A Hermenêutica de Westminster:
O que a Confissão de Fé de Westminster diz sobre a
interpretação das Escrituras
O neoliberalismo
Muitos estudiosos e teólogos
modernos concordam que o antigo liberalismo, como movimento histórico do século
passado, está agonizando. Entretanto, muitos dos pressupostos do antigo
liberalismo quanto à interpretação das Escrituras têm sobrevivido e encontrado
expressão em várias correntes teológicas e hermenêuticas que historicamente
pertencem ao período pós-moderno.
O rótulo "neoliberalismo"
tem sido aplicado a esse movimento teológico-hermenêutico que preserva alguns
dos pressupostos racionalistas do antigo liberalismo e que se utiliza de
conceitos da filosofia, hermenêutica, linguística e teologia pós-modernas. É
particularmente o sistema de interpretação das Escrituras do neoliberalismo que
se constitui um desafio urgente à doutrina reformada.
A hermenêutica neoliberal
De acordo com a hermenêutica
neoliberal, é impossível alcançar-se o sentido original do texto bíblico. É
possível explorar uma pretensa "reserva-de-sentidos" que há no texto
da Bíblia, extraindo "sentidos" que dependerão das circunstâncias em
que estivermos. Consequentemente, a hermenêutica neoliberal coloca a verdade
apenas como um ideal a ser perseguido, ideal esse que jamais será alcançado com
segurança aqui nessa vida. Como resultado, jamais poderemos ter certeza
absoluta de que conhecemos a verdade. O máximo que poderemos fazer é afirmar
com convicção um dos muitos sentidos que poderíamos encontrar no texto.
Partindo de algumas teorias
modernas de lingüística, essa hermenêutica sugere que os autores bíblicos
poderiam ter escrito algo que não correspondia à sua intenção original. Exagera
a distância entre o autor e o texto ao ponto de não podermos mais encontrar a
intenção do autor nos textos. Ainda postulam que a Bíblia nada mais é que uma
interpretação da vida e do mundo feita por seus autores, uma maneira de
interpretar a realidade. O texto bíblico é reduzido ao resultado da busca feita
pelos seus autores de sentido na realidade e na história. Esse ensino fere
frontalmente o conceito reformado de que a Bíblia, mesmo tendo sido escrita por
homens situados no tempo e no espaço, é a revelação autoritativa de Deus, e a
transforma numa tentativa humana de compreender a realidade.
Também afirma que é impossível
termos conhecimento do sentido pleno e verdadeiro das Escrituras, já que o
texto não tem um único sentido, pleno e verdadeiro, mas múltiplos sentidos.
Seguindo o pluralismo religioso do pós-modernismo, rejeita o conceito de
verdade proposicional (de que uma idéia possa ser verdadeira) e assim a
possibilidade de alcançarmos a interpretação correta de uma passagem bíblica.
Desafios à teologia reformada
Essa abordagem interpretativa tem
servido de ferramenta para o surgimento das teologias ideológicas, teologias
feministas, de libertação e outras, já que transfere o sentido do autor e do
texto para o leitor. Tradicionalmente, a hermenêutica reformada reconhece a
necessidade de aplicarmos o texto bíblico às diversas situações em que nos
encontramos, mas vê essas aplicações não como "sentidos" novos e
múltiplos de um mesmo texto, mas como a significação
do sentido único de um texto para as diversas situações da vida.
As implicações da hermenêutica
neoliberal acabam por tornar a mensagem das Escrituras inacessível à Igreja. De
acordo com eles, acabamos sem Escritura, sem revelação, sem verdade e sem
pregação, podendo no máximo pregar apenas uma interpretação nossa do texto mas
jamais a verdade divina. Se não podemos alcançar o sentido das Escrituras não
nos resta qualquer base para a doutrina e a prática da igreja, para decisões
teológicas, para o ensino doutrinário, para a ordem eclesiástica. Instala-se o
caos onde cada um pode interpretar como queira as Escrituras, as decisões da
Igreja e seus símbolos de fé.
Os princípios de interpretação de
Westminster
Lembremos o que os puritanos
escreveram sobre esse assunto na Confissão de Fé de Westminster. O capítulo I
da Confissão trata das Escrituras, e neles, os puritanos expressaram suas
convicções quanto à correta interpretação das Escrituras. Em resumo, são estas:
1. Para evitar que Sua
vontade e a verdade se perdessem pela corrupção dos homens e a malícia de
Satanás, Deus fê-la escrever nas Escrituras Sagradas. A inspiração das
Escrituras resulta no fato de que elas expressam fielmente a vontade de Deus, a
verdade divina.
"Ainda que a luz da
natureza e as obras da criação e da providência de tal modo manifestem a
bondade, a sabedoria e o poder de Deus, que os homens ficam inescusáveis,
contudo não são suficientes para dar aquele conhecimento de Deus e da sua
vontade necessário para a salvação; por isso foi o Senhor servido, em diversos
tempos e diferentes modos, revelar-se e declarar à sua Igreja aquela sua
vontade; e depois, para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais
seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e
malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazê-la escrever toda.
Isto torna indispensável a Escritura Sagrada, tendo cessado aqueles antigos
modos de revelar Deus a sua vontade ao seu povo" (CFW, I.1).
Referências - Sal. 19: 1-4; Rom.
1: 32, e 2: 1, e 1: 19-20, e 2: 14-15; I Cor. 1:21, e 2:13-14; Heb. 1:1-2; Luc.
