A
história ainda não está pronta.
Ricardo Gondim
As ruas de Mumbai (antiga Bombaim) expõem a miséria humana com
grande exuberância. Primeiro, devido a densidade demográfica que entulha as
pessoas; segundo, milhões são condenados a viverem abaixo da linha de pobreza
numa porcentagem avassaladora. Enquanto caminhava pelo centro desta cidade da
Índia, deparei-me com um homem jogado numa sarjeta. Imundo, quase nu, ele
literalmente se revolvia na lama mais fétida que se possa conceber. Sua imagem
impregnou tanto minha alma que não consigo esquecê-lo. Muitas vezes, quando
fecho os olhos para orar, ainda o contemplo e me indago se já morreu. Aquele
homem foi criado por Deus para viver e morrer daquela maneira? Quando
organizava o caos inicial, Deus planejou, em tempos remotíssimos, que ele
nascesse de uma casta baixa? Como a degradação de uma criatura pode trazer
glória para Deus?
Outro incidente não me abandona. Foi um desastre de
automóvel que me marcou de forma indelével. O carro que Carlinhos dirigia,
bateu de frente num poste, tirando-lhe a vida. Era um menino de 19 anos. Fui
chamado, às 5 horas da tarde, para ajudar Otávio, seu pai, a liberar o corpo do
necrotério. Na hora em que nos encontramos, ele me abraçou e chorou
convulsivamente, repetindo: “Por que Deus levou meu filho?”.
Entendo que os dois exemplos relatados são terríveis. Mas
auxiliam a indagar se é possível aceitar pacificamente que Deus controle tudo o
que acontece no universo. Será que Deus está causando todos os pormenores? Cada
mínima ocorrência foi planejada ou permitida por Deus para que algum “bom
motivo” seja alcançado?
Durante o enterro de Carlinhos, diversas pessoas tentavam
consolar seus pais afirmando: “Deus deve ter muito bons motivos, para levar o
seu filho”. Claro que “levar seu filho” não passava de um eufemismo para matar.
Mas como ninguém crê que Deus mataria um rapaz na flor da idade por pura
maldade, esses pensamentos eram suavizados pela crença de que Deus fez o que
fez, visando algum bem, tanto para o jovem como para sua família. Geralmente se
alega que esse “bem” ainda não pode ser percebido, mas que num tempo
apropriado, Deus revelará o porquê dos seus atos.
Paradoxalmente, em uma conferência latino-americana sobre
a missão integral da igreja, um renomado teólogo batista afirmou que as favelas
e o estado falimentar crônico dos pequenos países americanos não têm nada a ver
com Deus e sim com as estruturas econômicas perversas do continente. Se a
lógica sobre a morte de Carlinhos estiver correta, esse teólogo jamais poderia afirmar
tal coisa e nem Leonardo Boff poderia dizer em “Jesus Cristo Libertador”
(Vozes, 1988, 19) que: “[existe uma] presença de opressão e [uma] urgência de
libertação. Na fé, muitos cristãos compreenderam que tal situação contradiz o
desígnio histórico de Deus: a pobreza constitui um pecado social que Deus não
quer (o grifo é meu)’. Tanto a morte de um moço como a miséria teriam que estar
sob o mesmo controle. Não se pode conceber um universo determinado e fechado e
indeterminado e aberto ao mesmo tempo. É preciso escolher entre os dois.
Esses contra-pés, muitas vezes, não são vistos e nem percebidos.
Mas será que estas e outras perguntas precisam continuar sem respostas? Por
quanto tempo se permitirá que a teologia continue acirrando as tensões entre o
que se estuda nos bancos acadêmicos e o que se vive nas comunidades de fé?
Não chegou o tempo de tentar responder por que a
humanidade vive atolada em tanto desamor? Não é hora de encarar, sem medo, as
discrepâncias internas do cristianismo? O que a fé cristã tem para dizer sobre
o anacronismo da história que para se conseguir a paz, faz-se a guerra e para
evitar a guerra, arma-se para ela? Dos 3.400 anos que se pode datar da história
da humanidade, 3.166 foram anos de guerra. Os restantes 234 anos não foram
propriamente anos de paz, mas de preparação para a guerra. Há uma alienação que
permeia toda a realidade humana, individual, social e cósmica. Simplesmente
responder essas questões afirmando que tudo estava previsto na providência
eterna ou que é por causa do pecado de Adão, soa como uma fuga simplista e
desonesta. Torna-se necessário que os cristão reajam diante das idiossincrasias
da vida mais sintonizados com a humanidade e menos submissos aos dogmas da
teologia.
