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A
INFLUÊNCIA DE UM BOM LAR
Preeminente entre os
que foram chamados para dirigir a igreja das trevas do papado à luz de uma fé
mais pura, acha-se Martinho Lutero. Zeloso, ardente e dedicado, não
conhecendo outro temor senão o de Deus, e não reconhecendo outro fundamento
para a fé religiosa além das Escrituras Sagradas, Lutero foi o homem para o
seu tempo; por meio dele Deus efetuou uma grande obra para a reforma da
igreja e esclarecimento do mundo.
Como os primeiros
arautos do evangelho, Lutero proveio das classes pobres. Seus primeiros anos
se passaram no humilde lar de um camponês alemão. Pelo trabalho diário de
mineiro que era, seu pai ganhava os meios para a sua educação. Ele o
destinava a ser advogado; mas Deus tencionava fazer dele um construtor no grande
templo que tão vagarosamente se vinha erigindo, através dos séculos. Agruras,
privações e severa disciplina foram a escola na qual a Sabedoria infinita
preparou Lutero para a importante missão de sua vida.
O pai de Lutero era
homem de espírito forte e ativo, e de grande força de caráter, honesto,
resoluto e correto. Era fiel às suas convicções de dever, fossem quais fossem
as conseqüências. Seu genuíno bom senso levava-o a considerar com
desconfiança a organização monástica. Ficou muito desgostoso quando Lutero,
sem seu consentimento, entrou para o convento, só se reconciliando com o
filho passados dois anos, e mesmo então suas opiniões permaneceram as mesmas.
Os pais de Lutero
dispensavam grande cuidado à educação e ensino dos filhos. Esforçavam-se por
instruí-los no conhecimento de Deus e prática das virtudes cristãs. Ouvida
por seu filho, muitas vezes ascendia ao Céu a oração do pai, a fim de que o
filho pudesse lembrar-se do nome do Senhor, e um dia auxiliar no avançamento
de Sua verdade. Todas as vantagens para a cultura moral ou intelectual que
sua vida de trabalhos lhes permitia gozar, aproveitavam-nas avidamente
aqueles pais. Ardorosos e perseverantes eram seus esforços por preparar os
filhos para uma vida piedosa e útil. Com sua firmeza e força de caráter,
muitas vezes exerciam severidade excessiva; mas o próprio reformador, embora
consciente de que em alguns respeitos haviam errado, encontrava em sua
disciplina mais para aprovar do que condenar.
Na escola, para onde
foi mandado com pouca idade, Lutero foi tratado com aspereza e mesmo
violência. Tão grande era a pobreza de seus pais que, ao ir de casa para a
escola noutra cidade, foi por algum tempo obrigado a ganhar o pão cantando de
porta em porta, e muitas vezes passava fome. As tristes e supersticiosas
idéias sobre religião, que então prevaleciam, enchiam-no de temor. À noite
deitava-se com coração triste, olhando a tremer para o tenebroso futuro, e
com um contínuo terror ao pensar em Deus como juiz severo e implacável,
tirano cruel, em vez de bondoso Pai celestial.
Não obstante, sob
tantos e tão grandes desalentos, Lutero avançou resolutamente para a elevada
norma de excelência moral e intelectual que lhe atraía a alma. Tinha sede de
saber, e seu feitio de espírito ardoroso e prático, levou-o a desejar o que é
sólido e útil em vez do que é vistoso e superficial.
Quando, à idade de
dezoito anos, entrou na Universidade de Erfurt, sua situação foi mais
favorável e suas perspectivas mais brilhantes do que nos primeiros anos. Os
pais, havendo pela economia e trabalho conseguido certo bem-estar, puderam
prestar-lhe todo o auxílio necessário. E a influência de amigos judiciosos,
diminuiu até certo ponto os efeitos sombrios de seu ensino anterior.
Aplicou-se ao estudo dos melhores autores, entesourando diligentemente seus
mais ponderados conceitos e fazendo sua própria a sabedoria dos sábios. Mesmo
sob a ríspida disciplina dos mestres anteriores, cedo apresentara ele
promessa de distinção; e sob influências favoráveis, seu espírito logo se
desenvolveu. Memória retentiva, vívida imaginação, poderosa faculdade de
raciocinar e aplicação incansável, colocaram-no logo em primeiro lugar entre
seus companheiros. A disciplina intelectual amadureceu-lhe o entendimento,
despertando uma atividade de espírito e agudeza de percepção que o estavam
preparando para os embates da vida.
O temor do Senhor
habitava no coração de Lutero, habilitando-o a manter sua firmeza de
propósito e levando-o a profunda humildade perante Deus. Ele tinha uma
constante intuição de sua dependência do auxílio divino, e não deixava de
iniciar cada dia com oração, enquanto o íntimo estava continuamente a
respirar uma súplica de guia e apoio. "Orar bem", dizia ele muitas
vezes, "é a melhor metade do estudo."
Enquanto um dia
examinava os livros da Biblioteca da Universidade, Lutero descobriu uma
Bíblia latina. Nunca dantes vira tal Livro. Ignorava mesmo sua existência.
Tinha ouvido porções dos evangelhos e epístolas, que se liam ao povo no culto
público, e supunha que isso fosse a Escritura toda. Agora, pela primeira vez,
olhava para o todo da Palavra de Deus. Com um misto de reverência e
admiração, folheava as páginas sagradas. Pulso acelerado e coração
palpitante, lia por si mesmo as palavras de vida, detendo-se aqui e acolá
para exclamar: "Oh! quem dera Deus me desse tal livro!" – História
da Reforma do Século XVI, D’Aubigné. Anjos celestiais estavam a seu lado, e
raios de luz procedentes do trono de Deus traziam-lhe à compreensão os
tesouros da verdade. Sempre temera ofender a Deus, mas agora a profunda
convicção de seu estado pecaminoso apoderou-se dele como nunca dantes.
Um desejo ardente de
se achar livre do pecado e encontrar paz com Deus, levou-o afinal a entrar
para um mosteiro e dedicar-se à vida monástica. Exigiu-se-lhe, ali, efetuar
os mais humildes trabalhos e mendigar de porta em porta. Estava na idade em
que o respeito e a apreciação são mais avidamente desejados, e essas
ocupações servis eram profundamente mortificadoras para os seus sentimentos
naturais; pacientemente, porém, suportou a humilhação, crendo ser necessária
por causa de seus pecados.
Todo momento que podia
poupar de seus deveres diários empregava-o no estudo, furtando-se ao sono e
cedendo mesmo a contragosto o tempo empregado em suas escassas refeições.
Acima de tudo se deleitava no estudo da Palavra de Deus. Achara uma Bíblia
acorrentada à parede do convento, e a ela muitas vezes recorria.