1:3-4; Rom. 15:4; Mat. 4:4, 7, 10; Isa. 8: 20; I Tim. 3: I5; II Pedro 1: 19.
2. A possibilidade de
conhecermos o sentido das Escrituras, sentido esse pretendido por Deus através
do autor humano:
"Todo o conselho de Deus
concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação,
fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser
lógica e claramente deduzido dela" (CFW, I.6)
3. O Espírito Santo
garante a compreensão salvadora das coisas reveladas na palavra de Deus, as
Escrituras
"À Escritura nada se
acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por
tradições dos homens; reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima
iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas
reveladas na palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus
e ao governo da Igreja, comum às ações e sociedades humanas, as quais têm de
ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras
gerais da palavra, que sempre devem ser observadas" (CFW, I.6; ver Catecismo
Maior pergunta 4)
Ref. II Tim. 3:15-17; Gal. 1:8;
II Tess. 2:2; João 6:45; I Cor. 2:9, 10, l2; I Cor. 11:13-14.
4. O sentido das
Escrituras é tão claramente exposto e explicado que a suficiente compreensão
das mesmas pode ser alcançada através dos meios ordinários (pregação, leitura e
oração)
"Na Escritura não são todas
as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos;
contudo, as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a
salvação, em um ou outro passo da Escritura são tão claramente expostas e
explicadas, que não só os doutos, mas ainda os indoutos, no devido uso dos
meios ordinários, podem alcançar uma suficiente compreensão delas" (CFW,
I.7)
Ref. II Pedro 3:16; Sal.
119:105, 130; Atos 17:11.
5. Há somente um sentido
verdadeiro e pleno em cada texto da Escritura e não múltiplos sentidos, e esse
sentido pode ser alcançado e compreendido pela Igreja
"A regra infalível de
interpretação da Escritura é a mesma Escritura; portanto, quando houver questão
sobre o verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto da Escritura (sentido que
não é múltiplo, mas único), esse texto pode ser estudado e compreendido por
outros textos que falem mais claramente" (CFW, I.9)
Ref. At. 15: 15; João 5:46; II Ped. 1:20-21.
6. Exatamente porque as
Escrituras não têm sentidos múltiplos é que as mesmas são o supremo tribunal em
controvérsias religiosas, aos quais a Igreja sempre deve apelar
"O Velho Testamento em
Hebraico (língua vulgar do antigo povo de Deus) e o Novo Testamento em Grego (a
língua mais geralmente conhecida entre as nações no tempo em que ele foi
escrito), sendo inspirados imediatamente por Deus e pelo seu singular cuidado e
providência conservados puros em todos os séculos, são por isso autênticos e
assim em todas as controvérsias religiosas a Igreja deve apelar para eles como
para um supremo tribunal" (CFW, I.8; cf. como exemplo XXIX.6).
Ref. Mat. 5:18; Isa. 8:20; II Tim. 3:14-15; I
Cor. 14; 6, 9, ll, 12, 24, 27-28; Col. 3:16; Rom. 15:4.
7. A vontade de Deus está
claramente expressa nas Escrituras e ao alcance da igreja, de forma que a mesma
pode distinguir entre culto aceitável a Deus e os que não são.
"A luz da natureza mostra
que há um Deus que tem domínio e soberania sobre tudo, que é bom e faz bem a
todos, e que, portanto, deve ser temido, amado, louvado, invocado, crido e
servido de todo o coração, de toda a alma e de toda a força; mas o modo
aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por ele mesmo e tão limitado
pela sua vontade revelada, que não deve ser adorado segundo as imaginações e
invenções dos homens ou sugestões de Satanás nem sob qualquer representação
visível ou de qualquer outro modo não prescrito nas Santas Escrituras"
(CFW, XXI,1)
8. Apesar dos eleitos
serem humanos e pecadores, recebem de Deus o que é necessário para
compreenderem as coisas de Deus para a salvação
"Todos aqueles que Deus
predestinou para a vida, e só esses, é ele servido, no tempo por ele
determinado e aceito, chamar eficazmente pela sua palavra e pelo seu Espírito,
tirando-os por Jesus Cristo daquele estado de pecado e morte em que estão por
natureza, e transpondo-os para a graça e salvação. Isto ele o faz, iluminando os seus entendimentos
espiritualmente a fim de compreenderem as coisas de Deus para a salvação,
tirando-lhes os seus corações de pedra e dando lhes corações de carne,
renovando as suas vontades e determinando-as pela sua onipotência para aquilo
que é bom e atraindo-os eficazmente a Jesus Cristo, mas de maneira que eles vêm
mui livremente, sendo para isso dispostos pela sua graça" (CFW X,1; ver
também o Catecismo Maior, pergunta 157).
Conclusão
Esse pequeno resumo dos
princípios de interpretação bíblica que se encontram na Confissão de Fé de
Westminster serve para mostrar que os puritanos, seguindo a linha de
interpretação dos reformadores, entenderam que a única maneira de interpretar
as Escrituras sem violar a sua integridade, propósito e escopo, era procurar
entender o sentido que os autores humanos haviam pretendido transmitir.
Reconheciam que essa nem sempre era uma tarefa fácil, mas confiavam que, com a
ajuda da ação iluminadora do Espírito, do conhecimento das línguas originais e
do contexto histórico, poderiam alcançar esse sentido. A teologia que temos na
Confissão de Fé de Westminster é o resultado do emprego sistemático dessa
hermenêutica.
AUTOR DESCONHECIDO
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