Existem vários modelos teológicos de como se olha para a
realidade humana. Primeiro, o fechado. Nesse modelo tudo foi providencialmente
criado por Deus e tudo cumpre um desígnio seu; nada acontece sem que tenha sido
decretado eternamente por Deus. Todos os seres humanos que nascem, todas as guerras,
todas as catástrofes, todos os gestos bons e maus de todas as pessoas,
simplesmente cumprem um plano eternamente concebido por Deus. Já que Deus não
pode nunca ser frustrado, não houve percalços. O trem da criação não
descarrilhou em momento algum e a humanidade navega como um navio que nunca
saiu de sua rota.
Mas como explicar coisas ruins se multiplicando? Como conciliar
um Deus onipotente e a maldade constatada? No determinismo teológico,
conclui-se que cada mínimo evento, bom ou mau, faz parte de um plano divino e
que redundará em honra e glória para Deus.
Há outro modelo em que Deus decreta tudo, inclusive, que algumas
dimensões de sua criação sejam livres. Ele possui, como criador, a prerrogativa
de estabelecer a priori o que quer que aconteça. E com essa prerrogativa, ele
determinou que exista liberdade real tanto para os seres humanos como para os
anjos. Assim, nem tudo o que se passa no mundo material ou espiritual é da
vontade de Deus. Nesse modelo, Deus respeita os seres humanos como legítimos
cooperadores na construção da história e deixa que muitas dimensões futuras
ainda não existam para que o desempenho da humanidade não seja fictício, mas
real.
Zwinglio M. Dias afirmou assim (Discussão sobre a Igreja, Vozes,
19):
“Ao criar o homem criador, o Deus criador – que não se
identifica com nenhum elemento da natureza ou do universo – o tornou
responsável por todo o mundo saído de suas mãos. Ao apresentar ao homem
primordial, Adão, as obras de seu gênio criador para que este as nomeasse, Deus
não fazia outra coisa que entregar ao seu cuidado o domínio do mundo e de tudo
o que nele há. O Deus bíblico, portanto, dessacraliza a Sua obra, ao entregá-la
ao homem para que a sujeite e dela desfrute. Pois será precisamente através
dessa atividade que o homem descobrirá sua identidade e a verdadeira essência
de sua natureza humana. Ao homem, é dada, então a possibilidade de inventar (o
grifo é meu) a história sob a direção de Deus e em meio ao exercício
responsável do senhorio que esse mesmo Deus lhe oferece sobre o mundo”.
Os teólogos que defendem o modelo fechado, acreditam que
Deus não pode, repetindo as palavras de Einstein, “jogar dados com o mundo”.
Então, entregar a criação nas mãos de homens foi apenas uma encenação? Para um
grande segmento da teologia clássica sim, tudo estava pronto e determinado por
Deus e as ações criadoras do homem eram só para o amadurecimento do próprio
homem, Nenhuma escolha, em última análise, alteraria em nada o que já fora
pré-determinado. Para esses teólogos, Deus é o Todo-Poderoso que não pode
permitir que algo aconteça contra sua vontade. Logo, sua soberania se impõe
sobre todos os outros atributos e que não há nenhum fato que não tenha sido
determinado pelo próprio Deus.
Esse pensamento teológico perpetua as concepções gregas
sobre a divindade e dentro desse modelo é absolutamente lógico e coerente. Ao
criticá-lo, não se tenta desmerecer a influência helênica na compreensão de
Deus. Deve-se ao pensamento grego, o diálogo entre crentes e filósofos enquanto
o cristianismo se expandia no ocidente. Mais tarde, na modernidade, os
pensadores cartesianos que questionaram a verdade, tiveram enormes dificuldades
para invalidar o cristianismo, graças aos paradigmas gregos que fundamentavam
diversos elementos da fé. Entretanto, como se preconizou na Reforma, a igreja
precisa continuar se reformando. Ela não pode estacionar naquela visão grega de
mundo e de Deus. Cada geração precisa elaborar a teologia da sua época.
Se os medievais projetaram em Deus, conceitos sociais e políticos
próprios de sua época, a geração atual não precisa repeti-los. Contemplar Jeová
como os gregos contemplavam seus ídolos do Areópago ou como os romanos
obedeciam a seus reis déspotas do século V, representa uma atitude dogmática e
obscurantista inaceitável.
Pode-se ler a Bíblia com outros óculos. Sem desprezar o dever de
casa já feito pelos concílios, teólogos e antigos eruditos da fé, é possível
resignificar alguns postulados cristãos que vinham sendo aceitos sem
questionamentos. Alguns deles, devido aos avanços ciências sociais, não podem
mais ser concebidos. Nos tempos de Paulo, tolerava-se a escravidão, Em sua
epistola a Filemon, ele não denuncia explicitamente esse comércio nefasto.