Aprofundando-se suas convicções de pecado, procurou pelas próprias obras
obter perdão e paz. Levava vida austera, esforçando-se por meio de jejuns,
vigílias e penitências para subjugar os males de sua natureza, dos quais a
vida monástica não o libertava. Não recuava ante sacrifício algum pelo qual
pudesse atingir a pureza de coração que o habilitaria a ficar aprovado
perante Deus. "Eu era na verdade um monge piedoso", disse, mais
tarde, "e seguia as regras de minha ordem mais estritamente do que possa
exprimir. Se fora possível a um monge obter o Céu por suas obras monásticas,
eu teria certamente direito a ele. … Se eu tivesse continuado por mais tempo,
teria levado minhas mortificações até à própria morte." – D’Aubigné.
Como resultado desta dolorosa disciplina, perdeu as forças e sofreu de
desmaios, de cujos efeitos nunca se restabeleceu por completo. Mas com todos
os seus esforços, a alma sobrecarregada não encontrou alívio. Finalmente foi
arrojado às bordas do desespero.
Quando pareceu a
Lutero que tudo estava perdido, Deus lhe suscitou um amigo e auxiliador. O
piedoso Staupitz abriu a Palavra de Deus ao espírito de Lutero, mandando-lhe
que não mais olhasse para si mesmo, que cessasse a contemplação do castigo
infinito pela violação da lei de Deus, e olhasse a Jesus, seu Salvador que
perdoa os pecados. "Em vez de torturar-te por causa de teus pecados,
lança-te nos braços do Redentor. Confia nEle, na justiça de Sua vida, na
expiação de Sua morte. … Escuta ao Filho de Deus. Ele Se fez homem para te
dar a certeza do favor divino." "Ama Aquele que primeiro te
amou." – D’Aubigné. Assim falava aquele mensageiro da misericórdia. Suas
palavras produziram profunda impressão no espírito de Lutero. Depois de muita
luta contra erros, longamente acalentados, pôde ele aprender a verdade e lhe
veio paz à alma perturbada.
Lutero foi ordenado
sacerdote, sendo chamado do claustro para o cargo de professor da Universidade
de Wittenberg. Ali se aplicou ao estudo das Escrituras nas línguas originais.
Começou a fazer conferências sobre a Bíblia; e o livro dos Salmos, os
Evangelhos e as Epístolas abriram-se à compreensão de multidões que se
deleitavam em ouvi-lo. Staupitz, seu amigo e superior, insistia com ele para
que subisse ao púlpito e pregasse a Palavra de Deus. Lutero hesitava,
sentindo-se indigno de falar ao povo em lugar de Cristo. Foi apenas depois de
longa luta que cedeu às solicitações dos amigos. Era já poderoso nas
Escrituras, e sobre ele repousava a graça de Deus. Sua eloqüência cativava os
ouvintes, a clareza e poder com que apresentava a verdade levavam-nos à
convicção, e seu fervor tocava os corações.
Lutero ainda era um
verdadeiro filho da igreja papal, e não tinha idéia alguma de que houvesse de
ser alguma outra coisa. Na providência de Deus foi levado a visitar Roma.
Seguiu viagem a pé, hospedando-se nos mosteiros, pelo caminho. Em um convento
na Itália, encheu-se de admiração ante a riqueza, magnificência e luxo que
testemunhou. Dotados de uma receita principesca, os monges habitavam em
esplêndidos compartimentos, ornamentavam-se com as mais ricas e custosas
vestes, e banqueteavam-se em suntuosas mesas. Com dolorosos pressentimentos
Lutero contrastou esta cena com a renúncia e rigores de sua própria vida. O
espírito estava-se-lhe tornando perplexo.
Afinal, contemplou a
distância a cidade das sete colinas.
Com profunda emoção
prostrou-se ao solo, exclamando: "Santa Roma, eu te saúdo!" – D’Aubigné.
Entrou na cidade, visitou as igrejas, ouviu as histórias maravilhosas
repetidas pelos padres e monges, e cumpriu todas as cerimônias exigidas. Por
toda parte via cenas que o enchiam de espanto e horror. Observava a
iniqüidade que existia entre todas as classes do clero. Ouviu gracejos
imorais dos prelados, e horrorizou-se com sua espantosa profanidade, mesmo
durante a missa. Ao associar-se aos monges e cidadãos, deparou com
desregramento, libertinagem. Para onde quer que se volvesse, encontrava
sacrilégio em lugar de santidade. "Ninguém pode imaginar", escreveu
ele, "que pecados e ações infames se cometem em Roma; precisam ser
vistos e ouvidos para serem cridos. Por isso costumam dizer: ‘Se há inferno,
Roma está construída sobre ele: é um abismo donde procede toda espécie de
pecado."’ – D’Aubigné.
Por um decreto
recente, fora prometida pelo papa certa indulgência a todos os que subissem
de joelhos a "escada de Pilatos", que se diz ter sido descida por
nosso Salvador ao sair do tribunal romano, e miraculosamente transportada de
Jerusalém para Roma. Lutero estava certo dia subindo devotamente esses
degraus, quando de súbito uma voz semelhante a trovão pareceu dizer-lhe:
"O justo viverá da fé." Rom. 1:17. Ergueu-se de um salto e saiu
apressadamente do lugar, envergonhado e horrorizado. Esse texto nunca perdeu
a força sobre sua alma. Desde aquele tempo, viu mais claramente do que nunca
dantes a falácia de se confiar nas obras humanas para a salvação, e a
necessidade de fé constante nos méritos de Cristo. Tinham-se-lhe aberto os
olhos, e nunca mais se deveriam fechar aos enganos do papado. Quando ele deu
as costas a Roma, também dela volveu o coração, e desde aquele tempo o
afastamento se tornou cada vez maior, até romper todo contato com a igreja
papal.
Depois de voltar de
Roma, Lutero recebeu na Universidade de Wittenberg o grau de doutor em
teologia. Estava agora na liberdade de se dedicar, como nunca dantes, às
Escrituras que ele amava. Fizera solene voto de estudar cuidadosamente a
Palavra de Deus e todos os dias de sua vida pregá-la com fidelidade, e não os
dizeres e doutrinas dos papas. Não mais era o simples monge ou professor, mas
o autorizado arauto da Bíblia. Fora chamado para pastor a fim de alimentar o
rebanho de Deus, que tinha fome e sede da verdade. Declarava firmemente que
os cristãos não deveriam receber outras doutrinas senão as que se apóiam na
autoridade das Sagradas Escrituras. Estas palavras feriram o próprio
fundamento da supremacia papal. Continham o princípio vital da Reforma.
