A Justificação pela Fé nas Tradições Luterana e
Reformada:
Um Ensaio em Teologia Comparativa
Um Ensaio em Teologia Comparativa
O propósito deste ensaio é
mostrar as similaridades e diferenças entre as duas grandes tradições dentro do
protestantismo — o luteranismo e o calvinismo — na mais importante doutrina
levantada no período da Reforma do século dezesseis. A concentração deste
ensaio será mais nas diferenças do que nas similaridades, tentando despertar no
leitor a mente crítica na análise das duas tradições.
Este trabalho é apenas uma
tentativa de ser justo com ambos os ramos do protestantismo. Não é meu
propósito argumentar extensivamente a favor ou contra luteranos e ou
reformados. Meu único propósito é apresentar com precisão as similaridades e
diferenças presentes, sem fazer neste trabalho extensiva justificativa bíblica.
Será apenas uma apresentação histórico-teológica do assunto sem, contudo, ter
uma conotação apologética, muito embora eu não consiga esconder totalmente
minhas próprias convicções e predileções reformadas.
A. Similaridades
1. Sobre a Importância da Doutrina da
Justificação
A doutrina da justificação é de
tal importância para a teologia luterana que, em círculos luteranos, ela é
chamada articulus stantis et cadentis
ecclesiae (o artigo sobre o qual a igreja permanece ou cai), sendo o artigo
principal das confissões luteranas(1), a espinha dorsal da teologia na qual todas as outras
doutrinas estão apensas e da qual todas dependem. A doutrina da justificção nos
símbolos de fé luteranos é o carro-chefe de doutrina, sendo o core de cada artigo. A Apologia afirma literalmente que, na
controvérsia sobre a justificação, "a principal doutrina do cristianismo
está envolvida".(2)
A Fórmula de Concórdia, citando a Apologia,
diz: "Nas palavras da Apologia, este artigo da justificação pela fé é ‘o
artigo chefe da totalidade da doutrina cristã’".(3)
Para a fé reformada esta doutrina
é também muito significativa. Durante o tempo da Reforma, a mesma importância a
esta doutrina foi dada nos círculos calvinistas. Calvino tratou deste assunto
em suas Institutas da Religião Cristã,
escrevendo sobre ela centenas de páginas. Ele insiste em que a doutrina da
justificação é "a principal dobradiça sobre a qual a religião se
dependura, de modo que devotemos uma maior atenção e preocupação para com
ela".(4)
O contexto histórico da Reforma
Protestante do séc. 16, na luta contra o catolicismo romano, exigiu uma grande
ênfase na doutrina da justificação pela fé em ambas as tradições, já que o
pensamento vigente na Igreja Católica era a de uma justificação na qual as
obras faziam parte.(5)
2. Sobre a Justificação pela "Fé
Somente"
Está absolutamente evidente que o
sola fide é muito enfatizado na
teologia luterana em sua batalha contra a teologia do catolicismo medieval. Fé
e obras são termos excludentes entre si. Nada poderia ser acrescentado à
justiça de Cristo. Nenhuma adição humana seria tolerada.
A doutrina de Trento ensinava que
a justiça merecida por Cristo deveria ser apoiada pela justiça do próprio
pecador que cooperava com a graça. Literalmente, Trento expressa-se desta
forma, no Cânone 9, da Sexta Sessão:
Se alguém diz que o pecador é
justificado pela fé somente, significando que nada mais é requerido para
cooperar a fim de obter a graça da justificação, e que não é de forma alguma
necessário que ele seja preparado e disposto pela ação de sua própria vontade,
que seja anátema.(6)
No pensamento luterano, nunca as
duas coisas, fé e obras, andaram juntas soteriologicamente. Com os católicos em
mente, Melanchton, o escritor de Apologia,
diz que "a partícula somente ofende
algumas pessoas..."(7)
Se eles se desagradam dessa partícula excludente ‘somente’, deixe-os remover os outros termos também excludentes
como ‘livremente’, ‘não de obras’, ‘é um dom’, etc."(8)
Em seu comentário sobre a Carta
de Paulo aos Gálatas, Lutero diz que somos "justificados não pela fé
proporcionada pelo amor, mas pela fé unicamente e somente". Segundo ele, a
fé não justifica porque produz o fruto do amor a Cristo, mas porque ela recebe
o fruto do amor de Cristo.(9)
Embora Lutero tenha sido o
primeiro a enfatizar o pela "fé somente",
esta ênfase não é exclusiva da teologia luterana. Stanford Reid disse que
"Calvino não hesitou em dar grande ênfase na doutrina da justificação pela
fé somente."(10) Reid conclui: "Portanto, se a justificação
pela fé somente é uma doutrina especificamente luterana, devemos colocar
Calvino no círculo luterano antes que no reformado."(11) Calvino não
ignora a dificuldade de defender a expressão "pela fé somente", pois
reconhece a força dos ataques de Roma.(12) Contudo, Calvino, embora reconheça que a expressão
"pela fé somente" não é encontrada no texto bíblico, e cônscio ainda
dos ataques da Igreja de Roma a essa expressão, dá pleno suporte a essa
doutrina nascida nos círculos luteranos.(13)
3. Sobre o Aspecto Forense da
Justificação
O aspecto forense (14) da justificação
é distintivo de todos os reformadores. Eles lutaram contra o conceito de
justificação dominante na Igreja de Roma, que se definia mais claramente no
Concílio de Trento. Trento afirmava a justiça infusa e rejeitava o conceito
forense da justificação e anatematizava todos os protestantes, do lado oposto.