Hoje, nunca se admitiria que um líder cristão pedisse ao dono de um escravo que
se comporte apenas com mais humanidade. São atualizações sociais e conceituais
desse tipo que precisam acontecer com outras “verdades” intocadas pela
teologia.
Na pós-modernidade é possível ler a Bíblia sem a preocupação de
prová-la historicamente. Novos conceitos filosóficos sobre a verdade já não
obedecem aos paradigmas da racionalidade iluminista. Assim, não é errado, e nem
invalida a inspiração do Espírito Santo, considerar os relatos do Gênesis como
poesias alegóricas que celebram o “Fiat” Criador e não como verdadeiros
tratados de física e biologia sobre a origem do universo,
Mas o fundamentalismo, filho da modernidade, não pensa
assim. Ele trabalha com as mesmas ferramentas que os pensadores da modernidade.
Charles Hodge proclamou que a “religião tem de lutar por sua existência contra
uma vasta classe de cientistas” (Em Nome de Deus, Armstrong, Cia das Letras,
168). Principalmente os evangélicos norte-americanos, reagiram para mostrar na
“vasta classe de cientistas” que a fé cristã podia ser explicada seguindo uma
metodologia imparcial e empírica. Karen Armstrong denuncia a futilidade dessa
mentalidade (Armstrong:2000: 167):
“Trata-se de um desejo compreensível, mas os mythoi da Bíblia
nunca pretenderam ser factuais.. A linguagem mítica não pode traduzir-se em
linguagem racional sem perder sua razão de ser. Como poesia, ela contém
significados complexos demais para expressar-se de qualquer outra maneira. Ao
tentar transformar-se em ciência, a teologia só conseguiu produzir uma
caricatura de discurso racional, porque essas verdades não se prestam à
demonstração científica. Esse logos espúrio inevitavelmente contribuirá para
desacreditar ainda mais a religião”.
Os evangélicos latino-americanos floresceram sob essa bandeira;
sempre tentando transformar a Bíblia num livro “científico”. Quando Hodge
publicou sua Teologia Sistemática em 1873, havia um claro esforço para mostrar
que o teólogo não dever buscar significado além das palavras, mas “organizar e
sistematizar os claros ensinamentos das Escrituras”. Para ele, a verdade era
óbvia e estava pronta, bastava dar-lhe uma codificação “científica” e ela se
tornaria conhecida de todos. Essa predisposição fundamentalista de usar as
ferramentas cartesianas na abordagem da Palavra de Deus, significa que cada
palavra da Bíblia é inspirada e não pode ser perdida com alegorias ou
simbologias.
Nos últimos anos, o fundamentalismo, sob uma capa moralista e
defendendo a política de direita, ganhou novo impulso nos Estados Unidos. Desde
que Jerry Falwell e outros líderes evangélicos criaram a Maioria Moral,
recrudesceu a face mais beligerante do fundamentalismo. Na eleição do Bill
Clinton em 1992, Falwell anunciou que Satanás estaria à solta nos Estados
Unidos e que ele seria responsável pela derrocada final de seu país. Com a
eleição de George W. Bush, o fundamentalismo fez vítimas. A igreja evangélica,
em sua vasta maioria, apoiou ostensivamente a guerra no Iraque (mais de cem mil
mortos), invocando o conceito de guerra justa do Antigo Testamento. Seguiu-se a
lógica de que se Deus colocou o presidente no seu cargo, tudo o que ele
fizesse, obedeceria ao roteiro da providência eterna. Bush, aliado de Deus,
jamais poderia errar!
Contudo, existem grandes segmentos cristãos e evangélicos que
estudam a Bíblia sem precisar conferir-lhe o caráter científico de seus
predecessores fundamentalistas. Eles não desmerecem a revelação ou a inspiração
do texto sagrado, apenas usam lentes mais humanas e contemplativas para
percebê-lo. Esses pensadores e teólogos procuram afastar-se do “Deus-potência”
concebido nos paradigmas medievais, para o “Deus-relacional” e afetuoso que
Jesus de Nazaré revelou aos homens. Nesta ênfase teológica não se estuda sobre
Deus, fragmentando a Trindade. O Pai, Filho e Espírito Santo podem ser amados no
contexto da “comunidade eterna e feliz”.
A história não está completa. Deus ainda chama artesão
para serem Seus cooperadores. Essa convocação não subestima o poder do pecado,
mas exalta a graça. Partilho da idéia que Deus aposta nos homens ajudando
a construção do porvir. Basta que se aceite o convite de Miquéias
6.8:
“Ele mostrou a você, ó homem, o que é bom e o que o Senhor
exige: pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu
Deus”.
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