Lutero via o perigo de
exaltar teorias humanas sobre a Palavra de Deus. Corajosamente atacava a
incredulidade especulativa dos escolásticos, e opunha-se à filosofia e
teologia que durante tanto tempo mantiveram sobre o povo a influência
dominante. Denunciou tais estudos não somente como indignos mas perniciosos,
e procurava desviar o espírito de seus ouvintes dos sofismas dos filósofos e
teólogos para as verdades eternas apresentadas pelos profetas e apóstolos.
Preciosa era a
mensagem que levava às ávidas multidões, que ficavam embevecidas ante suas
palavras. Nunca dantes tais ensinos lhes haviam caído aos ouvidos. As alegres
novas do amante Salvador, a certeza de perdão e paz mediante Seu sangue
expiatório, alegravam-lhes o coração, inspirando-lhes imorredoura esperança.
Acendeu-se em Wittenberg uma luz cujos raios deveriam estender-se às regiões
mais remotas da Terra, aumentando em brilho até ao final do tempo.
Mas a luz e as trevas
não podem combinar. Entre a verdade e o erro há um conflito irreprimível.
Apoiar e defender um é atacar e subverter o outro. Nosso Salvador mesmo
declarou: "Não vim trazer paz, mas espada." Mat. 10:34. Disse
Lutero, alguns anos depois do início da Reforma: "Deus não me guia, Ele
me impele avante, arrebata-me. Não sou senhor de mim mesmo. Desejo viver em
repouso; mas sou arrojado ao meio de tumultos e revoluções." – D’Aubigné.
Ele estava então a ponto de ser compelido à disputa.
A igreja de Roma
mercadejava com a graça de Deus. As mesas dos cambistas (Mat. 21:12) foram
postas ao lado de seus altares, e o ar ressoava com o clamor dos compradores
e vendedores. Com a alegação de levantar fundos para a ereção da igreja de
São Pedro, em Roma, publicamente se ofereciam à venda indulgências, por
autorização do papa. Pelo preço do crime deveria construir-se um templo para
o culto de Deus – a pedra fundamental assentada com o salário da iniqüidade!
Mas os próprios meios adotados para o engrandecimento de Roma, provocaram o
mais mortal dos golpes ao seu poderio e grandeza. Foi isto que suscitou o
mais resoluto e eficaz dos inimigos do papado, determinando a batalha que
abalou o trono papal e fez tremer na cabeça do pontífice a tríplice coroa.
Tetzel, o oficial
designado para dirigir a venda das indulgências na Alemanha, era culpado das
mais vis ofensas à sociedade e à lei de Deus; havendo, porém, escapado dos
castigos devidos aos seus crimes, foi empregado para promover os projetos
mercenários e nada escrupulos do papa. Com grande desfaçatez repetia as mais
deslumbrantes falsidades, e relatava histórias maravilhosas para enganar um
povo ignorante, crédulo e supersticioso. Tivesse este a Palavra de Deus, e
não teria sido enganado dessa máneira. Foi para conservá-lo sob o domínio do
papado, a fim de aumentar o poderio e riqueza de seus ambiciosos dirigentes,
que a Bíblia fora dele retirada. (Ver História Eclesiástica, de Gieseler.)
Ao entrar Tetzel numa
cidade, um mensageiro ia adiante dele, anunciando: "A graça de Deus e do
santo padre está às vossas portas!" – D’Aubigné. E o povo recebia o
pretensioso blasfemo como se fosse o próprio Deus a eles descido do Céu.
O infame tráfico era
estabelecido na igreja, e Tetzel, subindo ao púlpito, exaltava as
indulgências como o mais precioso dom de Deus. Declarava que em virtude de
seus certificados de perdão, todos os pecados que o comprador mais tarde
quisesse cometer ser-lhe-iam perdoados, e que "mesmo o arrependimento
não é necessário". – D’Aubigné. Mais do que isto, assegurava aos
ouvintes que as indulgências tinham poder para salvar não somente os vivos
mas também os mortos; que, no mesmo instante em que o dinheiro tinia de
encontro ao fundo de sua caixa, a alma em cujo favor era pago escaparia do
purgatório, ingressando no Céu. – História da Reforma, de Hagenbach.
Quando Simão, o mago,
propôs comprar dos apóstolos o poder de operar milagres, Pedro lhe respondeu:
"O teu dinheiro seja contigo para perdição, pois cuidaste que o dom de
Deus se alcança por dinheiro." Atos 8:20. A oferta de Tetzel, porém, foi
aceita por ávidos milhares. Ouro e prata eram canalizados para o seu tesouro.
Uma salvação que se poderia comprar com dinheiro obtinha-se mais facilmente
do que a que exige o arrependimento, fé e esforço diligente para resistir ao
pecado e vencê-lo.
À doutrina das
indulgências tinham-se oposto homens de saber e piedade da Igreja Romana, e
muitos havia que não tinham fé em pretensões tão contrárias tanto à razão
como à revelação. Nenhum prelado ousou erguer a voz contra este iníquo
comércio; mas o espírito dos homens estava-se tornando perturbado e
desassossegado, e muitos com avidez inquiriam se Deus não operaria mediante
algum instrumento a purificação de Sua igreja.
Lutero, conquanto
ainda católico romano da mais estrita classe, encheu-se de horror ante as
blasfemas declarações dos traficantes das indulgências. Muitos de sua própria
congregação haviam comprado certidões de perdão, e logo começaram a
dirigir-se a seu pastor, confessando seus vários pecados e esperando
absolvição, não porque estivessem arrependidos e desejassem corrigir-se, mas
sob o fundamento da indulgência. Lutero recusou-lhes a absolvição,
advertindo-os de que, a menos que se arrependessem e reformassem a vida,
haveriam de perecer em seus pecados. Com grande perplexidade voltaram a
Tetzel, queixando-se de que seu confessor recusara-lhes o certificado; e
alguns ousadamente exigiram que se lhes restituísse o dinheiro. O frade
encheu-se de cólera. Proferiu as mais terríveis maldições, fez com que se
ascendessem fogos nas praças públicas, e declarou haver "recebido ordem
do papa para queimar todos os hereges que pretendessem opor-se às suas
santíssimas indulgências". – D’Aubigné.
Entra Lutero, então,
ousadamente, em sua obra como campeão da verdade. Sua voz era ouvida do
púlpito em advertência ardorosa e solene. Expôs ao povo o caráter ofensivo do
pecado, ensinando-lhes ser impossível ao homem, por suas próprias obras,
diminuir as culpas ou fugir ao castigo. Nada, a não ser o arrependimento para
com Deus e a fé em Cristo, pode salvar o pecador. A graça de Cristo não pode
ser comprada; é dom gratuito. Aconselhava o povo a não comprar indulgências,
mas a olhar com fé para um Redentor crucificado. Relatou sua própria e penosa
experiência ao procurar em vão pela humilhação e penitência conseguir
salvação, e afirmou a seus ouvintes que foi olhando fora de si mesmo e crendo
em Cristo que encontrara paz e alegria.