Trento insistia na justiça infusa.
Esta disposição ou preparação é
seguida pela justificação propriamente, que não é somente uma remissão de
pecados mas também a santificação e renovação do homem interior através da
recepção voluntária da graça e os dons por meio de que um injusto torna-se
justo.(15)
Portanto, na visão de Trento, a
justificação é um processo, na qual o pecador é tornado justo, misturando a
justificação com a santificação. Estes dois termos são virtualmente sinônimos
em Trento. Na visão de Roma, a justiça é infusa, causando mudança na vida
interior do pecador. A imputação é negada na prática, e afirmada unicamente a iustitia infusa. Ainda no Cânone 11,
Trento afirmou:
Se alguém diz que os homens são
justificados unicamente pela imputação da justiça de Cristo ou unicamente pela
remissão dos pecados, para a exclusão da graça e da caridade que é derramada
nos seus corações pelo Espírito Santo, e permanece neles, ou também que a graça
pela qual nós somos justificados é somente a vontade de Deus, que seja anátema.(16)
Os Protestantes não poderiam
ficar silentes diante de tal condenação da parte dos Católicos. Eles se uniram
na luta contra o forte inimigo que os atacava. A iustitia infusa era inadimissível para os Protestantes. Estes criam
que a graça era derramada, mas que a justificação era uma matéria judicial, que
tinha a ver com a imputação da justiça de Cristo a nós. A imputação era o
coração e a essência da justificação forense. Não poderia haver o aspecto
forense da justificação sem a imputação da justiça de Cristo. A doutrina da
imputação da justiça de Cristo é co-irmã da doutrina da justificação. Elas não
podem estar separadas.
Na teologia luterana, "a
justificação é um termo jurídico e significa pronunciar e tratar como justo,
justificar."(17)
Analisando o texto de Romanos 2.13, a Apologia da Confissão de Augsburgo diz:
"Ser justificado aqui não significa que o ímpio é tornando justo, mas que
ele é pronunciado justo num sentido forense."(18) Lutero usou a famosa frase simul justus et peccator (ao mesmo tempo
justo e pecador), referindo-se à condição simultânea do pecador, onde ele é
contado, ao mesmo tempo, como justo judicialmente, em virtude da imputação da
justiça de Cristo e, todavia, permanecendo pecador em si e de si mesmo. Por
causa do aspecto forense da doutrina, todo pecador é visto como justificado coram Deo.
Calvino seguiu os passos dos
reformadores de primeira geração, como Lutero, Melanchton, Oecolampadius,
Zwinglio, no aspecto forense da justificação. Reid disse que
"semelhantemente aos outros reformadores, Calvino foi um advogado que pensava muito em termos
forenses."(19) Calvino diz que "justificado pela fé é aquele que, excluído da justiça das
obras, agarra-se à justiça de Cristo através da fé, e vestido com ela, aparece
na vista de Deus não como um pecador, mas como um homem justo."(20) A justificação,
portanto, segundo Calvino, "acontece quando Deus declara o pecador justo;
ele é aceito e perdoado por causa de Cristo somente."(21) Este é o seu
conceito forense de justificação.
Está claro para ambas as
tradições que todos os que são limpos pelo sangue de Jesus Cristo derramado
sobre a cruz são plenamente reconciliados com Deus e aceitos por ele, porque
seus pecados foram imputados a Cristo e Sua justiça lhes foi imputada.
