A Guerra Espiritual e o dilema de Jó
Quando me
convidaram para falar sobre o tema da Palavra de Deus e a guerra espiritual,
minha primeira reação foi a de não aceitar. Não é um tema que tenho me dedicado
ao estudo com o mesmo interesse que outros irmãos vem fazendo, pelo menos, não
na mesma direção com que muitos tem trabalhado.
Minha
primeira tentativa foi a de apresentar uma nova proposta de leitura bíblica,
uma vez que considero que a grande guerra espiritual que enfrentamos hoje se dá
dentro da própria igreja, e tem a ver com o analfabetismo bíblico e teológigo
que tem levado muitos a naufragar nas trevas da ignorância, da superstição e do
chamado neo-paganismo.
Os
reformadores acreditavam que a grande contribuição da igreja no final da idade
média era o de libertar os homens da cegueira da ignorância, e conduzi-los,
pela Palavra de Deus, à luz libertadora do evangelho de Jesus Cristo. Enviei
meu texto para o Tito Paredes que teve o trabalho de traduzi-lo e enviá-lo aos
redatores. No entanto, depois de conversar com alguns amigos, reconheci que o
que havia enviado não correspondia ao tema que me foi proposto. Retornei à mesa
para pensar numa nova tentativa. Considerando o tempo e a abrangência do tema
que hoje extrapola até mesmo os limites da Bíblia, concluí que deveria
abordá-lo dentro de um campo mais específico. Foi aí que me lembrei de Jó.
A história de
Jó é uma história de guerra espiritual que se dá, não apenas no íntimo, mas que
também tem seus reflexos na teologia, nas estruturas e nas relações.
É uma guerra
onde o objetivo principal não é o de medir forças e ver quem tem mais poder,
mas de nos transformar a fim de compreendermos com maior clareza os propósitos
eternos de Deus.
Não será uma
abordagem voltada para a dimensão missionária da igreja, mas sim para o
processo transformador que a luta espiritual desencadeia. É neste contexto que
pretendo refletir sobre guerra espiritual vivenciada por Jó. A forma como ele a
enfrentou e as mudanças que ela trouxe sobre sua vida, teologia e relação com
Deus e o próximo, serão o objetivo desta pequena reflexão.
O cenário do
guerra
Os primeiros
dois capítulos do livro de Jó definem o campo e os personagens deste conflito.
Temos de um lado Deus que nos é apresentado como o Senhor soberano sobre tudo o
que acontece na terra e no céu. As ações dos anjos e dos homens não lhe escapam
aos olhos. Walter Wink afirma que "a fé no Israel primitivo, na verdade
não tinha lugar para Satanás. Somente Deus era o Senhor e tudo o que acontecia,
para o bem ou para o mal, era atribuído a Deus. "Eu mato, e eu faço viver;
eu firo, e eu saro; diz o Senhor" .
Para o Velho
Testamento, Deus sempre era a causa primeira e última de tudo o que acontecia
no céu e na terra; ele assume total responsabilidade sobre o bem e o mal. Este
é um conceito importante que veremos na forma como Jó enfrenta seu conflito
espiritual.
De outro
lado, temos o próprio Satanás, que se apresenta diante de Deus junto com os
"filhos de Deus". Ele nos é apresentado como um acusador, expressão
usada no Novo Testamento para definir seu papel. Ele levanta suspeitas quanto
às motivações de Jó em ser tão íntegro e reto diante de Deus. Suas dúvidas
colocam sob suspeita o testemunho de Deus e, consequentemente, as relações
entre Deus e o homem. Ele não tem um poder próprio e não age independentemente
de Deus. Suas ações, Deus assume como sendo suas próprias ações quando afirma
que Satanás o havia "incitado contra ele (Jó), para o consumir sem
causa" (Jó 2:3b). Satanás também reconhece isto ao dizer a Deus
"estende, porém, a tua mão, toca-lhe nos ossos e na carne, e verás se não
blasfema contra ti na tua face!" (Jó 2:5).
Embora a
maldade tenha sido proposta e executada por Satanás, ele próprio reconhece que
é a mão de Deus, em última análise, a responsável pelas aflições de Jó. Satanás
não é um ser autônomo, independente, com liberdade plena para agir e fazer o
que lhe interessa.
Por fim temos
Jó, aquele sobre quem Satanás levanta suas suspeitas e que, aos olhos de Deus,
é um homem íntegro, reto, temente a Deus e que se desvia do mal. O alvo das
acusações de Satanás é o homem em sua relação com Deus. Ele não duvida do que
Deus afirma sobre seu servo Jó. Sua dúvida repousa sobre as motivações, as
intenções secretas da devoção de Jó. Estas suspeitas não comprometem apenas as
intenções de Jó mas, sobretudo, a aliança que Deus estabelece com seu povo.