Prosseguindo Tetzel
com seu comércio e ímpias pretensões, Lutero decidiu-se a um protesto mais
eficaz contra esses clamorosos abusos. Logo se lhe apresentou uma ocasião. A
igreja do castelo de Wittenberg possuía muitas relíquias, que em certos dias
santos eram expostas ao público, e concedia-se completa remissão de pecados a
todos os que então visitassem a igreja e se confessassem. Em conformidade com
isto, o povo naqueles dias para ali acudia em grande número. Uma das mais
importantes destas ocasiões, a festa de "Todos os Santos",
estava-se aproximando.
Na véspera, Lutero,
reunindo-se às multidões que já seguiam para a igreja, afixou na porta desta
um papel contendo noventa e cinco proposições contra a doutrina das indulgências.
Declarou sua disposição de defender essas teses no dia seguinte na
Universidade, contra todos os que achassem conveniente atacá-las.
Suas proposições
atraíram a atenção geral. Eram lidas e relidas, e repetidas de todos os
lados. Estabeleceu-se grande excitação na Universidade e na cidade inteira.
Mostravam essas teses que o poder de conferir o perdão do pecado e remir de
sua pena, jamais fora confiado ao papa ou a qualquer outro homem. Todo esse
plano era uma farsa, um artifício para extorquir dinheiro, valendo-se das
superstições do povo – expediente de Satanás para destruir a alma de todos os
que confiassem em suas pretensões mentirosas. Mostrou-se também claramente
que o evangelho de Cristo é o mais valioso tesouro da igreja, e que a graça
de Deus, nele revelada, é livremente concedida a todos os que a buscam com
arrependimento e fé.
As teses de Lutero
desafiavam discussão; mas ninguém ousou aceitar o repto. As questões por ele
propostas, em poucos dias se espalharam por toda a Alemanha, e em breves
semanas repercutiram pela cristandade toda. Muitos dedicados romanistas que
tinham visto e lamentado a terrível iniqüidade que prevalecia na igreja, mas
não sabiam como deter seus progressos, leram as proposições com grande
alegria, reconhecendo nelas a voz de Deus. Pressentiam que o Senhor
graciosamente estendera a mão para deter a maré de corrupção que crescia
rapidamente e que promanava da Sé de Roma. Príncipes e magistrados
secretamente se regozijavam de que estava para ser posto um paradeiro ao arrogante
poder que negava o direito de apelar contra suas decisões.
As multidões,
supersticiosas e amantes do pecado, ficaram aterrorizadas quando se varreram
os sofismas que lhes acalmavam os temores. Ardilosos eclesiásticos,
interrompidos em sua obra de sancionar o crime, e vendo perigar seus lucros,
encolerizaram-se e se arregimentaram para sustentar suas pretensões. O
reformador teve atrozes acusadores a defrontar. Alguns o acusavam de agir
precipitadamente e por impulso. Outros, de ser presunçoso, declarando mais
que ele não era dirigido por Deus, mas que atuava por orgulho e ardor.
"Quem é que não sabe", respondia ele, "que raramente um homem
apresenta uma idéia nova, sem que tenha alguma aparência de orgulho, e seja
acusado de excitar rixas? … Por que foram mortos Cristo e todos os mártires?
Porque pareciam ser orgulhosos desprezadores da sabedoria de seu tempo, e
porque apresentavam idéias novas sem ter primeiro humildemente tomado
conselho com os oráculos das antigas opiniões."
Declarou mais: "O
que quer que eu faça, não será feito pela prudência do homem, mas pelo
conselho de Deus. Se a obra for de Deus, quem a poderá deter? se não, quem a
poderá promover? Nem minha vontade, nem a deles, nem a nossa; mas a Tua
vontade, ó santo Pai, que estás no Céu." – D’Aubigné.
Posto que Lutero
tivesse sido movido pelo Espírito de Deus para iniciar sua obra, não a
deveria ele levar avante sem severos conflitos. As acusações dos inimigos, a
difamação de seus propósitos e os injustos e maldosos reparos acerca de seu
caráter e intuitos, sobrevieram-lhe como um dilúvio avassalador; e não
ficaram sem efeito. Ele confiara em que os dirigentes do povo, tanto na
igreja como nas escolas, se lhe uniriam alegremente nos esforços em favor da
Reforma. Palavras de animação por parte dos que se achavam em elevadas
posições, haviam-lhe inspirado alegria e esperança. Já, em antecipação, vira
ele um dia mais radiante despontar para a igreja. Mas a animação tinha-se
transformado em censuras e condenações. Muitos dignitários, tanto da Igreja
como do Estado, estavam convictos da verdade de suas teses; mas logo viram
que a aceitação dessas verdades implicaria grandes mudanças. Esclarecer e
reformar o povo corresponderia virtualmente a minar a autoridade de Roma,
sustar milhares de torrentes que ora fluíam para o seu tesouro e, assim,
grandemente cercear a extravagância e luxo dos chefes papais. Demais, ensinar
o povo a pensar e agir como seres responsáveis, buscando apenas de Cristo a
salvação, subverteria o trono do pontífice, destruindo finalmente sua própria
autoridade. Por esta razão recusaram o conhecimento a eles oferecido por
Deus, e se dispuseram contra Cristo e a verdade pela sua oposição ao homem
que Ele enviara para os esclarecer.
Lutero tremia quando
olhava para si mesmo – um só homem opor-se às mais poderosas forças da Terra.
Algumas vezes duvidava se havia sido, na verdade, levado por Deus a
colocar-se contra a autoridade da igreja. "Quem era eu", escreveu
ele, "para opor-me à majestade do papa, perante quem… os reis da Terra e
o mundo inteiro tremiam? … Ninguém poderá saber o que meu coração sofreu
durante estes primeiros dois anos, e em que desânimo, poderia dizer em que
desespero, me submergi." – D’Aubigné. Mas ele não foi abandonado
ao desânimo. Quando faltou o apoio humano, olhou para Deus somente, e
aprendeu que poderia arrimar-se em perfeita segurança Àquele Todo-Poderoso
braço.
A um amigo da Reforma,
Lutero escreveu: "Não podemos atingir a compreensão das Escrituras, quer
pelo estudo quer pelo intelecto. Teu primeiro dever é começar pela oração.