4. Sobre a Justiça Transferida
Trento afirmava que a
santificação era seguida da justificação. A justificação é o resultado da
justiça infusa (não imputada) de Cristo. A justiça é antes transformadora do
indivíduo do que creditada a ele. Na verdade, o pecador é justificado com base
em uma justiça interna (iustitia in nobis)
do que por uma justiça que vem de fora. Em resumo, na teologia Católica, a
justiça é dada ao justo antes que ao pecador.
Novamente contra as investidas
Católicas, os protestantes afirmavam uma justiça que vem de fora deles, uma justitia extra nos, vinda da imputação
da justiça de Cristo.
A teologia luterana diz que a
"justiça concedida ao pecador não é sua própria, produzida por ele mesmo,
mas uma ‘justiça que vem de fora pertencente a Jesus Cristo. A justiça não é
uma qualidade do homem. Ela consiste antes em ser justo somente através da
imputação graciosa da justiça de Cristo, isto é, uma justiça ‘fora’ do
homem."(22)
Semelhantemente, Calvino
enfatizou a iustitia aliena, isto é,
a justiça que vem de outro, que vem de fora. Embora como Lutero Calvino use a
frase "pela fé somente",
ele é cuidadoso em dizer também que a fé não efetua de si mesma a justificação,
mas entende que a fé é o meio pelo
qual nos apropriamos da justiça de outro, que é transferida a nós. Ele diz:
"Não há nenhuma dúvida de que aquele que é ensinado procurar justiça fora
de si próprio é destituído de justiça em si mesmo."(23) Mais adiante, Calvino diz:
"Você pode ver que nossa justiça não está em nós, mas em Cristo, e que a
possuimos somente sendo participantes em Cristo; de fato, com ele possuimos
todas essas riquezas."(24)
A justiça de Cristo, portanto, é
ensinada como sendo imputada a nós. A justificação do ímpio vem de fora dele, iustitia extra nos, procedendo da
justiça de Cristo. Ambas as tradições enfatizam a justiça que não é própria do
homem, mas vem de fora, transferida de Jesus Cristo para nós.
5. Sobre o Papel da Fé na Justificação
O papel da fé na justificação
também trouxe controvérsia dos Reformadores contra Roma. Esta negava que havia
a justificação pela fé que recebe e descansa em Cristo somente para a salvação,
tal como ela é livremente oferecida no Evangelho. Roma ensinou que o pecador é
justificado pela fé em Cristo, mas é uma fé informada pelo amor (25), sendo o gérmen
de uma nova obediência. Essa fé é infusa no coração do homem quando do batismo
dos infantes, de forma que ela apaga o pecado original. Esse tipo de fé foi
rejeitado pelos Reformadores, porque ela não somente é infusa, mas porque ela
exala algum tipo de necessidade de boas obras que estão contidas nessa fides caritate formata.
Para o luteranismo, a fé tem um
papel muito diferente, porque é diferente o conceito de fé. Ela é preponderante
na justificação, dentro da tradição luterana. "A fé que justifica,
contudo, não é um mero conhecimento histórico, mas uma aceitação firme da
oferta de Deus de prometer o perdão dos pecados e a justificação. ...Fé é
aquela adoração que recebe as bênçãos que são oferecidas por Deus."(26)
Dentro da tradição luterana, a fé
vem em oposição aos que confiavam na guarda da lei como base para a
justificação. A Apologia da Confissão de
Augsburgo diz que:
a obediência da lei justifica
pela justiça da lei. Mas Deus aceita esta justiça imperfeita da lei somente por
causa da fé... Disto fica evidente que somos justificados diante de Deus pela
fé somente, visto que pela fé somente recebemos o perdão dos pecados e a
reconciliação em nome de Cristo... Portanto, ela (justificação) é recebida pela
fé somente, embora a guarda da lei siga com o dom do Espírito Santo.(27)
Para o Calvinismo, a fé tem
também um papel importantíssimo. É pela fé somente que o homem é justificado,
mas a fé em si mesma não justifica. Através dela o homem abraça a Cristo por
cuja graça somos justificados. "É dito da fé que ela justifica porque ela
recebe e abraça a justiça oferecida no Evangelho."(28)
Osiander, contra quem Calvino se
insurgiu, havia dito erroneamente que a "fé é Cristo". Em resposta a
ele, Calvino disse que "a fé, que é o único instrumento para receber a
justiça, é ignorantemente confundida com Cristo, tornando-o a causa material e
ao mesmo tempo o Autor e Ministro deste grande benefício."(29) A fé para Calvino era apenas a causa instrumental da justificação.