A tese
levantada é a de que ninguém adora e serve a Deus por nada. Por detrás de toda
a retidão e integridade, o homem esconde sua verdadeira motivação que é a
recompensa que espera receber de Deus. Satanás duvida que alguém possa amar a
Deus sem esperar alguma retribuição. Se as suspeitas de Satanás forem
confirmadas, ele encontra a justificação para sua própria queda.
O centro da
guerra espiritual se dá na arena do conflito relacional e afetivo e não no do
poder.
A estratégia
de Satanás
Deus aposta
no poder do amor, do relacionamento que existe por causa do afeto. Este é o
poder que ele dispõe para enfrentar a aposta que Satanás propõe. Por natureza,
é um poder frágil, cuja força está em cativar o coração e obter deste uma
resposta igualmente afetiva e amorosa.
A guerra
espiritual, na perspectiva de Jó, não é uma disputa de poder entre duas forças
que se digladiam buscando provar quem é maior e o mais forte. Antes, é um
conflito entre Deus, que ama gratuitamente e incondicionalmente e o acusador
que usa todos os recursos possíveis para provar a impossibilidade deste amor. O
que está em jogo na aposta entre Deus e Satanás é a relação de Jó com seu
Senhor.
Numa outra
cena semelhante, a da tentação no deserto, o que está em jogo ali é também a
mesma coisa. Quando Satanás se aproxima de Jesus para tentá-lo, a primeira
pergunta foi: "se és Filho de Deus, manda…" A dúvida lançada não era
em relação ao poder de Jesus de transformar pedras em pães ou saltar do alto do
templo e ordenar aos anjos que lhe socorressem. A dúvida era em relação à voz
que ele acabara de ouvir no Jordão dizendo: "este é o meu Filho amado em
quem tenho o meu prazer".
A preocupação
de Satanás não está no poder de Jesus para transformar pedras ou dar qualquer
show que demonstre sua habilidade em manipular as forças cósmicas; sua
preocupação está em levantar suspeitas, colocar sob dúvidas e, por fim,
arruinar a relação única que o Filho tem com o Pai.
Durante toda
a vida e missão de Jesus, sua luta espiritual foi preservar o vínculo amoroso,
afetivo e obediente que ele tinha em relação ao Pai. Seu último suspiro, depois
de toda a vergonha e humilhação do Calvário, foi mais uma vez afirmar seu amor
ao Pai dizendo: "Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito".
Foi esta
relação de amor e afeto que venceu o pecado, que trouxe o triunfo da cruz. A
cruz é o triunfo do amor sobre o poder. A opção pelo poder é uma opção maligna.
É por isto que Jó recusa o caminho tão comum e popular da guerra espiritual
moderna, o do dualismo, que vê o mundo dividido entre dois grandes poderes,
duas grandes forças que disputam o domínio e o controle dos homens e da
história.
Recentemente,
foi publicado no Brasil um livro sobre a batalha espiritual que define a
batalha espiritual com os seguintes dizeres: "Há no mundo dois reinos em
conflito, duas forças que se chocam em combate pelo destino eterno dos seres
humanos, dois poderes em confronto: O poder das trevas contra o poder da
luz".
Para o
editor, o mundo está literalmente dividido entre duas grandes forças, uma do
bem e outra do mal, e que precisamos urgentemente optar por um lado, sacar as
armas espirituais e partir para defender o ameaçado reino do Senhor Jesus.
Jó não vê o
mundo assim. Para ele, o Senhor reina. Logo após ter sido violentamente
afligido pelas catástrofes provocadas por Satanás, ele não diz: "O Senhor
deu e Satanás tomou, agora devo amarrar e reivindicar o que me foi
tirado"; pelo contrário, sua afirmação revela que, mesmo tendo sido
Satanás o autor de toda a desgraça que sobreveio a ele e sua família, ele
continua colocando Deus no centro de todos os acontecimentos ao declarar:
"o Senhor deu, o Senhor tomou, bendito seja o nome do Senhor".