Roga ao Senhor que te conceda, por Sua grande misericórdia, o verdadeiro
entendimento de Sua Palavra. Não há nenhum intérprete da Palavra de Deus
senão o Autor dessa Palavra, como Ele mesmo diz: ‘E serão todos ensinados por
Deus.’ Nada esperes de teus próprios trabalhos, de tua própria compreensão:
confia somente em Deus, e na influência de Seu Espírito. Crê isto pela
palavra de um homem que tem tido experiência." – D’Aubigné. Eis
aqui uma lição de importância vital para os que sentem que Deus os chamou a
fim de apresentar a outrem as verdades solenes para este tempo. Estas
verdades suscitarão a inimizade de Satanás e dos homens que amam as fábulas
que ele imaginou. No conflito com os poderes do mal, há necessidade de algo
mais do que força de intelecto e sabedoria humana.
Quando inimigos
apelavam para os costumes e tradições, ou para as afirmações e autoridade do
papa, Lutero os enfrentava com a Bíblia, e com a Bíblia unicamente. Ali
estavam argumentos que não podiam refutar; portanto os escravos do formalismo
e superstição clamavam por seu sangue, como o fizeram os judeus pelo sangue
de Cristo. "Ele é um herege", bradavam os zelosos romanos. "É
alta traição à igreja permitir que tão horrível herege viva uma hora mais. Arme-se
imediatamente para ele a forca!" – D’Aubigné.
Lutero, porém, não
caiu vítima da fúria deles. Deus tinha uma obra para ele fazer, e a fim de o
proteger foram enviados anjos do Céu. Entretanto, muitos que de Lutero tinham
recebido a preciosa luz, tornaram-se objeto da ira de Satanás, e por amor à
verdade sofreram corajosamente tortura e morte.
Os ensinos de Lutero
atraíram a atenção dos espíritos pensantes de toda a Alemanha. De seus
sermões e escritos procediam raios de luz que despertavam e iluminavam a
milhares. Uma fé viva estava tomando o lugar do morto formalismo em que a
igreja se mantivera durante tanto tempo. O povo estava diariamente perdendo a
confiança nas superstições do romanismo. As barreiras do preconceito iam
cedendo. A Palavra de Deus, pela qual Lutero provava toda a doutrina e
qualquer reclamo, era semelhante a uma espada de dois gumes, abrindo caminho
ao coração do povo. Por toda parte se despertava o desejo de progresso
espiritual. Fazia séculos que não se via, tão generalizada, a fome e sede de
justiça. Os olhos do povo, havia tanto voltados para ritos humanos e
mediadores terrestres, volviam-se agora em arrependimento e fé para Cristo, e
Este crucificado.
Esse interesse
generalizado, mais ainda despertou os temores das autoridades papais. Lutero
recebeu intimação para comparecer a Roma, a fim de responder pela acusação de
heresia. A ordem encheu de terror a seus amigos. Sabiam perfeitamente bem o
perigo que o ameaçava naquela corrupta cidade, já embriagada com o sangue dos
mártires de Jesus. Protestaram contra sua ida a Roma, e requereram fosse ele
interrogado na Alemanha.
Assim se fez por fim e
foi designado o núncio papal para ouvir o caso. Nas instruções comunicadas
pelo pontífice a esse legado, referiu-se que Lutero fora já declarado herege.
O núncio foi, portanto, encarregado, de o "processar e constranger sem
demora". Se ele permanecesse firme, e o legado não conseguisse
apoderar-se de sua pessoa, tinha poderes "para proscrevê-lo em todas as
partes da Alemanha; banir, amaldiçoar e excomungar todos os que estivessem
ligados a ele". – D’Aubigné. E, além disso, determinou a seu
legado, a fim de desarraigar inteiramente a pestífera heresia, que, exceto o
imperador, excomungasse de qualquer dignidade na Igreja ou Estado, a todos os
que negligenciassem prender Lutero e seus adeptos, entregando-os à vingança
de Roma.
Aqui se patenteia o
verdadeiro espírito do papado. Nenhum indício de princípios cristãos, ou
mesmo de justiça comum, se pode notar no documento todo. Lutero estava a
grande distância de Roma; não tivera oportunidade de explicar ou defender sua
atitude; no entanto, antes que seu caso fosse investigado, era sumariamente
declarado herege, e no mesmo dia exortado, acusado, julgado e condenado; e
tudo isto por aquele que se intitulava santo pai, a única autoridade suprema,
infalível na Igreja ou no Estado!
Nessa ocasião, em que
Lutero tanto necessitava da simpatia e conselho de um verdadeiro amigo, a
providência de Deus enviou Melâncton a Wittenberg. Jovem, modesto e tímido
nas maneiras, o são discernimento de Melâncton, seu extenso saber e
convincente eloqüência, combinados com a pureza e retidão de caráter,
conquistaram admiração e estima gerais. O brilho de seus talentos não era
mais assinalado do que a gentileza de suas maneiras. Logo se tornou um
fervoroso discípulo do evangelho, o amigo de mais confiança e valioso apoio
para Lutero, servindo sua brandura, prudência e exatidão de complemento à
coragem e energia daquele. Sua cooperação na obra acrescentou força à
Reforma, e foi uma fonte de grande animação para Lutero.
Augsburgo fora
designada como o lugar para o processo, e o reformador partiu a pé para fazer
a viagem até lá. Alimentavam-se sérios temores a seu respeito. Fizeram-se
abertamente ameaças de que ele seria agarrado e assassinado no caminho, e
seus amigos rogaram-lhe que se não aventurasse. Solicitaram-lhe mesmo que
durante algum tempo saísse de Wittenberg e procurasse segurança com os que de
bom grado o protegeriam. Ele, porém, não queria deixar a posição em que Deus
o colocara. Deveria continuar fielmente a manter a verdade, apesar das
procelas que sobre ele se abatiam. Sua expressão era: "Sou como
Jeremias, homem de lutas e contendas; mas, quanto mais aumentam suas ameaças,
mais cresce a minha alegria. … Já destruíram minha honra e reputação. Uma
única coisa permanece: meu desprezível corpo; que o tomem, abreviarão assim,
por algumas horas, a minha vida. Mas, quanta a minha alma, não a podem tomar.
Aquele que deseja proclamar a verdade de Cristo ao mundo, deve esperar a
morte a cada momento." – D’Aubigné.
As notícias da chegada
de Lutero a Augsburgo deram grande satisfação ao legado papal. O perturbador
herege que despertava a atenção do mundo inteiro, parecia agora em poder de
Roma, e o legado decidiu que ele não escapasse. O reformador deixara de
munir-se de salvo-conduto. Seus amigos insistiam em que sem ele não
aparecesse perante o legado, e eles próprios se empenharam em consegui-lo do
imperador. O núncio tencionava obrigar a Lutero, sendo possível, a
retratar-se, ou, não conseguindo isto, fazer com que fosse levado a Roma,
para participar da sorte de Huss e Jerônimo. Por conseguinte, mediante seus
agentes esforçou-se por induzir Lutero a aparecer sem salvo-conduto,
confiante em sua misericórdia. Isto o reformador se recusou firmemente a
fazer. Antes que recebesse o documento hipotecando-lhe a proteção do
imperador, não compareceu à presença do embaixador papal.