Somente Deus justifica. Então,
nós transferimos esta mesma função a Cristo porque a ele foi dado ser nossa
justiça. Comparamos a fé a uma espécie de vaso. A menos que venhamos esvaziados
e com a boca de nossa alma aberta para procurar a graça de Cristo, não seremos
capazes de receber Cristo.(30)
Para ambas as tradições,
portanto, a fé não é a base para a justificação, mas simplesmente o meio, o
órgão de apropriação, ou o instrumento dela. Pela fé somente o pecador toma
posse de todas as bênçãos da justificação.
B. Diferenças
Nesta segunda parte deste ensaio
destaco as diferenças que existem entre as duas tradições, luterana e
calvinista, para fins didáticos. As diferenças não são mais importantes que as
semelhanças, mas aquelas são menos desconhecidas que estas. Portanto, a
finalidade de tratar com mais detalhes das diferenças é com o propósito de
ajudar o leitor a compreender onde as duas maiores tradições da Reforma pensaram
diferentemente.
1. Diferença Quanto à Extensão da
Justificação
a) Embora na teologia luterana a
doutrina da justificação pela fé seja o articulus
stantis et cadentis ecclesiae, controlando todas as outras doutrinas,
inclusive as relacionadas com a soteriologia, o aspecto da sua extensão está na
dependência de uma outra importante doutrina do esquema teológico luterano — a
doutrina da Graça Universal, isto é, a doutrina que ensina que Jesus Cristo
morreu e realmente justificou o mundo. Dentro da tradição Luterana, a expressão
"o mundo" deve ser entendida como "cada pessoa sem
exceção". Esta doutrina exerce uma influência muito grande na extensão da
justificação, dizendo que "o juízo justificante de Deus cobre todos os
homens. Como Cristo morreu não somente pelos crentes mas por todos os ímpios
... todos eles foram justificados pelo seu sangue perante Deus."(31) Comentando 1 Coríntios 5.18-20, que
trata da reconciliação, Theodore Engelder, um teólogo do Sínodo de Missouri,
critica um outro luterano famoso, o Dr. Lenski, dizendo que:
ele repudia e ridiculariza o
ensino de que na manhã de Páscoa Deus perdoou realmente todo o mundo e todos os
seus pecados, e que real e verdadeiramente Deus justificou o mundo. Ele
protesta contra tornar a reconciliação objetiva, contra a justificação geral,
querendo dizer que Deus realmente não pronunciou o mundo, e cada um dos
indivíduos do mundo, realmente inocente de todo o pecado e culpa.(32)
A doutrina da justificação
objetiva tem que combinar com a doutrina da graça universal. Por essa razão,
McGrath comenta:
Assim como pouco podemos limitar
a redenção de Cristo a certos indivíduos, assim pouco podemos limitar o efeito
imediato desta redenção, isto é, justificação, a esses indivíduos; pelo sangue
de Cristo todos os homens são justificados.(33)
Segundo a teologia luterana, a
graça de Deus é universal. Portanto, Cristo Jesus levou os pecados de todos os
homens sem exceção, trazendo-lhes justificação.
Deus, então, não imputou aos
homens as suas transgressões. Ele, então, perdoou todos os seus pecados, os
pecados de todos eles. O ato de perdoar é um ato terminado, é cumprido, os
pecados são perdoados a todos os
homens. Portanto, não pregamos a respeito do perdão de pecados, mas nós pregamos o perdão em si,
oferecemos aos homens um produto terminado, não uma possibilidade futura.(34)
Por essa razão, Deus não imputa
mais aos homens todos os seus pecados, porque todos foram justificados em
Cristo, que por eles todos morreu. Todos os homens sem exceção são declarados
justos diante de Deus pelo fato de Cristo ter morrido por eles.
b) A teologia reformada da
extensão da justificação tem também a mesma dependência da obra cristológica,
mas a diferença está na extensão da expiação. O que faz a diferença nas duas
tradições é a diferença na extensão da expiação, não o conceito de
justificação. Segundo a fé reformada Deus justifica somente o seu povo, sua
igreja, aqueles que pertencem a Deus, aqueles que o Pai entregou ao Filho para
que por eles morresse e ressuscitasse, os chamados eleitos.
Esta doutrina reformada pode ser
claramente deduzida de Romanos 8.33-34. A extensão da justificação está
limitada aos eleitos de Deus, conforme o texto de Paulo: "Quem intentará
acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica" (Rm
8.33).