Quando abraçamos
o dualismo, a guerra espiritual transforma-se numa disputa de poder; temos que
provar quem é mais forte, mais competente. Entramos na arena criada pelo
próprio Satanás e passamos a lutar com suas armas. Optamos pelo poder, pelo
domínio, e caímos na grande armadilha que ele nos preparou. Jesus, quando
provocado, nunca se valeu do seu poder para se auto afirmar perante Satanás ou
mesmo o mundo. Um dos ladrões que fora crucificado com ele disse-lhe: "Não
és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós também", no entanto, Jesus não
precisou dar nenhuma prova do seu poder para mostrar que era de fato o Cristo
de Deus, porque o seu poder fora definido na voz do Jordão.
Um dos
perigos que a guerra espiritual trás é o de induzir-nos a usar as mesmas armas
de Satanás, as armas do poder. O mundo não está dividido entre duas grandes
forças. Por isto, como afirma C. S. Lewis, não há uma guerra espiritual mas
sim, uma rebelião interna e o rebelde encontra-se sob controle. O poder que
venceu o pecado foi o poder do amor, da encarnação, da entrega, da doação. Esta
é a arma da nossa guerra. O que Satanás queria era mostrar que ninguém ama a
Deus por nada, que ninguém busca e serve a Deus simplesmente por que Deus é
Deus; que a integridade e retidão de Jó nada mais eram do que artifícios para
conquistar os favores de Deus.
É importante
notar que as armas de Deus não são as mesmas de Satanás. Enquanto Satanás se
vale da violência, destruição, sofrimento e dor, mostrando seu arsenal
poderoso, Deus se vale da aliança feita pelo seu nome.
Esta
compreensão dualista da guerra espiritual que tomou conta da igreja evangélica
no Brasil e na América Latina tem causado outras conseqüências previsíveis como
o surgimento da teologia da prosperidade e a ambição pelo poder político. Ambos
são reflexos de uma mesma visão espiritual que coloca os crentes dentro da
arena criada Satanás onde ele mesmo é quem distribui as armas. Na luta pelo
poder, seja ela qual for, Satanás será sempre o vencedor. As armas de Deus são
outras, seu poder transforma a vida e a alma humana, nos livra das ambições do
poder, nos tornam mais submissos e obedientes a ele e sua Palavra, mais
comprometidos com o seu reino e sua justiça.
As
transformações em Jó
Como já
vimos, o drama de Jó reflete uma aposta que Deus e Satanás fizeram em relação
às motivações secretas que levam-no a ser íntegro e reto. Deus aposta na
resposta do amor, e Satanás na da retribuição como expressão do egoísmo. O
sofrimento imposto a Jó é para provar de que lado ele vai ficar.
Os amigos
entram em cena e logo mostram que sua teologia reforça o argumento de Satanás.
Para eles a lógica é simples: Deus abençoa o justo e pune o pecador, portanto,
se Jó esta sofrendo, é porque pecou. Sendo assim, ele deveria reconhecer seu
pecado, confessá-lo, a fim de receber de volta o que lhe havia sido tirado.
Noutras
palavras, Jó deveria buscar a Deus, não por causa de Deus, mas por causa dele
mesmo. Ele era a razão da sua fé e o objeto do seu amor. Jó, no princípio
embora adepto desta teologia da retribuição, rejeita este argumento e reafirma
sua inocência.
Na sua luta
espiritual, ele tem uma opção em três: reconhecer que seus amigos têm razão e
que Deus é justo, o que o levaria a negar sua inocência e a buscar a Deus por
causa de si mesmo; reconhecer que seus amigos têm razão e que ele é inocente, o
que o levaria a negar a Deus, e reconhecer que Deus é justo e que ele é
inocente, o que o levaria a negar a teologia dos amigos.
Jó opta pela
última. Esta opção o leva a experimentar uma profunda transformação na sua
linguagem que Gustavo Gutiérrez chama de "Linguagem Profética e a
Linguagem da contemplação".
A linguagem
profética nasce da constatação que Jó teve de que há outros inocentes como ele
no mundo, que sofrem a opressão daqueles que ambicionam o poder. Ele começa a
falar para os pobres e sofredores com a linguagem de quem conhece a dor do
inocente.
A linguagem
da contemplação nasce da revelação de Deus como Senhor livre e soberano, cujos
atos e justiça não são determinados pelo homem, mas pela gratuidade do seu
amor. Ao reconhecer a grandeza e majestade de Deus, Jó se curva e declara que
agora seus olhos o vêem. O propósito da guerra espiritual na experiência de Jó
não foi determinada pela sua capacidade de vencer as catástrofes, nem mostrar
que o poder de Deus é maior que o de Satanás. O propósito foi o de render seu
coração, transformar sua teologia (uma vez que ele pensava como seus amigos) e
viver um encontro com Deus que transformou sua linguagem sobre Deus.