Haviam decidido os
romanistas, como ardiloso expediente, tentar ganhar a Lutero com aparência de
amabilidade. O legado, em suas entrevistas com ele, mostrava grande amizade;
mas exigia que Lutero se submetesse implicitamente à autoridade da igreja, e
cedesse em todos os pontos sem argumentação ou questões. Não avaliara
devidamente o caráter do homem com quem devia tratar. Lutero, em resposta,
exprimiu sua consideração pela igreja, seu desejo de verdade, sua prontidão
em responder a todas as objeções ao que ele havia ensinado, e em submeter
suas doutrinas à decisão de algumas das principais universidades. Mas ao
mesmo tempo protestava contra a maneira de agir do cardeal, exigindo-lhe
retratar-se sem ter provado estar ele em erro.
A única resposta foi:
"Retrate-se, retrate-se!" O reformador mostrou que sua atitude era
apoiada pelas Escrituras, e declarou com firmeza que não poderia renunciar à
verdade. O legado, incapaz de responder ao argumento de Lutero, cumulou-o com
uma tempestade de acusações, zombarias, escárnios e lisonjas, entremeados de
citações da tradição e dos dizeres dos pais da igreja, sem proporcionar ao
reformador oportunidade de falar. Vendo que a conferência, assim continuando,
seria completamente vã, Lutero obteve, por fim, relutante permissão para
apresentar sua resposta por escrito.
"Assim
fazendo", disse ele, escrevendo a um amigo, "os oprimidos encontram
duplo proveito; primeiro, aquilo que escrevi pode ser submetido ao juízo de
outrem; segundo, tem-se melhor oportunidade de trabalhar com os temores, se é
que não com a consciência, de um déspota arrogante e palrador, que do
contrário dominaria pela sua linguagem imperiosa." – Vida e Tempos de
Lutero, de Martyn.
Na próxima entrevista,
Lutero apresentou uma exposição clara, concisa e poderosa, de suas opiniões,
amplamente apoiadas por muitas citações das Escrituras. Este documento,
depois de o ter lido em voz alta, entregou ao cardeal que, entretanto, o
lançou desdenhosamente ao lado, declarando ser ele um acervo de palavras
ociosas e citações que nada provavam. Lutero, assim estimulado, defronta
então o altivo prelado em seu próprio terreno – as tradições e ensinos da
igreja – e literalmente derrota suas afirmações.
Quando o prelado viu
que o raciocínio de Lutero era irrespondível, perdeu todo o domínio de si
mesmo e, colérico, exclamou: "Retrate-se! ou mandá-lo-ei a Roma, para
ali comparecer perante os juízes comissionados para tomarem conhecimento de
sua causa. Excomungá-lo-ei e a todos os seus partidários, e a todos os que em
qualquer ocasião o favorecerem, e os lançarei fora da igreja." E
finalmente declarou, em tom altivo e irado: "Retrate-se, ou não volte
mais!" – D’Aubigné.
O reformador de pronto
se retirou com os amigos, declarando assim plenamente que nenhuma retratação
se deveria esperar dele. Isto não era o que o cardeal se propusera. Ele se
havia lisonjeado de poder pela violência forçar Lutero a submeter-se. Agora,
deixado só com os que o apoiavam, olhava para um e para outro, em completo
desgosto pelo inesperado fracasso de seus planos.
Os esforços de Lutero
nesta ocasião não ficaram sem bons resultados. A grande assembléia presente
tivera oportunidade de comparar os dois homens, e julgar por si do espírito
manifestado por eles, bem como da força e verdade de suas posições. Quão
assinalado era o contraste! O reformador, simples, humilde, firme, permanecia
na força de Deus, tendo ao seu lado a verdade; o representante do papa,
importante a seus próprios olhos, despótico, altivo e desarrazoado, achava-se
sem um único argumento das Escrituras, exclamando, no entanto, veementemente:
"Retrate-se, ou será enviado a Roma para o castigo!"
Se bem que Lutero se
houvesse munido de salvo-conduto, os romanistas estavam conspirando para
apanhá-lo e aprisioná-lo. Seus amigos insistiam em que, como lhe era inútil
prolongar sua permanência, deveria sem demora voltar a Wittenberg, e que a
máxima cautela se deveria ter no sentido de ocultar suas intenções. De acordo
com isto, ele deixou Augsburgo antes do raiar do dia, a cavalo, acompanhado
apenas de um guia a ele fornecido pelo magistrado. Com muitos pressentimentos
atravessou sem ser percebido as ruas escuras e silenciosas da cidade.
Inimigos, vigilantes e cruéis, estavam a conspirar para a sua destruição.
Escaparia das ciladas que lhe preparavam? Eram momentos de ansiedade e
fervorosas orações. Atingiu uma pequena porta no muro da cidade. Abriu-se-lhe
e, com o guia, por ela passou sem impedimento. Uma vez livres do lado de
fora, os fugitivos apressaram a fuga e, antes que o legado soubesse da
partida de Lutero, achava-se ele além do alcance de seus perseguidores.
Satanás e seus emissários estavam derrotados. O homem que haviam pensado
estar em seu poder, tinha-se ido, escapara-se, como um pássaro da armadilha
do caçador.
Com as notícias da
fuga de Lutero, o legado ficou opresso de surpresa e cólera. Esperara ele
receber grande honra por seu tino e firmeza ao tratar com o perturbador da
igreja; mas frustrara-se-lhe a esperança. Deu expressão à sua raiva em carta
a Frederico, o eleitor da Saxônia, denunciando com amargura a Lutero, e
reclamando que Frederico enviasse o reformador a Roma ou que o banisse da
Saxônia.
Em sua defesa, Lutero
insistia em que o legado do papa lhe mostrasse seus erros pelas Escrituras, e
comprometia-se da maneira mais solene a renunciar a suas doutrinas se se
pudesse mostrar estarem em desacordo com a Palavra divina. E exprimia sua
gratidão a Deus por haver sido considerado digno de sofrer por uma causa tão
santa.
O eleitor possuía
ainda pouco conhecimento das doutrinas reformadas, mas estava fundamente
impressionado pela sinceridade, força e clareza das palavras de Lutero; e,
até que se provasse estar o reformador em erro, resolveu Frederico permanecer
como seu protetor. Em resposta ao pedido do legado, escreveu: "‘Visto
que o Dr. Martinho compareceu perante vós, em Augsburgo, deveríeis estar
satisfeito. Não esperávamos que vos esforçásseis por fazê-lo retratar-se sem
o haver convencido de seus erros. Nenhum dos homens doutos de nosso
principado me informou de que a doutrina de Martinho seja ímpia, anticristã
ou herética.’ O príncipe recusou-se, além disso, a enviar Lutero a Roma, ou
expulsá-lo de seus domínios." – D’Aubigné.