Ninguém pode fazer qualquer
acusação contra os eleitos de Deus, porque eles já receberam a justificação de
Deus, que os torna sem débito perante a lei. Eles não mais são devedores à lei.
Sua dívida foi quitada pelo "fiador" deles (Hb 7.22), que se tornou
responsável pelas obrigações legais daqueles a quem ele representou. Portanto,
nem o inimigo deles, Satanás, pode fazer qualquer acusação na presença de Deus,
contra aqueles que têm o seu débito devidamente pago; e um pagamento que é
perfeitamente aceito pelo credor, porque é pagamento de alguém que foi enviado
justamente para tal tarefa.
"Quem condenará os eleitos de Deus? É Cristo Jesus quem morreu, ou antes, quem ressuscitou, o qual está
à direita de Deus, e também intercede por nós"
(Rm 8.34).
Deus, portanto, considera todos
os seus eleitos justificados, em virtude da obra redentora feita por Jesus
Cristo em favor deles. Eles não mais podem ser condenados, pois a dívida foi
paga, e a mesma dívida não pode ser paga duas vezes, pois isso seria injustiça
de Deus. Deus, por questão de exatidão, não pode lançar na condenação nenhuma
pessoa por quem Jesus Cristo morreu. Se ele fizesse isso, seria injusto consigo
mesmo, pois estaria considerando nula uma obra tão importante que seu Filho
veio fazer. Se ele veio morrer pelos pecados do seu povo, Deus já puniu o seu
povo, pelos seus pecados. Ora, se Deus já puniu seu povo na morte de Jesus, por
que iria puni-lo uma segunda vez? Como a mesma culpa pode ser paga duas vezes?
A morte de Cristo, que é substitutiva, tira qualquer possibilidade de que
alguém por quem ele veio morrer, receba de novo a condenação de seus pecados. É
preciso que esta verdade seja devidamente entendida. A morte de Jesus Cristo na
cruz em favor do seu povo é algo extremamente sério para ser anulada apenas
pela incredulidade dos pecadores. Na verdade, todos os pecadores por quem Jesus
morreu são, de fato, justificados, e não mais terão que pagar suas próprias
culpas.
Todos os eleitos de Deus recebem
a graciosa obra de justificação, e somente eles. Ninguém mais. Além disso, o
texto diz que Deus considera plenamente satisfatório o que Cristo fez, pois é
dito que é "Deus quem os justifica". Se Deus justifica, ninguém pode
condenar. E a base dessa verdade, segundo o texto de Romanos 8.34 é o fato de
Jesus Cristo ter morrido e resssucitado pelos eleitos de Deus.
A grande diferença entre as duas tradições é realmente vista quando
elas estudam o texto básico sobre justificação, que é Romanos 5.12-19.
Quando tratamos da extensão da
justificação, ambos, luteranos e reformados, vão para o mesmo texto
supra-citado. A diferença entre as duas tradições não está na definição ou no
conteúdo da doutrina da justificação, mas nas pressuposições contidas na
extensão da doutrina da expiação, com as quais vamos estudar essa matéria.
A teologia luterana interpreta
este texto do seguinte modo: "Pela desobediência de um, Adão, todos os
homens foram tornados pecadores pela imputação, v.19a, e, por causa do pecado
de Adão, a condenação da morte veio sobre todos os homens, v.18a."(35) Até este ponto
ambas as tradições concordam perfeitamente. Contudo, quando Paulo começa a
falar a respeito daqueles que são justificados, a diferença de interpretação
logo surge. A teologia luterana interpreta o v.18b deste modo: "Porque é
um fato que a ofensa de Adão resultou na condenação de morte para todos os
homens; da mesma forma é um fato que a justiça de Cristo resultou na
justificação de vida para todos os homens."(36) Todos os homens que estão debaixo da
condenação de Adão, estão também debaixo da justificação de Cristo. Segundo a
teologia luterana, Paulo está falando de um
e do mesmo povo. Segundo a tradição
luterana, este texto prova "conclusivamente que o julgamento gracioso
original de Deus, pelo qual os pecadores são absolvidos e contados como justos,
não é limitado aos crentes, mas cobre todos os homens. Por esta razão, ela é
chamada justificação universal."(37)
A teologia reformada interpreta
este mesmo texto de uma forma diferente. Ela assevera que Paulo está falando de
dois povos diferentes neste texto.
