; Jesus Nazareno
Rei dos Judeus.
Segundo o Dr. José Humberto
no livro As Três Horas do Calvário, a coroa de espinhos encravou-se na caixa
craniana, perfurando os ossos, dilacerando o couro cabeludo e rasgando-lhe a
fronte, no momento em que os soldados batiam em sua cabeça com a cana, o
suposto cetro de sua majestade. Batiam na cabeça e cuspiam-lhe no rosto,
ajoelhando-se diante dele em atitude de suposta adoração, que na verdade era
inenarrável blasfêmia, versos 16-20. Eram 600 homens fortes e devidamente
preparados para a guerra torturando a Jesus.
Jesus, enfraquecido devido a
situação degradante a que fora submetido - levara 39 chibatadas, verso 15 -
chega ao Gólgota carregando o patíbulo de sua cruz. Vale ressaltar que no caso
de Jesus a cruz era mais pesada que o usual, pois do sinal do cravo de uma mão
até o sinal da outra Jesus tinha uma envergadura de 1,70m, conforme pesquisa
científicas no Santo Sudário. No Gólgota, ofereceram uma espécie de droga para
embotar os sentidos de Jesus, o que ele rejeita, preservando a sua lucidez e
sofrendo todas as dores que lhe foram impostas, validando assim o seu
sacrifício e consolidando a sua vitória contra o inferno, a morte e o pecado, verso
23.
Às 09h00 crucificaram a
Jesus. Primeiro pregaram as suas mãos com cravos de 12 a 15cm no patíbulo. Eram
quatro marteladas para se perfurar cada mão e mais oito em cada cravo para se
perfurar e prender bem cada mão na madeira. Depois, com desprezo e brutalidade,
pregaram o patíbulo na estaca vertical, colocando uma minúscula banqueta
pontiaguda para que ele sentasse, evitando assim um colapso devido as
contorções do corpo e postergando a agonia e o sofrimento. Em seguida,
juntaram-lhe os pés, pregando um no outro com oito marteladas, para então
pregarem os dois na madeira com mais doze marteladas. Por fim, levantava-se a
cruz deixando o crucificado exposto ao causticante sol da Palestina.
A morte na cruz era por
asfixia mecânica ou por hemorragia, visto que para respirar era necessário se
levantar o corpo, dilacerando as mãos e os pés, a cada movimento, bem como
comprimindo cada vez mais a caixa torácica sempre que se respirava um pouco
mais fundo.
Cumpre-se a profecia de
Isaías 53.12. Não só pelo fato de Jesus estar entre os transgressores, mas
principalmente por ter ele tomado sobre si o pecado de muitos, versos 27-28. No
decurso das horas, zombaram de Jesus insultando-o e mandando-o descer da cruz
para salvar-se a si mesmo.
Queriam um milagre para que
pudessem crer, visto que não foram capazes de entender que o milagre era a
própria cruz. Na cruz reside o milagre da salvação e do perdão de pecados,
versos 29-32.
O Texto informa que do meio
dia até às três horas da tarde a Terra escureceu. A ciência afirma ser
impossível pensar em um eclipse na ocasião por ser período de lua cheia. John
Stott, no livro A Cruz de Cristo, diz que aquela escuridão era uma espécie de
símbolo externo das trevas espirituais que envolveram a Jesus naquele momento.
Às três horas da tarde Jesus
clama em alta voz: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste",
citando o Salmo 22.1. Um terrível grito de abandono, o sentido é de deserção
mesmo, indicando que naquele momento Jesus entendera que se havia consumado o
propósito divino para a nossa salvação, sentindo na própria carne o peso da
justiça de Deus e satisfazendo-a, para a nossa justificação. Jesus conhecia as
Escrituras e viu cumprir-se plenamente em si mesmo a Palavra do Senhor a Moisés
em Deuteronômio 21.22-23; "maldito todo aquele que for pendurado no
madeiro".
As pessoas ao redor não
compreenderam o que se passava e esperavam que Elias, o profeta, viesse para
salvar a Jesus. Mas não há profeta, pastor, guru, santo ou papa capaz de nos
salvar. A nossa salvação só é possível no Cristo crucificado e ressuscitado,
versos 33-36.
Jesus morreu. O véu do
Templo se rasgou de alto a baixo dando início a uma nova aliança; o pacto no
sangue que nos purifica de todo o pecado. A cruz foi um momento de dor, de
humilhação, de desamparo para que na realidade pudesse ser o momento de maior
manifestação de amor e de redenção. O cruento momento da cruz é o momento da
vitória.
Se Cristo não padecesse a
morte na cruz não haveria vitória para celebrarmos. O pecado nos teria
derrotado a todos.
Conclusão:
Desejo concluir dizendo que
ainda hoje Cristo nos chama para negarmos a nós mesmos. Jesus quer que tomemos
a nossa cruz em sua inteireza e o sigamos. Portanto, se estamos dispostos a
carregar a nossa cruz e se estamos realmente seguindo a Jesus, há somente um
lugar para onde podemos estar indo: para a morte. Não há como seguir a Jesus,
não há como ser igreja, se nos acovardamos diante da cruz.
Stott assevera, em A Cruz de
Cristo, que movido pela perfeição do seu santo amor, Deus em Jesus
substituiu-se por nós, pecadores. Esta substituição é o coração, o epicentro da
cruz, tornando o cristianismo evangélico em uma religião pautada em uma
incondicional cruzcentricidade experiencial e espiritual.
Tomar a nossa cruz é o
desafio. Não uma cruz de isopor, de néon, de mármore em um epitáfio ou de ouro
para enfeitar a lapela, mas a cruz completa. A cruz que inicia no compromisso
assumido publicamente no batismo. A cruz que nos capacita para vencermos a
tentação e que nos mantém a fibra espiritual nos deprimentes tenebrosos
getsêmanes que sofremos.
Devemos tomar a cruz
completa. A cruz que mortifica o nosso ego. A cruz que vicariza os nossos
pecados e que nos faz contados dentre os malfeitores. Devemos tomar a cruz que
nos leva ao sentimento de que somos malditos de Deus, desamparados e sem
alternativas, a não ser a rendição taciturna voluntariosa, como a de fez Jesus,
conforme o relato de Lucas 23.46; "Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito".
Amados irmão e irmãs, a cruz
completa é a cruz do testemunho público, do confronto direto como o diabo e a
da angústia que muitas vezes nos faz derramar o sangue da alma devido a
humilhação, o escárnio e o abandono. Se suportamos a tamanha dor; se suportamos
agonizante sofrimento e se ressuscitamos depois de cruenta morte a cada dia,
podemos bradar ao mundo que estamos crucificados com Cristo. Não nos
incomodamos mais com as circunstâncias da vida, pois temos no corpo as marcas
da cruz; temos as marcas da salvação, Gálatas 2.20 e 6.17. Amém.
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