O eleitor notara uma
ruína geral das restrições morais na sociedade. Era indispensável grande obra
de reforma. As complicadas e dispendiosas medidas para restringir e punir o
crime seriam desnecessárias se os homens tão-somente reconhecessem e
obedecessem à lei de Deus e aos ditames de uma consciência esclarecida. O
eleitor via que Lutero trabalhava para conseguir este objetivo, e
secretamente se regozijava de que uma influência melhor se estivesse fazendo
sentir na igreja.
Via também que, como
professor na Universidade, Lutero tivera extraordinário êxito. Um ano apenas
se passara desde que o reformador afixara as teses na igreja do castelo, e no
entanto, já havia grande baixa no número de peregrinos que visitavam a igreja
na festa de Todos os Santos. Roma fora privada de adoradores e ofertas, mas
seu lugar se preenchera por outra classe que agora vinha a Wittenberg, não
como peregrinos para adorar suas relíquias, mas como estudantes para encher
as suas salas de estudo. Os escritos de Lutero haviam suscitado por toda
parte novo interesse nas Escrituras Sagradas, e não somente de todos os
recantos da Alemanha, mas de outros países, que congregavam estudantes na
Universidade. Moços, chegando à vista de Wittenberg pela primeira vez,
"erguiam as mãos ao Céu e louvavam a Deus por ter feito com que desta
cidade a luz da verdade resplandecesse como de Sião, nos tempos antigos, e
dali se espalhasse mesmo aos mais longínquos países". – D’Aubigné.
Lutero ainda não
estava de todo convertido dos erros do romanismo. Enquanto, porém, comparava
as Santas Escrituras com os decretos e constituições papais, enchia-se de
espanto. "Estou lendo", escreveu ele, "os decretos dos
pontífices, e … não sei se o papa é o próprio anticristo, ou seu apóstolo, em
tão grande maneira Cristo é neles representado falsamente e
crucificado." – D’Aubigné. No entanto, Lutero nessa ocasião era
ainda adepto da Igreja de Roma, e não tinha o pensamento de que em algum
tempo se separaria de sua comunhão.
Os escritos e
doutrinas do reformador estendiam-se a todas as nações da cristandade. A obra
espalhou-se à Suíça e Holanda. Exemplares de seus escritos tiveram ingresso
na França e Espanha. Na Inglaterra, seus ensinos eram recebidos como palavras
de vida. À Bélgica e Itália também se estendeu a verdade. Milhares estavam a
despertar do torpor mortal para a alegria e esperança de uma vida de fé.
Roma exasperou-se cada
vez mais com os ataques de Lutero, e por alguns de seus fanáticos oponentes
foi declarado, mesmo por doutores das universidades católicas, que aquele que
matasse o monge rebelde estaria sem pecado. Certo dia, um estranho, com uma
arma de fogo escondida sob a capa, aproximou-se do reformador, e perguntou
porque ia assim sozinho. "Estou nas mãos de Deus", respondeu. "Ele
é minha força e meu escudo. Que me poderá fazer o homem?" – D’Aubigné.
Ouvindo estas palavras o estranho empalideceu, e fugiu como se fosse da
presença de anjos do Céu.
Roma estava empenhada
na destruição de Lutero, mas Deus era a sua defesa. Suas doutrinas eram ouvidas
em toda parte, "nas cabanas e nos conventos, … nos castelos dos nobres,
nas universidades e nos palácios dos reis"; e homens nobres surgiram por
toda parte para amparar-lhe os esforços. – D’Aubigné.
Foi aproximadamente
por esse tempo que Lutero, lendo as obras de Huss, achou que a grande verdade
da justificação pela fé, que ele próprio procurava sustentar e ensinar, tinha
sido mantida pelo reformador boêmio. "Nós todos", disse Lutero,
"Paulo, Santo Agostinho, e eu mesmo, temos sido hussitas, sem o saber!"
"Deus certamente disso tomará contas ao mundo", continuou ele,
"de que a verdade a ele pregada há um século tenha sido queimada!"
– Wylie.
Num apelo ao imperador
e à nobreza da Alemanha, em favor da Reforma do cristianismo, Lutero escreveu
relativamente ao papa: "É horrível contemplar o homem que se intitula
vigário de Cristo, a ostentar uma magnificência que nenhum imperador pode
igualar. É isso ser semelhante ao pobre Jesus, ou ao humilde Pedro? Ele é,
dizem, o senhor do mundo! Mas Cristo, cujo vigário ele se jacta de ser,
disse: ‘Meu reino não é deste mundo.’ Podem os domínios de um vigário
estender-se além dos de seu superior?" – D’Aubigné.
Assim escreveu ele
acerca das universidades: "Receio muito que as universidades se revelem
grandes portas do inferno, a menos que diligentemente trabalhem para explicar
as Santas Escrituras, e gravá-las no coração dos jovens. Não aconselho
ninguém a pôr seu filho onde as Escrituras não reinem supremas. Toda
instituição em que os homens não se achem incessantemente ocupados com a
Palavra de Deus, tem de tornar-se corrupta." – D’Aubigné.
Esse apelo circulou
rapidamente por toda a Alemanha e exerceu poderosa influência sobre o povo. A
nação toda foi abalada, e multidões se animaram a arregimentar-se em redor do
estandarte da Reforma. Os oponentes de Lutero, ardentes no desejo de
vingança, insistiam em que o papa tomasse medidas decisivas contra ele.
Decretou-se que suas doutrinas fossem imediatamente condenadas. Sessenta dias
foram concedidos ao reformador e a seus adeptos, findos os quais, se não
abjurassem, deveriam todos ser excomungados.
Foi uma crise terrível
para a Reforma. Durante séculos, a sentença de excomunhão, de Roma, ferira de
terror a poderosos monarcas; enchera fortes impérios de desgraça e desolação.
Aqueles sobre quem caía sua condenação, eram universalmente considerados com
espanto e horror; cortavam-se-lhes as relações com seus semelhantes, e eram
tratados como proscritos que se deveriam perseguir até à exterminação. Lutero
não tinha os olhos fechados à tempestade prestes a irromper sobre ele, mas
permaneceu firme, confiando em que Cristo lhe seria apoio e escudo. Com fé e
coragem de mártir escreveu: "O que está para acontecer não sei, nem
cuido em sabê-lo. … Caia onde cair o golpe, não tenho receio. Nem ao menos
uma folha tomba ao solo sem a vontade de nosso Pai. Quanto mais não cuidará
Ele de nós! Coisa fácil é morrer pela Palavra, visto que a própria Palavra ou
o Verbo, que Se fez carne, morreu. Se morrermos com Ele, com Ele viveremos; e
passando por aquilo por que Ele passou antes de nós, estaremos onde Ele está,
e com Ele habitaremos para sempre." – D’Aubigné.