Ele está falando da "velha humanidade" em Adão e da "nova
humanidade" em Cristo. Todos aqueles que estão debaixo da obra de Cristo
um dia também estiveram debaixo da condenação de Adão, mas nem todos os que
estão debaixo da condenação de Adão estão também sob a obra de Cristo. O
"todos" em Adão não é equivalente ao "todos" em Cristo. Mas
deve ser entendido que o "todos" em Cristo certamente recebem a
"justificação que dá vida".
Ambos, luteranos e reformados,
crêem que "todos" estão justificados, mas a diferença real é a
respeito de quem Paulo está falando.
Quem são os "todos"? Os luteranos dizem que eles são exatamente os
mesmos que estiveram em Adão, mas os reformados dizem que eles não são
exatamente os mesmos numericamente. Estas interpretações distintas fazem uma
enorme diferença na extensão da justificação.
2. Diferença Quanto à Relação entre
Justificação
Objetiva e Subjetiva(38)
Ambas as tradições crêem que a
justificação objetiva é a base para a justificação pessoal ou subjetiva, mas a
diferença entre elas está na aplicação da justificação subjetiva, como um
resultado da justificação objetiva.
A tradição luterana crê que:
as grandes bênçãos espirituais
que Cristo preparou para todos os homens através de sua vida santa e de seu
sofrimento e morte inocentes, e que são oferecidos livremente a todos no
evangelho, não ajudarão aqueles que as rejeitam em incredulidade ... Assim, a
justificação objetiva ou universal não deve ser elaborada para significar que eo ipso todos os homens agora desfrutam
perdão, sejam pessoalmente justificados e serão salvos.(39)
Dessa citação de Koehler posso
dizer que, de acordo com a tradição luterana, não há qualquer garantia de que
todas as pessoas por quem Jesus morreu serão pessoal e infalivelmente salvas. A
obra de Jesus Cristo não é eficaz em cada pecador por quem ela é feita, no
sentido de todos, sem exceção, experimentarem uma justificação pessoal. A razão
para isto é que alguém pode rejeitar os benefícios da justificação objetiva
através da incredulidade. Segundo a tradição luterana, o ato de perdoar foi
terminado, cumprido, e os pecados de todos os homens são realmente perdoados. A
tradição luterana diz: "Nós pregamos o perdão em si mesmo; nós oferecemos
aos homens um produto acabado, não uma possibilidade futura."(40) Contudo, a
ausência de fé impede que alguém possa ser salvo e possa desfrutar a salvação.
E a tradição luterana insiste: "Todavia, sua incredulidade não invalida o
fato que seus pecados são perdoados".(41)
Portanto, eu posso dizer que a
justificação objetiva não ocasiona, necessariamente, a manifestação da
justificação subjetiva. A aplicação desta última depende, em última instância,
do indivíduo, porque "é pela fé, e pela fé somente, que o indivíduo aplica
a si próprio o julgamento gracioso de Deus, e, assim, ganha a posse pessoal e o
desfrutar de tudo o que ela implica."(42)
Diferentemente, na tradição
reformada há o ensino de que todas as pessoas por quem Cristo morreu,
infalivelmente serão salvas. A justificação objetiva é uma obra do Redentor que
é feita extra nos, num determinado
tempo da história do mundo (nisto Luteranos e Calvinistas estão juntos), mas na
concepção calvinista essa obra que é feita objetivamente na cruz assegura a
aplicação da justificação subjetiva. Portanto, a justificação subjetiva é um
resultado da obra eficaz do Espírito Santo que, por meio da Palavra, gera fé
nos corações daqueles por quem Jesus morreu. Nesta obra de aplicação da obra
redentora de Cristo, o Espírito não falha. Todos aqueles que foram justificados
coram Deo (diante de Deus), através
da obra realizada por Jesus Cristo, são trazidos à fé pelo Espírito Santo,
através da instrumentalidade da pregação da Palavra. A obra do Espírito Santo é
aplicar a soteriologia objetiva ao coração do pecador, trazendo-o à fé, que é o
instrumento ou órgão de apropriação da justiça de Cristo conquistada na cruz.
Quando uma pessoa crê, ela é justificada pessoalmente, tomando posse das
bênçãos de Cristo conquistadas em seu favor na cruz. A aplicação da
justificação objetiva de Cristo não depende do pecador, mas é unicamente o
resultado da obra do Espírito Santo que usa a Palavra para criar fé no coração.
Então o pecador crê e a justificação subjetiva acontece.
Para que entendamos esta
diferença de aplicação da justificação é necessário que entendamos um outro
aspecto muito importante, que é o da relação entre a obra do Espírito e a
pregação da Palavra, em ambas as tradições.