A derrota de
Satanás não foi medida pelo poder, mas pela rendição ao amor gratuito e
incondicional de Deus. Penso que esta foi também a guerra espiritual vivida por
Pedro quando o próprio Senhor o chamou e disse: "Simão, Simão, eis que
Satanás vos reclamou para vos peneirar como trigo. Eu, porém, roguei por ti,
para que a tua fé não desfaleça; tu, pois, quando te converteres, fortalece os
teus irmãos" (Lc. 22:31, 32).
A resposta de
Jesus a Satanás que reclamou o desejo de peneirar a Pedro não foi aquela
clássica de nossas batalhas espirituais: "tá amarrado". Pelo
contrário, Jesus disse apenas que iria orar por ele para que sua fé não
desfalecesse. Era necessário que Pedro passasse pela peneira. Sua índole era
por demais impulsiva. Suas armas de guerra precisavam ser neutralizadas para
que pudesse humildemente confessar seu amor ao Senhor.
Tudo o que
Jesus queria era uma declaração de amor, e não a arrogância do poder. Pedro foi
também transformado pelo poder do amor de Deus e experimentou uma nova
linguagem para falar de Deus.
A guerra
espiritual e o silêncio de Deus A luta espiritual vivida por Jó, Jesus e Pedro,
tem um elemento comum que é o silêncio de Deus. Parece-me que em todas elas
Deus permite aquilo que Jesus afirma acerca de Pedro: deixar que Satanás o
peneire. O Silêncio de Deus não é o silêncio da indiferença, mas o da oração e
da intercessão.
A resposta
final deste silêncio é a afirmação de que, apesar do sofrimento imposto por
Satanás, nosso coração continua sendo eternamente de Deus. A afirmação do amor
que temos pelo Senhor é a resposta final de toda a luta espiritual.
Não se trata
de uma disputa de poder, de demonstrar quem é mais poderoso e domina o
universo; esta tentação Jesus venceu no deserto.
Deus não está
preocupado em demonstrar seu domínio e soberania porque ele é de fato o Senhor
absoluto e soberano e isto nunca foi colocado em disputa; sua glória ele não
divide com ninguém, nem mesmo com Satanás.
A razão da
guerra espiritual é demonstrar a quem nosso coração pertence. Diante desta
finalidade, Deus se faz silencioso na espera de nossa resposta. Em algumas
situações bíblicas onde Satanás impõe o sofrimento como instrumento de
desmascaramento de nossas motivações mais secretas, vemos que Deus guarda o
silêncio esperando nossa resposta. Foi assim com Jó, com Pedro e com o próprio
Senhor. Também foi assim com Abraão quando leva seu filho Isaque para o altar
do sacrifício. O papel de "acusador dos irmãos" mostra que Satanás
desempenha um lugar importante no plano eterno de Deus: o de denunciar nossas
máscaras e hipocrisias. É por isto que Jó, em momento algum de sua guerra
espiritual, trata com Satanás, mas com Deus. Deus é seu advogado e
justificador, é ele quem defende sua causa e é dele que Jó espera receber a
absolvição.
Conclusão
A percepção
da guera espiritual como uma disputa pelo poder de domínio e controle do homem,
do mundo e da história acabou levando a igreja evangélica a optar pelas mesmas
armas de Satanás, e perder o sentido mais profundo e verdadeiro da luta
espiritual que é o de nos transformar, transformar nossos conceitos, valores e
teologias que tentam enquadrar Deus nos esquemas malignos do poder. Nosso
chamado é para subir ao Calvário, para sofrer todas as implicações do amor e do
serviço, e resistir todas as investidas malignas que tentam nos afastar do caminho
para Jerusalém. A vitória espiritual é a resposta do amor incondicional e
desinteressado a Deus e ao seu reino. Enquanto permanecermos íntegros nas
nossas motivações e desejos; enquanto permanecermos no caminho do discipulado e
da cruz; enquanto permanecermos obedientes e submissos ao Senhor e sua Palavra,
permaneceremos do lado de quem é e sempre será o vencedor.
Artigo
publicado com autorização do autor.
1Wink,
Walter. Unmasking the Powers – The Invisible Forces That Determine Human
Existence. Fortress Press, Philadelphia, 1986,p.11 2Reddin, Opal. Confronto de
Poderes. Ed. VIDA, São Paulo, 1996. Coletânea de textos organizados por Reddin
sobre a perspectiva pentecostal da guerra espiritual. O texto citado
encontra-se na última capa do livro.
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