Quando a bula papal
chegou a Lutero, disse ele: "Desprezo-a e ataco-a como ímpia, falsa. … É
o próprio Cristo que nela é condenado. … Regozijo-me por ter de suportar tais
males pela melhor das causas. Sinto já maior liberdade em meu coração; pois
finalmente sei que o papa é o anticristo, e que o seu trono é o do próprio
Satanás." – D’Aubigné.
Todavia a ordem de
Roma não foi sem efeito. A prisão, tortura e espada eram armas potentes para
forçar à obediência. Os fracos e supersticiosos tremiam perante o decreto do
papa; e, conquanto houvesse simpatia geral por Lutero, muitos sentiam que a
vida era por demais preciosa para que fosse arriscada na causa da Reforma.
Tudo parecia indicar que a obra do reformador estava a ponto de terminar.
Mas Lutero ainda era
destemido. Roma tinha arremessado seus anátemas contra ele, e o mundo olhava,
nada duvidando de que perecesse ou fosse obrigado a render-se. Mas com poder
terrível ele rebateu contra ela a sentença de condenação, e publicamente
declarou sua decisão de abandoná-la para sempre. Na presença de uma multidão
de estudantes, doutores e cidadãos de todas as classes, Lutero queimou a bula
papal, com as leis canônicas, decretos e certos escritos que sustentavam o
poder papal. "Meus inimigos, queimando meus livros, foram capazes",
disse ele, "de prejudicar a causa da verdade no espírito do povo comum,
e destruir-lhes a alma; por esse motivo consumo seus livros, em retribuição.
Uma luta séria acaba de começar. Até aqui tenho estado apenas a brincar com o
papa. Iniciei esta obra no nome de Deus; ela se concluirá sem mim, e pelo Seu
poder." – D’Aubigné.
Às acusações dos
inimigos, que dele zombavam pela fraqueza de sua causa, Lutero respondia:
"Quem sabe se Deus não me escolheu e chamou, e se eles não deverão temer
que, ao desprezar-me, desprezem ao próprio Deus? Moisés esteve só, na partida
do Egito; Elias esteve só, no reino do rei Acabe; Isaías só, em Jerusalém; Ezequiel
só, em Babilônia. … Deus nunca escolheu como profeta nem o sumo sacerdote,
nem qualquer outra grande personagem; mas comumente escolhia homens humildes
e desprezados, e uma vez mesmo o pastor Amós. Em todas as épocas, os santos
tiveram que reprovar os grandes, reis, príncipes, sacerdotes e sábios, com
perigo de vida. … Não me considero profeta; mas digo que eles devem temer
precisamente porque estou só e eles são muitos. Disto estou certo: que a
Palavra de Deus está comigo, e não com eles." – D’Aubigné.
Entretanto, não foi
sem terrível luta consigo mesmo que Lutero se decidiu a uma separação
definitiva da igreja. Foi aproximadamente por esse tempo que escreveu:
"Sinto cada dia mais e mais quão difícil é pôr de parte os escrúpulos
que a gente absorveu na meninice. Oh! quanta dor me causou, posto que eu
tivesse as Escrituras a meu lado, o justificar a mim mesmo que eu ousaria
assumir atitude contra o papa, e tê-lo na conta de anticristo! Quais não
foram as tribulações de meu coração! Quantas vezes não fiz a mim mesmo, com
amargura, a pergunta que era tão freqüente nos lábios dos adeptos do papa:
‘Só tu és sábio? Poderão todos os mais estar errados? Como será se afinal de
contas, és tu que te achas errado, e estás a envolver em teu erro tantas
almas, que então serão eternamente condenadas?’ Era assim que eu lutava
comigo mesmo e com Satanás, até que Cristo, por Sua própria e infalível
Palavra, me fortaleceu o coração contra estas dúvidas." – Vida e
Tempos de Lutero, de Martyn.
O papa ameaçara Lutero
de excomunhão se ele não se retratasse, e a ameaça agora se cumprira.
Apareceu nova bula, declarando a separação final do reformador, da Igreja de
Roma, denunciando-o como amaldiçoado do Céu e incluindo na mesma condenação
todos os que recebessem suas doutrinas. Tinha-se entrado completamente na
grande contenda.
A oposição é o quinhão
de todos aqueles a quem Deus emprega para apresentar verdades especialmente
aplicáveis a seu tempo. Havia uma verdade presente nos dias de Lutero –
verdade de especial importância naquele tempo; há uma verdade presente para a
igreja hoje. Aquele que todas as coisas faz segundo o conselho de Sua
vontade, foi servido colocar os homens em circunstâncias várias, e
ordenar-lhes deveres peculiares aos tempos em que vivem e às condições sob as
quais são postos. Se prezassem a luz a eles concedida, patentear-se-iam
diante deles mais amplas perspectivas da verdade. Esta, porém, não é hoje
desejada pela maioria, mais do que o foi pelos romanistas que se opunham a
Lutero. Há, para aceitar teorias e tradições de homens em vez de a Palavra de
Deus, a mesma disposição das eras passadas. Os que apresentam a verdade para
este tempo não devem esperar ser recebidos com mais favor do que o foram os
primeiros reformadores. O grande conflito entre a verdade e o erro, entre
Cristo e Satanás, há de aumentar em intensidade até ao final da história
deste mundo.
Disse Jesus a Seus
discípulos: "Se vós fosseis do mundo, o mundo amaria o que era seu, mas
porque não sois do mundo, antes Eu vos escolhi do mundo, por isso é que o
mundo vos aborrece. Lembrai-vos da palavra que vos disse: Não é o servo maior
do que o seu senhor. Se a Mim Me perseguiram, também vos perseguirão a vós;
se guardaram a Minha palavra, também guardarão a vossa." João 15:19 e
20. E, por outro lado, declarou nosso Senhor explicitamente: "Ai de vós
quando todos os homens de vós disserem bem, porque assim faziam seus pais aos
falsos profetas." Luc. 6:26. O espírito do mundo não está hoje mais em
harmonia com o espírito de Cristo do que nos primitivos tempos; e os que
pregam a Palavra de Deus em sua pureza não serão recebidos agora com maior
favor do que o foram naquele tempo. As maneiras de oposição à verdade podem
mudar, a inimizade pode ser menos manifesta porque é mais arguta; mas o mesmo
antagonismo ainda existe, e se manifestará até ao fim do tempo.
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