Na tradição luterana, a obra do
Espírito Santo é absolutamente inseparável da pregação da Palavra no sentido em
que cada vez que a Palavra é pregada, o Espírito Santo opera nos corações dos
homens com a mesma intensidade, fazendo tudo o que é possível para convencê-los
de sua pecaminosidade, tentando trazê-los todos à salvação. Mas, ao mesmo
tempo, os homens são capazes de resistir à obra do Espírito Santo nos seus
corações. Neste sentido, é dito que eles rejeitam sua obra, e a justificação
objetiva não lhes é aplicada, e eles, por causa de sua incredulidade não são
justificados pessoalmente, mas condenados.
Na tradição reformada, contudo, a
obra do Espírito Santo é relacionada à pregação da Palavra (embora em alguns
círculos de pensadores reformados haja a crença de que a obra regeneradora do
Espírito, excepcionalmente, precede a pregação da Palavra), mas nem sempre o
Espírito opera aplicando a obra da redenção através da pregação da Palavra nos
corações dos que a ouvem. Ele aplica o Evangelho simplemente àqueles por quem
Jesus Cristo morreu, no tempo que lhe apraz. Nem todo eleito crê logo que ouve
a pregação, nem a obra do Espírito (e, obviamente, o resultado da pregação) é a
mesma em todas as pessoas que ouvem a pregação da Palavra. Ele não opera do
mesmo modo em todos os ouvintes. Mas, certamente, ele é diretamente responsável
pela obra que causa a fé justificadora, ou a justificação subjetiva. Sua obra é
sempre eficaz e ele nunca falha na aplicação da obra de Cristo ao coração dos
pecadores. Ele sempre torna certa a justificação pessoal deles.
3. Diferença Quanto ao Motivo da
Justificação e da Condenação
É crido por ambas as tradições
que a base para a nossa justificação é encontrada na obediência ativa e passiva
de Jesus Cristo. É também crido por ambas que a fé é a causa instrumental da
justificação ou o medium apprehendens,
pelo qual recebemos o que nos é oferecido na pregação do Evangelho.
Mas quando tratamos da causa da condenação, as diferenças
aparecem. A condenação é o oposto da justificação. Se uma pessoa não é
justificada, isto é, se ela não é pessoalmente perdoada, ela certamente será
condenada. A pergunta que se faz, então, é: Qual é a base para a condenação?
Segundo a tradição luterana,
todos os homens, sem exceção, são objetivamente justificados, e eles não podem
ser condenados pelos pecados pelos quais Jesus Cristo morreu. Então, quando se
fala a respeito da justificação subjetiva, sempre se menciona a fé, mas se uma
pessoa não crê na oferta de salvação, ela é condenada por causa de sua
incredulidade, não por causa daqueles pecados pelos quais Jesus já morreu.
Novamente eu faço uma citação, que reflete a tradição luterana: "Todavia,
a sua incredulidade não invalida o fato que seus pecados são perdoados."(43) As pessoas que
têm os seus pecados perdoados não podem ser condenadas por eles. Portanto, se
um pecador é objetivamente perdoado na cruz, certamente não pode ser levado à
condenação por aquilo que já foi pago. Então, o único pecado que pode trazer
condenação, e pelo qual Jesus não pagou, é a descrença na obra de Jesus, ou
seja, a incredulidade.
Segundo a tradição reformada, o
aspecto da incredulidade é relevante, mas a ênfase na matéria da condenação não
está nela, mas no fato de os pecadores serem culpados por seus pecados, e
porque seus pecados têm que ser pagos. Somente seus pecados os conduzem à
condenação, nada mais. Eles não são condenados simplesmente porque são
descrentes, mas porque merecem condenação em virtude de sua pecaminosidade que
não foi expiada. Assim como a fé não é a base da justificação, a incredulidade
não é a base ou a causa da condenação. Para expressar isto em outras palavras,
na fé reformada crê-se que assim como a fé é o órgão de apropriação para as
bênçãos da salvação, a fim de desfrutá-las nesta presente vida, assim a
incredulidade também é o instrumento através do qual se toma posse das
maldições da ira de Deus, mesmo neste tempo presente, sofrendo a ausência de
paz, pela separação de Deus, uma espécie de antecipação da morte eterna, que
será aplicada na manifestação final da ira de Deus.
A fim de entendermos essas duas
diferentes posições dos herdeiros da Reforma, temos que entender antes alguma
coisa da extensão da expiação de Cristo.
Na tradição luterana, a obra
expiatória de Jesus Cristo foi feita em favor de cada pessoa sem exceção.
Objetivamente, através da obra de Jesus Cristo, todas as pessoas são perdoadas, e apenas os que crêem são subjetivamente justificados.
Na tradição reformada,
diferentemente, a obra de Jesus Cristo é em favor e no lugar daqueles que são
seus, do seu povo, daqueles que o Pai lhe havia entregue. Portanto, todas essas
pessoas que o Pai entregou ao Filho são objetivamente e subjetivamente
justificadas, tendo os seus pecados perdoados, porque todos aqueles por quem
Jesus Cristo morreu, por causa da obra do Espírito neles, certamente virão à
fé.
Então, o motivo da
justificação-condenação, obviamente, segue diferente nas duas tradições:
Na teologia luterana não há
nenhum lugar para um duplo pagamento, isto é, o mesmo débito sendo pago duas
vezes (uma vez por Cristo e a outra pelo pecador), porque a teologia luterana
crê numa substituição real. Se há substituição, as pessoas substituídas na cruz
(e cada pessoa sem exceção o é), não têm que pagar pessoalmente os seus
pecados, pois eles já foram pagos. Por esta razão, a motivo da condenação é a
incredulidade.
Na teologia reformada também não
há qualquer lugar para o pagamento duplo da mesma penalidade, porque ela também
crê na real substituição. Se um morreu no lugar de outros, esses outros não
mais têm que pagar o mesmo débito. Eles já estão absolutamente livres desse
pagamento! Mas a diferença entre esta tradição e a outra é que nesta nem todas
as pessoas têm os seus pecados pagos na cruz. O motivo da condenação não é
simplesmente a sua incredulidade, mas seus pecados. Então, eles experimentam
pessoalmente a ira de Deus por causa de sua pecaminosidade não expiada,
enquanto que os eleitos (os do seu povo) desfrutam o amor salvador de Deus
porque tiveram seus pecados pagos na cruz.
4. Diferença Quanto à Relação entre a
Justificação e os outros
Aspectos da Soteriologia
Como a doutrina da justificação é
o articulus stantis et cadentis ecclesiae,
o artigo central da fé luterana, todos os outros aspectos da soteriologia são
estudados à luz do conceito da justificação, e mesmo alguns luteranos dizem que
a justificação é sinônima de regeneração, redenção, etc, seguindo os ensinos de
suas Confissões.
Quando os teólogos luteranos
tratam desta matéria, a palavra ‘justificação’ assume uma conotação diferente,
não ligada estritamente aos termos bíblicos e forenses. Teologicamente (ou em
seu "sentido doutrinário"), o termo ‘justificação’ é diferente e mais
amplo(44)
"contendo muito mais significação por detrás de si do que mesmo os
vocábulos do hebraico e do grego."(45) Aqui, a justificação é usualmente sinônimo de Evangelho num
sentido mais estrito.
Os teólogos reformados não fazem
distinção entre a justificação num sentido mais estrito e num sentido mais
amplo. Eles não usam metáforas ou outra coisa qualquer para expressar a
identidade da justificação com outras matérias soteriológicas. Eles dizem,
contudo, que a justificação é um aspecto do processo total da restauração do
pecador, mas por causa da sua importância doutrinária, a justificação é
relacionada intimamente com todos os outros aspectos da soteriologia. Por
exemplo, a regeneração não é uma "metáfora" para justificação, mas
ela é absolutamente ligada à regeneração, sendo que esta última causa mudança
na vida do pecador enquanto que a primeira causa mudança no modo de Deus tratar
o pecador.
Não existe qualquer diferença
entre "um sentido doutrinário" mais amplo e um significado mais
limitado do entendimento exegético dos vocábulos, na teologia reformada. A
ênfase da teologia reformada é apenas no aspecto forense da justificação e,
portanto, mais relacionado ao aspecto exegético do significado dos vocábulos
nas línguas originais. Por esta razão, há uma relacionamento próximo entre a
justificação e os outros aspectos soteriológicos, mas não há nenhum sentido
mais amplo de justificação como o que está presente nas Confissões Luteranas.
5. Diferença Quanto à Origem e os
Elementos Constitutivos da Fé Justificadora
Ambas as tradições crêem que
Cristo é o objeto de nossa fé. Contudo, é necessário entender que devemos saber
algumas coisas do que ele disse e do que ele fez, que estão registradas no
Evangelho. