A
CRISTOLOGIA SEGUNDO OSCAR CULLMAN
INTRODUÇÃO
O estudo da
cristologia há muito se acha dividido entre duas correntes principais, no que
diz respeito aos pressupostos da pesquisa e à metodologia aplicada. A
dogmática, a partir da exegese escriturística, estrutura os dados relativos à
pessoa e à obra do Cristo sobre um alicerce bíblico-filosófico, ao moldar os
dados da revelação com determinadas estruturas de pensamento e de rigor lógico.
O historicismo crítico, por sua vez, parte da suficiência da pesquisa histórica
no conhecimento de Jesus Cristo para reconstruir suas características pessoais,
seus condicionamentos sócio-religiosos e as nuances da piedade judaico-cristã
primitiva, delimitando o perfil do Jesus histórico. A proposta de Oscar Cullman
para a investigação cristológica, no entanto, constitui-se uma abordagem
diferente, denominada por ele de método histórico-filológico, talvez uma
síntese entre dogmática e crítica histórica. Sua análise filológica examina o
texto, interpreta-o e utiliza-o como fundamento da compreensão do Cristo,
considerando sua pessoa e obra como aspectos indissociáveis - faces
interdependentes de um mesmo objeto de estudo -, sem necessidade de
"enquadramento" em esquemas filosófico-teológicos. A contribuição das
disciplinas históricas é utilizada como ferramenta exegética, dialeticamente
confrontado com o texto bíblico, única perspectiva possível, para Cullman, de
fundamentação histórica da vida do galileu chamado Jesus de Nazaré.
Tendo como
texto base a obra de Cullman Cristologia do Novo Testamento, este trabalho visa
ressaltar pontos importantes do pensamento deste teólogo alsaciano, através do
confronto com a dogmática clássica em seus matizes atuais e com algumas
conclusões do historicismo obtidas nas últimas décadas do século vinte,
presentes na obra de Geza Vermes.
A VIDA TERRENA DE JESUS CRISTO
Sua humanidade
O tratamento
dispensando por Cullman à pessoa de Cristo é de caráter funcional, isto é,
define-o pelos aspectos de sua obra, pelas particularidades de seu ministério e
pela singularidade de sua existência, conforme os títulos pelos quais foi
identificado, seja pela comunidade cristã, seja por ele mesmo. Assim, escreve
no início de sua obra que "... no Novo Testamento não se fala quase nunca
da pessoa de Cristo sem que se trate, ao mesmo tempo, de sua obra"
[itálicos do autor]. Para Cullman esta é a questão cristológica pertinente, já
presente nos sinóticos sob a interrogação de Cristo: "quem o povo diz que
eu sou?" As influências judaicas e helênicas na formação do pensamento
cristão não sugerem uma redução das categorias deste à mera repetição dos
conceitos daquelas, tampouco um sincretismo ou síntese entre as concepções
cosmológico-mitológicas peculiares àquelas; antes, proporcionam uma melhor
compreensão da nova doutrina que se iniciara utilizando elementos das culturas
presentes em seus primórdios.
Ressaltando
sua imparcialidade na pesquisa do Jesus histórico e a ausência de motivação
teológica em seu trabalho, ainda que aceite os pressupostos da investigação da
verdade histórica sobre Jesus como algo factível, Vermes lembra que Jesus foi
judeu e não cristão. De maneira diferente, Cullman vê Jesus como o judeu que,
através de sua vida, iniciou uma religião diferente do judaísmo, bem como
inaugurou uma cosmologia diversa da encontrada no helenismo, não obstante o
inegável relacionamento com eles. "Com efeito, devemos considerar a
priori, como coisa possível e até provável, que Jesus tenha trazido, por sua
doutrina e por sua vida, algo novo...". Contudo, como a igreja cristã ao
longo dos séculos respondeu a indagação sobre a pessoa de Jesus, o Cristo? Para
Cullman, diversamente da perspectiva neotestamentária. As especulações sobre as
naturezas de Cristo ocuparam o lugar central na cristologia patrística por
ocasião da luta contra as heresias que surgiam, das mais variadas formas, no
seio da cristandade. Continuaram, ainda, presentes no escolasticismo medieval e
na Reforma. A unidade de Cristo tornou-se um paradoxo existente entre a dupla
natureza e a única hipóstase, afirmada pela fórmula calcedônica e repensada
pelos reformadores. (...) Lutero postulou a comunicação de atributos entre as
naturezas, a communicatio idiomatum; Calvino insistiu na existência do Logos
fora da carne, o extra-calvinisticum.
A dogmática,
predominantemente metafísica, deve ceder espaço à visão do evento-Cristo como
parte integrante da história da salvação. A partir deste viés, é possível
investigar adequadamente a compreensão da revelação pela comunidade cristã
conforme expressa no Novo Testamento. "A cristologia não é, portanto, uma
ciência das 'naturezas' de Jesus Cristo, mas a ciência de um 'acontecimento',
de uma história".
Sem dúvida,
qualquer pretensão de se redigir uma biografia de Jesus é inviabilizada pela
dificuldade de sua realização - os evangelhos constituem um estilo literário
único, redações de eventos e de ensinos de Jesus organizados de forma temática.
Por outro lado, não há qualquer questionamento expressivo sobre a historicidade
de Jesus de Nazaré. Duas são as afirmações das Escrituras acerca de seu
nascimento: foi virginal, de acordo com os relatos de Mateus e Lucas, sem
qualquer outra referência a isso no restante do corpus do Novo Testamento; e
sua ascendência real, da família de Davi (Rm 1:3). As dificuldades em conciliar
estes dois dados persistem, à espera de uma solução mais satisfatória que as
sugeridas até hoje; como, por exemplo, a tradicional hipótese de a genealogia
mateana ser a de José e a lucana dizer respeito à Maria, ambos descendentes de
Davi . Sobre a vida adulta de Jesus, a historiografia reconhece sua intensa
atividade como mestre, médico do corpo e da alma, sábio: um galileu
carismático, talvez um hasid. O testemunho evangélico registra, interpretado
pela teologia sistemática cristã, que o Cristo:
"...
começou seu ministério público anunciando o reino vindouro com grande
expectativa.Terminou-o com sua morte na cruz. (...) Na crucificação e
ressurreição de Jesus (...) o Cristo da fé e o Jesus histórico provam ser um
único e mesmo Senhor Jesus Cristo".
Atualmente
teólogos dogmáticos têm rejeitado o esquema cristológico do tríplice ofício
Profeta-Sacerdote-Rei, alegando sua artificialidade . Cullman reconhece tais
títulos como designações de suma importância relacionadas a Cristo - a exceção
de "Rei", pelo aspecto político envolvido, que é entendido como
sinônimo de Kyrios -, por se tratar do resultado da reflexão cristológica no
cristianismo primitivo. Serve-se destes e de outros títulos como categorias
para a construção de sua metodologia de pesquisa, na busca pela compreensão dos
conceitos que lhes subjazem na cristologia do Novo testamento.
Seu
ministério
Em sua
atividade pública Jesus fora aceito, indubitavelmente, como um mestre, um
rabbí. Sua origem, entretanto, não permite associá-lo aos fariseus e mestres da
lei, cuja atividade em nada lembra o pregador itinerante, crescido na Galiléia
e sem a tradicional erudição daqueles que se debruçavam sobre a lei a fim de
esmiuçá-la em pormenores ritualísticos. A exousia de Jesus, como bem notou
Vermes, também não derivava de abstrações filosóficas, mas da associação de
Deus à realidade existencial , a exemplo de outros mestres e dos profetas
veterotestamentários, o que lhe valeu ser identificado como um destes (Lc
24:19). Talvez a pouca atenção dada pela dogmática ao aspecto profético do
ministério de Jesus deva-se a condicionarmo-nos "de tal forma, e com
razão, a fazer de Jesus objeto de religião, que acabamos por esquecer que, em
nossos registros mais antigos, ele é apresentado não como objeto de religião,
mas como homem religioso".
Indo além da
caracterização de Jesus como mestre e profeta, Cullman destaca a expectativa
judaica da vinda do profeta escatológico. Não obstante a ausência de qualquer
idéia reencarnacionista no judaísmo, a esperança consistia no ressurgimento de
Moisés, Enoque, Elias, Jeremias ou de algum dos antigos profetas, e era
fortalecida pela crença na ressurreição e pelo fim do profetismo nos moldes do
Antigo Testamento. Nos sinóticos João Batista é tido como o "Elias",
o maior dos profetas (Mt 11:8 e ss). Em outro sentido, contudo, devido à
preocupação em refutar a "seita do Batista" e os mandeus, o evangelho
de João descreve-o como "uma 'voz' (fwnh) que clama no deserto, como o
antigo profeta. Em outras palavras: [João Batista] quer ser somente um profeta
à maneira dos do Antigo Testamento" .
Jesus, pelo
testemunho joanino e pelo início de Atos, é concebido como "o
profeta", o mensageiro escatológico, ainda que tal título seja empregado
de modo restrito e relacionado à proclamação do Reino de Deus. Os sinais
operados certamente permitiram associações, por parte do povo, com os milagres
da antiga era profética (Lc 7:16), característica de seu ministério reconhecida
por ele (Mc 6:4). Jesus fora um grande profeta. Mas foi sua pregação o aspecto
distintivo de sua posição como profeta escatológico, cuja função consistia em,
nas palavras de Cullman:
"...
preparar o povo de Israel e o mundo para a vinda do Reino de Deus; e isto não à
maneira dos profetas do Antigo Testamento, mas de um modo muito mais direto:
como precursor imediato do advento deste Reino. (...) A noção de 'profeta'
explica, pois, perfeitamente a atividade de Jesus como pregador, assim como
também a autoridade com a qual atua e fala".
O título de
Servo Sofredor de Deus - Ebed Yahweh - é, na opinião de Cullman, central para a
cristologia do Novo Testamento. Somente assim é possível enfatizar, com
justiça, o conceito de substituição, implicação natural do pensamento judaico
de representatividade e de solidariedade corporativa. Ao tentar reformular os
dogmas da morte de Cristo e da misericórdia de Deus, com o objetivo de
harmonizá-los, certas vertentes atuais da teologia dogmática questionam a
categoria de "substituição" como imprópria e carente de base
exegética, visto não existir indícios na tradição judaica contemporânea a Jesus
que indicassem essa direção, "... fossem correntes ou estivessem
combinados da forma proposta por pesquisadores como Oscar Cullman".
Os capítulos
42 e 53 de Isaías são primordiais para a compreensão do Servo - alguém que
traria a justiça irrepreensível de Deus às nações pelo Espírito, não pela força
militar ou pela opressão - e de seu sofrimento - seria morto em lugar de
muitos. A difícil identificação do Servo no judaísmo tem estimulado muitas
pesquisas, sem qualquer conclusão definitiva. Não fazia parte da figura
messiânica judaica o sofrimento ou a substituição expiatória, exceção feita
talvez a alguns intérpretes ou escolas. Contudo, para Cullman, o Ebed é Jesus.
Ele rejeita a tese de que as principais declarações de Jesus a respeito de sua
morte sacrificial seriam vaticina ex eventu, a exemplo de exegese de Mc 2:18 e
ss., contra Bultmann; assim como insiste que, ao aplicar a si indireta ou
diretamente a figura do Servo (Lc 22:37), Jesus "fala de uma maneira geral
de sua morte, [demonstrando que] Is 53 está por trás". O testemunho do
Novo Testamento, segundo Cullman, corrobora sua posição, haja vista a citação
de Isaías 53 pelo etíope (At 8), o Cristo como a "nossa Páscoa" (1 Co
5) e o sofrimento de Jesus como parte integrante de sua missão (1 Pe 2). Em
particular, cita dois textos do quarto evangelho: a declaração indireta de João
Batista a respeito do Ebed (Jo 1:29, 36) e a "citação que a voz celestial
faz do começo dos cânticos do Servo. (...) Para ele [João], a vocação batismal
de Jesus foi um chamado a assumir a missão do Ebed Iahweh".
"Sumo
Sacerdote" como designação aplicada a Jesus somente foi utilizada após a
sua morte e proposta como solução cristológica aos questionamentos sobre a
relação entre Cristo e o Antigo Testamento. Conquanto o judaísmo tardio, no
primeiro século, não tenha descrito a figura do Messias com funções
sacerdotais, tal foi o entendimento dos primeiros cristãos e, parece, do
próprio Jesus, ao interpretarem o Salmo 110, aplicando-o ao Cristo, o
"sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque" (Mc 12:35
ss.). É incontestável, no entanto, que crenças a respeito deste misterioso
rei-sacerdote, associando-o a figuras escatológicas, existissem no imaginário
judaico e nas especulações cristã-gnósticas anteriores à epístola aos Hebreus -
cuja temática versa, principalmente, em torno da superioridade do sacerdócio de
Jesus em relação ao sistema sacrificial veterotestamentário.
De acordo
com Cullman, o escritor da epístola aos Hebreus baseia-se principalmente no já
citado Salmo 110 e em Gênesis 14 para formular seu raciocínio, cuja chave está
no capítulo 7, assim como:
"... se
esmera em demonstrar que Jesus consuma, de forma absoluta, a função [imperfeita
e passageira] do sumo sacerdote judaico, (...) o autor encontra este sacerdócio
absoluto e perfeito prefigurado já na figura misteriosa deste Melquisedeque de
Gn 14".
Claro está,
segundo Cullman, que em Hebreus Jesus consuma em si o sacrifício perfeito e
completo, pois ele mesmo é a oferta sacrificada e o sumo sacerdote que oferta.
E pela superioridade de sua abrangente obra, decorrente da posição mais elevada
que ocupa em relação ao sacerdócio levítico, não há necessidade de repetição do
sacrifício que foi realizado uma vez por todas; seu alcance é ilimitado e seus
efeitos plenos em sua realização. A perfeição de seu sacrifício inaugura o
caminho de aperfeiçoamento dos santos, agora aceitos por Deus e objetos da
intercessão de Jesus. Eis a diferença do sumo sacerdote Jesus para o seu
correspondente judaico: o caráter intemporal de sua obra e sua identificação
com o Ebed, oferta pelo pecado, que não pecou ainda que em tudo tenha sido
tentado, semelhante a qualquer ser humano. A influência das concepções judaicas
sobre o sumo sacerdote escatológico, ideal, evidencia-se na menção da parusia
em 9.28, ocasião em que ele virá ainda como mediador, para "levar-nos à
plenitude de nossa santificação".
A dogmática
adotada neste trabalho concorda, em linhas gerais, com Cullman. Entretanto,
acrescenta que o aspecto vicário da obra de Cristo representa um ato de amor a
fim de destruir o pecado e a morte, não uma pura satisfação da ira de Deus. Em
13.10-14 o sacrifício de Cristo é tipificado pela queima das vísceras da vítima
"fora do arraial", banindo toda a impureza. Esta é a chave
hermenêutica para a compreensão de sua morte, "... numa época em que a
fenomenologia e a antropologia (...) voltaram-se para a prática ritual e
cúltica para dela extrair nossos sentidos e teorias".
A
EXPECTATIVA FUTURA SOBRE JESUS CRISTO
O Messias
Dentre os
diversos títulos cristológicos, certamente "Messias" - em grego
"Cristo" - é o mais mencionado. É reconhecido não somente por ser
associado ao nome próprio "Jesus", como também pela posição ocupada
no judaísmo tardio, pois estava ligado à esperança escatológica de tal maneira
que outras figuras, não raro, eram incorporadas a ele. No período
intertestamentário surgiu o conceito "de que o reino de Deus se seguiria à
vitória na terra de exércitos angélicos celestiais sobre as hostes de
Satanás". Contemporânea à época neotestamentária fora a concepção do
"Messias político", um líder nacional que libertaria o povo escolhido
da opressão sócio-político-econômica infligida pelo império romano. Embora
estas idéias estejam presentes nos escritos do Novo Testamento, Jesus como o
Messias foi compreendido com outra conotação no Antigo Testamento.
A palavra é
traduzida pelo particípio "ungido" e se referia a homens escolhidos
por Deus para levar a cabo determinada missão; por exemplo, um rei, um
sacerdote, um profeta e até alguém como Ciro, um soberano estrangeiro que seria
instrumento de Deus no cumprimento de seus desígnios (Is 45.1). Cullman destaca
que a promessa feita por Deus a Davi, de perpetuidade de seu reinado através de
seus sucessores (2 Sm 7.12 ss.), incitou uma expectativa escatológica, por não
ter sido cumprida como se esperava. Em suas próprias palavras:
"Isto
não significa que este 'Ungido' aparecerá fora do âmbito terrestre. A palavra
'escatológico' deve ser tomada aqui em seu sentido etimológico, ou seja,
temporal. Pensa-se que é preciso uma realeza terrena para trazer a salvação
futura. (...) Trata-se de uma esperança escatológica que deve realizar-se
inteiramente na esfera terrena".
Na
literatura apócrifa judaica o Messias aparece como libertador, ora como quem
inauguraria uma era escatológica de paz e liberdade, ora como um rei que
aniquilaria os inimigos dos judeus, ora ainda como o sacerdote-redentor da
nação. A autoconsciência messiânica de Jesus, de modo diferente, descartou
qualquer caráter político de sua obra e tampouco alimentou o anseio de vê-lo
ocupando o trono de Davi. A exegese de Cullman de textos do evangelho de Marcos
- 8.27 e ss., 14.61 e ss., 15.2 e ss. - e de seus paralelos sinóticos, que se
referem à indagação acerca de Jesus como o "Messias-rei", conclui que
ele mesmo rejeitou ser assim reconhecido, com respostas evasivas finalizadas
com a sua identificação como o "Filho do Homem", cuja missão,
estranha ao messianismo judaico, era a de Servo Sofredor, de Ebed Iahweh. Seu
reino não é deste mundo e seu trono está à direita do Pai. Para o cristianismo
primitivo:
"... a
realeza do Filho de Davi era, acima de tudo, a realeza que exercia sobre a
igreja. (...) mais potente tornava-se, também, a esperança da manifestação
final e total de sua consumação. Pois tornamos a achar no cristianismo
primitivo, como no próprio Jesus, a tensão entre 'o já cumprido' e o 'por
cumprir-se'. (...) Segundo a fé dos primeiros cristãos é unicamente no futuro
que a realeza de Jesus se manifestará de modo visível".
O Filho
do Homem
A pesquisa
sobre o significado de "Filho do Homem" no Novo Testamento há anos
encontra-se em plena efervescência. Estudiosos, como Vermes, têm se restringido
à análise filológica do termo original aramaico barnasha para justificar o uso
puramente idiomático da expressão, referindo-se a homem em geral e, em
particular, a si mesmo "em contextos que denotam reverência, reserva ou
modéstia". Rejeitando a interpretação messiânica de Daniel 7 e,
conseqüentemente, a exegese de Cullman, assim como descartando a hipótese de
Bultmann de Jesus ter se referido a outrem, esses críticos entendem "...
que o título apocalíptico de Filho do Homem é uma invenção moderna. Jesus e a
igreja primitiva desconheciam por completo um título judaico de Filho do
Homem". O estudo histórico-filológico de Cullman adota uma perspectiva
mais abrangente do assunto.
Segundo os
evangelhos, Jesus referiu-se a si mesmo como o Filho do Homem. Que queria dizer
ele? Seria apenas um modo peculiar de tratamento, no aramaico, da primeira
pessoa do singular? Não obstante as recentes hipóteses levantadas pelos
filólogos, como exposto acima, o título requer outras considerações. Cullman
pressupõe a suficiência da análise da idéia judaica de Filho do Homem, porquanto
consiste, ao mesmo tempo, em fonte da correspondente noção cristã do termo e em
síntese de figuras similares existentes no paganismo. É bem provável que, em
círculos judeu-gnósticos anteriores, a expectativa do surgimento do Filho do
Homem fosse evidente, em contraste com o perfil político do messianismo do
primeiro século. Na apocalíptica judaica o Filho do Homem, em Daniel 7, aparece
como representação do povo escolhido; em 4º Esdras como o Messias, salvador
enviado pelo Altíssimo; e em Enoque, a mais expressiva obra do judaísmo tardio
no tocante a esta questão, um indivíduo representando a nação, "aquele
cujo nome é pronunciado pelo 'Ancião de dias' no começo da criação; aquele que,
por conseguinte, foi criado antes de todas as criaturas". Se, por um lado,
não se deve ignorar a simbologia judaica presente em tais conceitos, por outro
se faz necessário destacar a crença nesse ser especial, nesse homem do céu
"que, sendo realmente homem, possui uma dignidade divina particular; com
efeito, a história das religiões nos ensina que existem especulações relativas
a um 'primeiro homem', protótipo divino da humanidade" [itálicos do
autor]. Seria ele, no judaísmo, imago Dei em sua integridade, o "Adão
ideal", o "Segundo Adão" conforme adaptação da teologia paulina,
visto por Cullman como estreitamente ligado à categoria de Filho do Homem,
apesar do próprio Jesus não haver feito tal conexão.
As duas
possíveis explicações para o uso da expressão - referência ao homem do céu e
termo idiomático para denominar "homem" de forma geral - foram
reconhecidas por Cullman, com a ressalva da particularidade de seu uso
relacionado ao ser celestial, denotando a singularidade da pessoa de Jesus e a
patente autodenominação como Filho do Homem, esta notavelmente presente em
descrições da parusia, quando será o executor do juízo divino sobre a terra (Mc
8.38) - não há porque pensar na referência ao Filho do Homem como algo de cunho
puramente escatológico, visto as inúmeras citações existentes, em diversas
situações, do título. Nos logia de Jesus, igualmente, as expressões
"homem" e "Filho do Homem" são aplicadas com conotações
distintas: a primeira para indicar algum homem, de modo geral; a segunda usada
especificamente para Jesus. Mesmo barnasha não possuindo uma tradução
inequívoca, os contextos nos quais aparece relacionado a Cristo sugerem ser um
título aplicado a ele. Ademais, é simplista "e sumário afirmar que os
evangelistas foram os que puseram este título nos lábios de Jesus, (...) a
designação de Jesus como 'Filho do Homem' não é, de modo algum, corrente no
cristianismo primitivo".
A conclusão
de Cullman é que Jesus, ao aplicar tal título a si mesmo, não estava
simplesmente realçando sua humanidade, como a dogmática insiste ao opô-lo à
idéia de "Filho de Deus". Supõe sua preexistência e sua aparição na
era escatológica - conforme a crença judaica corrente no homem celestial -,
assim como sua encarnação e humilhação, pois o Filho do Homem representa o povo
e o substitui ao sacrificar-se. No restante do Novo Testamento ele é aquele que
"esvaziou-se" de sua glória (Fp 2.6 e ss.), fazendo-se
"carne" (Jo 1.14) e a figura apocalíptica que virá no juízo (Ap
14.14). Segundo Cullman, exceção feita à interpretação cristológica à luz da
imago Dei empreendida por Karl Barth, não há um esforço de construção de uma
cristologia calcada na concepção de "Filho do Homem". Esta se
justifica, mormente, pela necessidade de redefinição do problema das duas
naturezas, insolúvel pela lógica formal.
A OBRA
PRESENTE DE JESUS CRISTO
Senhor
A fé cristã
não limita a atuação de Jesus ao passado, nem apenas nutre a expectativa da
vinda do reino escatológico. Crê, sim, em sua atuação presente junto aos seus e
à sua Igreja; pressupõe um ministério atual de intercessão junto ao Pai e de
autoridade sobre a comunidade cristã, como cabeça a dirigir os movimentos e
ações do corpo.
Cullman vê
na denominação "Senhor", Kyrios, a indicação dessa crença por parte
dos primeiros cristãos. Destaca, ainda, que tal designação possuía significado
específico no meio helênico e, rejeitando qualquer explicação que confira a tal
ambiente a exclusividade de dirigir a Jesus este título reconhece, todavia, sua
grande influência pelo uso corrente do termo no paganismo helenístico oriental.
Refutando a
suposição da inserção de Kyrios puramente pelos escritores helenistas do Novo
Testamento, Cullman identifica a aparição da expressão como reação cristã aos
"senhores", Kyrioi, divindades pagãs às quais era dispensado este
tratamento. Os cristãos reconheciam um só Senhor, Jesus Cristo, cuja revelação
desmistificara todos os outros supostos kyrioi (1 Co 8.5 e ss.). Evoluindo de
simples referência a autoridades políticas e jurídicas para forma de tratamento
ao imperador como reconhecimento de sua divindade; adquirindo uma significação
cuja concepção associava estes dois sentidos ao ser empregada no culto ao
soberano, prática religiosa oriental e estrategicamente fomentada por Roma; e,
por sua conotação religiosa, provavelmente tendo inspirado a gematria do
apocalipse joanino, "pode-se dar por coisa certa que a profissão de fé
Kyrios Iesous Christos, onde ela ocorre no Novo Testamento, representa uma
espécie de resposta polêmica ao mesmo título Kyrios conferido às divindades
helenísticas e ao imperador..."
No judaísmo,
o vocábulo hebraico Adonai fora substituto do tetragrama sagrado JHVH, prática
corrente contemporânea aos primórdios do cristianismo. Nota-se na Septuaginta
esta palavra traduzida por Kyrios como referência a Deus. O correspondente
aramaico é mar, de onde é derivada a expressão cristã bíblica Maranatha, porém
sem ter seu emprego relacionado a Deus nos escritos aramaicos do Antigo
Testamento. A discussão recai, diante do ocorrido no helenismo e no culto
judaico, sobre a possibilidade do uso aramaico palestino de mar como forma respeitosa
de se dirigir a alguém - a exemplo dos discípulos no trato com seu rabbí - ter
evoluído ao patamar de título cristológico reconhecido pela comunidade
primitiva. Com Bultmann, eruditos defendam a descontinuidade de seu uso, uma
origem helênica desta categoria sem algum vínculo com o sitz im leben
palestino. Recorrendo à citação litúrgica cristã Maranatha, encontrada também
no Didaquê e cuja provável tradução é "Senhor nosso, vem!", Cullman
conclui que em aramaico Jesus é descrito como "Senhor" em sentido
mais profundo, análogo ao uso judaico e helênico:
"Sem
dúvida, no terreno do helenismo, o uso pagão do termo Kyrios, seu vínculo com o
culto do soberano e, primordialmente, o fato de que por este termo os LXX
tenham traduzido o nome de Deus, contribuíram para fazer de Kyrios o título
mais corrente para designar o Cristo".
A confissão
de fé em Jesus, o Kyrios, expressa em 1 Co 12.3, em detrimento do uso aramaico,
justifica-se pela oposição aos outros "senhores" através do
reconhecimento da superioridade de sua realeza e força, acima de qualquer
imperador, pois é o "... 'Rei dos Reis'. Isto significa que o Kyrios é
Jesus, e não o imperador (Ap. 17.14)". Urgia fortalecer a convicção dos
cristãos a fim de não se curvarem diante do Kyrios Kaisar, tampouco maldizerem
a Cristo, quaisquer que fossem as circunstâncias, inclusive a morte. Jesus, o
Cristo e Senhor, domina hoje sobre toda a criação e trará a lume não somente
isto, como também reinará visivelmente, sujeitando todas as coisas. Contém a
tensão entre o "já" e o "ainda não" da dialética histórica
cullmaniana e, apesar de não ser a categoria cristológica mais antiga, é a mais
significativa, pois "... a partir da cristologia do Kyrios é que se tem
empreendido a síntese em que todos os aspectos associados aos títulos
cristológicos encontram seu lugar, conforme o papel que tem na história da
salvação. (...) é a única que torna possível o que podemos chamar de
cristologia do Novo Testamento" [itálicos do autor]. As Escrituras dizem
que Jesus assentou-se à direita de Deus, ao ser declarada a sua autoridade
exercida em nome do soberano criador, pela interpretação cristã do Salmo 110.1.
Segundo atesta a dogmática, a despeito das diferentes interpretações, desde a
Reforma, sobre as implicações do senhorio de Cristo e sua presença na
eucaristia:
"Quando,
na Igreja primitiva, Jesus foi chamado 'Senhor', o dito foi interpretado no
sentido de que Deus fala a Jesus. Entre a época de seu ministério terreno e de
sua volta no fim do tempo para julgar o mundo, Jesus governa agora como o
Senhor da história e da Igreja".
Salvador
Pela
primazia do pensamento sobre Jesus como o "Senhor", conforme visto
acima, o título "Salvador", tão mencionado em nossos dias, é pouco
utilizado no Novo Testamento; quando o é - observação oportuna de Cullman -,
Sóter figura como mero complemento de Kyrios. Por outro lado, seu uso percorre
os escritos do Antigo Testamento e do judaísmo, desde épocas remotas, como
atributo de Deus e do Messias que havia de vir. No helenismo, o termo
aplicava-se aos deuses que intervinham na história, às autoridades humanas
quando da libertação de determinado povo da opressão e dos males sofridos e,
ainda, ao imperador romano. Menos preciso é o seu sentido nas religiões de
mistério: provavelmente referia-se às divindades ligadas à imortalidade. Digno
de nota é a ausência do termo nos evangelhos, o que demole a idéia da
referência a Jesus como taumaturgo, segundo tese de Harnack, e aponta para uma
utilização posterior associada à obra total de Cristo como entendida pelos primeiros
cristãos, concentrando a discussão numa exegese filológico-histórica à moda de
Cullman, evitando uma "psicologização" da atribuição do conceito de
Sóter a Cristo, evocada sob o pretexto de se empreender a busca do Jesus
"judeu" ou "histórico".
O
significado do nome "Jesus" é sugestivo, pois já o identificava como
"Salvador", revelando-se o cumprimento das profecias a respeito da
salvação de Deus, a consumação da expectativa messiânica e o propiciador da
remissão dos pecados de Israel. Para Cullman:
"Trata-se,
pois, principalmente da transferência a Jesus de um atributo que o Antigo
Testamento reserva a Deus. (...) Sem dúvida, aqui estamos dentro de categorias
de pensamento que são mais judeu-cristãs do que pagã-cristãs. O Cristo é Sóter
porque nos salvou do pecado".
Uma outra
constatação pode ser feita pela ausência de "Salvador" no Novo
Testamento: seu uso remonta a um período anterior aos escritos paulinos, cujo
estilo menciona a salvação através de Jesus Cristo sem usar o título. Não
obstante, a expressão cristã primitiva Icthys sugere a plena consciência dos
cristãos do período apostólico a respeito de Jesus Sóter.
A
DIVINDADE DE JESUS CRISTO
Sua existência anterior à encarnação
Como bem
reconhece Cullman, sua classificação dos títulos atribuídos a Jesus facilita o
estudo sistematizado da cristologia do Novo Testamento, não constituindo uma
rígida formatação. Isso porque certas designações de Jesus relacionam-se com
outros temas além daqueles nos quais estão inseridos. Assim sendo, certos títulos
acima estudados implicam a divindade de Jesus ou sua preexistência; contudo,
são os de Logos, "Filho de Deus" e "Deus" que sugerem tais
categorias de modo mais direto. Em sua introdução à quarta divisão de sua obra,
sob o tema "Títulos referentes à preexistência de Jesus", Cullman
enfatiza sua convicção que especulações sobre as naturezas da pessoa de Jesus
não conferem uma real compreensão da revelação divina:
"...
veremos que estes termos [Logos e 'Filho de Deus'] tampouco contemplam uma
unidade de essência ou de natureza entre Deus e o Cristo; trata-se de uma
unidade de ação, na obra da revelação. (...) resulta daí o paradoxo de que o
Pai e o Filho são, ao mesmo tempo, um e diferentes. Se os teólogos posteriores
não puderam dar uma explicação satisfatória deste paradoxo, deve-se ao fato que
o tentaram por especulações filosóficas".
No início do
Evangelho de João e em Apocalipse 19.13 aparece o termo Logos. O evangelista
tencionou demonstrar que o Filho do Homem fizera-se carne, tornara-se humano e
habitara no mundo. Sua origem, portanto, era celestial e sua preexistência
remontava à criação de todas as coisas. "No princípio" foi o início
escolhido para o quarto evangelho, a fim de vincular Jesus ao relato de
Gênesis, ao bereshit. O conceito de Logos está presente no pensamento grego
antigo, sendo amplamente difundido na Antigüidade e tendo influenciado o
judaísmo tardio e o helenismo. Seja como força impessoal a reger o universo e a
iluminar a razão, seja como personificação com facetas mitológicas, passando
pelo idealismo platônico, a idéia do Logos jamais assumiu, a não ser em sua
versão joanina, a possibilidade de encarnação. Cullman rejeita, sob a pecha da
simplificação esquemática, a proposta de Bultmann que relaciona o Logos
judaico-helenista e cristão a um possível modelo gnóstico - mítico e doceta -
da personificação de um mediador entre Deus e os homens. Ele tentará provar que
o Evangelho de João, "... pelo contrário, submeteu cabalmente a concepção
não cristã ou pré-cristã de Logos à suprema e única revelação de Deus em Jesus
de Nazaré, dando-lhe assim forma inteiramente nova".
Esta forma,
segundo Cullman, conquanto admita certa semelhança à personificação do Logos
como mediador e salvador, é influenciada pela reflexão em torno da
"Palavra de Deus", do "Verbo", herdada do Antigo Testamento
e do judaísmo. No relato da criação, Deus dá origem ao mundo pela sua
"Palavra". Em outros textos, como em Salmos e Isaías, a Palavra
cumpre os desígnios divinos, na forma de força autônoma a agir no universo. Em
Fílon, o Logos começa a ganhar contornos de ente personificado; no judaísmo
tardio, a "Sabedoria" aproxima-se ainda mais da noção do Logos
joanino (Pv 8:22-26; Sabedoria de Salomão 7.26). Ainda assim, Cullman adverte
que "... esta Palavra (...) poder finalmente encarnar-se no quadro
histórico de uma vida humana e terrena, é coisa tão estranha a uma como a outra
[judaísmo bíblico e tardio]".
O Logos
cristão é fruto da reflexão sobre Jesus como a revelação de Deus e, ao mesmo
tempo, portador dela. Ele é a "Palavra" e traz a palavra, o anúncio
da salvação aos homens. É mais que uma voz, como o Batista; é a revelação de
Deus em si, em sua pessoa e obra. Nisso, as semelhanças entre o prólogo de João
e os versos iniciais de Hebreus 1 são incontestáveis, não obstante as
diferentes ênfases; o primeiro introduz o relato obra sobre a vida e a obra do
Cristo encarnado e, o segundo, um sermão apologético da eficácia de seu
sacrifício e de sua obra presente. O "Verbo" como hipóstase é
descrito no evangelho de João como aquele que "estava com Deus" e
"era Deus". Esclarecidas, como estão hoje, as questões filológicas
envolvidas e as tentativas de racionalização do problema levantado no prólogo
de João, resta a Cullman asseverar:
"Devemos
deixar este paradoxo subsistir em toda a cristologia. (...) Aliás, voltamos a
encontrar o mesmo paradoxo no curso do [quarto] Evangelho; (...) em virtude da
própria natureza do Logos, não se pode falar dele senão em referência à ação de
Deus".
Há pontos de convergência e divergência entre Cullman e a dogmática. Enquanto a
análise cullmaniana restringe-se à revelação histórica de Deus em Jesus, em
termos de instrumentalidade e sem pensar em questões ontológicas, a dogmática
permite-se falar dele como Filho, Segunda Pessoa da Trindade e igual ao Pai
enquanto Ser, "presença viva de Deus na carne". Por outro lado, o
universalismo do Cristo, como revelação de Deus ao mundo e não simples dogma
religioso ou possibilidade de sincretismo a partir de outras
"revelações" não cristãs, é compartilhado pelas perspectivas
cullmaniana e dogmática de compreensão da figura transcendente do Logos.
Sua
filiação divina
Ao tratar
sobre Jesus como o "Filho de Deus" em Cullman, necessário se faz ter
em mente sua proposta inicial, apresentada acima, de desconsiderar a discussão
sobre as naturezas e a co-substancialidade do Filho em relação ao Pai. O
interesse do estudo deve recair sobre a revelação de Deus em Jesus e no
conteúdo dado por este e pelos autores bíblicos aos títulos cristológicos.
Portanto, a expressão "Filho de Deus" não diz respeito à essência de
Jesus, tampouco se refere apenas à sua divindade, haja vista outros títulos
aludirem a tal; antes, descreve o relacionamento específico daquele que fora
enviado por Deus para revelar Sua Pessoa e vontade.
A influência
helenista do conceito de "Filho de Deus" no cristianismo é vista por
Cullman como limitada. Seu uso era vasto, aplicando-se a monarcas, taumaturgos,
pessoas que manifestavam poderes sobrenaturais, além de estar presente como
expressão comum em obras antigas. "A pretensão destes homens de serem
'Filhos de Deus' baseia-se unicamente na convicção que tinham de serem dotados
de forças divinas". O politeísmo helenista não admitiria, como tentou
demonstrar Bultmann, uma idéia monoteísta de "Filho de Deus".
No Antigo
Testamento, eram assim chamados, de forma mítica, os anjos (Gn 6.2). O povo de
Israel é designado como primogênito de Deus (Ex 4.22 e ss.); o rei entronizado,
como representante da nação, era adotado por Deus como filho (2 Sm 7.14, Sl
2.7); e o Messias, em sua realeza, provavelmente era visto no judaísmo como
eleito do Senhor "para realizar uma missão divina particular, e obedecer
estritamente ao chamado de Deus". Nesse sentido parece caminhar o
significado de "Filho de Deus" aplicado a Jesus nos sinóticos. Ele
não é reconhecido assim por ser um taumaturgo ou possuir poderes
extraordinários, mas por estar disposto a levar a efeito a incumbência dada a
Ele pelo Pai; este o chama de "Filho" na ocasião do batismo. No
relato da tentação, o diabo procura instigá-lo a desejar riquezas e a fazer
milagres para que se desvie dos propósitos divinos. Entretanto a expectativa
messiânica não se compatibiliza com a concepção do Ebed sofredor, estreitamente
associada à missão do Filho. O trecho de Mt 16.16-19 sugere que a confissão de
Pedro sobre a filiação de Jesus implicaria na aceitação de seu sofrimento e
morte, motivo pelo qual Pedro é duramente repreendido. A conclusão de Cullman é
que Jesus designou-se como "Filho de Deus", demonstrando sua consciência
de intimidade ímpar com o pai e zelando por separá-la de qualquer associação
com uma realeza messiânica.
Dentre os
evangelhos, João explora a autoconsciência de Jesus de ser o "Filho"
e Marcos ressalta a fé no Filho de Deus; Mateus e Marcos procuram traçar sua
origem humana, cujo nascimento virginal denotaria sua origem também divina. A
íntima relação entre Jesus e o Pai aparece nos sinóticos com clareza em Mt
11.27, em raro momento, diversamente do quarto evangelho em suas declarações
sobre o "Filho". Por isso, exegetas têm questionado a autenticidade
da passagem sinótica, classificando-a como glosa deliberadamente confeccionada
com moldes joaninos, tese rejeitada por Cullman, entre outros estudiosos de
vulto, cujo entendimento é que tal verso "pode, com efeito, 'ter sido
pronunciado em virtude de uma consciência da preexistência'".
Nas
confissões de fé da igreja primitiva indubitavelmente estava presente a crença
no "Filho de Deus". Apesar de pouco aparecer fora dos evangelhos, é
evidente no relato do batismo do eunuco etíope em Atos 8, em Paulo (Rm 1.3,
confissão provavelmente antiga), na polêmica de 1 João e na fórmula ICQUS. Ao
citar 1 Co 15.28, Cullman reitera o que considera o sentido mais profundo da
união entre o Pai e o Filho Unigênito:
"Esta é
a chave de toda a cristologia do Novo Testamento: falar do Filho não tem
sentido senão em relação à obra de Deus e não em relação ao seu 'ser'. (...) Do
'Filho de Deus', como do Logos, se pode dizer: ele é Deus, enquanto Deus se
revela em sua obra da salvação, obra da qual fala todo o Novo Testamento".
Jesus
como "Deus"
Em Cullman,
Jesus é "Deus enquanto se revela". Somente há sentido em se falar de
sua divindade quando associada à história da salvação, pois assim Deus se
revelara nas Escrituras, cuja concepção de Deus não é esgotada. Em sua opinião,
as passagens bíblicas onde Jesus é chamado "Deus" apenas corroboram
aspectos contidos em outros títulos cristológicos; por outro lado, pelas óbvias
implicações impostas pelo tema, são mais suscetíveis às pressuposições do
exegeta, conservadores ou liberais. Nos sinóticos, o próprio Jesus e os
evangelistas não se preocupam em descrever o Cristo como "Deus" ou
Kyrios. Contudo, "... o cristianismo primitivo não teme aplicar a Jesus,
ao dar-lhe o título de Kyrios, tudo o que o Antigo Testamento diz acerca de
Deus". O evangelho de João não afirma que Jesus é simplesmente divino,
mas, em seu prólogo e em sua confissão de fé final, que estava com Deus e é
Deus em sua revelação (1.1; 1.18 como lectio difficilior; 20.28, cf. 1 Jo
5.20). Visto por Cullman estreitamente relacionado ao estilo joanino, a
epístola aos Hebreus cita, em seu primeiro capítulo, o salmo 45:7-9,
enfatizando que o vocativo "ó Deus" refere-se a Jesus. Paulo entende
ser ele imagem de Deus, expressão de seu ser, o Kyrios; diretamente, porém,
apenas em Rm 9.5 e Tito 2.13, é provável filologicamente que o apóstolo aos
gentios tenha dito que o Cristo é "Deus". Ao afirmar que esta idéia
esteja presente também em 2 Pe 1.1 e Atos 20.28, Cullman conclui que "...
naquelas poucas passagens do Novo Testamento onde Jesus recebe o título 'Deus'
esta qualificação se liga, por um lado, a sua elevação à dignidade de Kyrios
(Epístolas de Paulo, 2 Pedro), e por outro, à idéia de ser, ele mesmo, a
revelação (escritos joaninos, Hebreus)" [sic].
CONCLUSÃO
Na última
parte de sua obra, Cullman sumariza algumas de suas conclusões e reflete sobre
as implicações de sua metodologia histórica. Percebe o mérito de sair do lugar
comum de certas escolas teológicas - por exemplo, a expectativa da parusia na
igreja primitiva -, através de uma visão mais abrangente e investigativa,
portanto menos reducionista do processo de construção das diversas perspectivas
cristológicas existentes no Novo Testamento. Em suas palavras:
"Ainda
hoje não há outro 'método' de compreender a cristologia, senão aquele que está
exposto nos capítulos 5-8 do Evangelho de João. Pois para o homem de então era
tão difícil, como é para nós, crer no que para os judeus era um 'escândalo' e
para os gregos uma 'loucura'".
BIBLIOGRAFIA
BRAATEN, Carl E., JENSON, Robert W. Dogmática
cristã. São
Leopoldo: Sinodal, 2 v., 1990.
CULLMAN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Liber, 2001.
VERMES, Geza. Jesus e o mundo do judaísmo. São Paulo: Loyola, 1996.
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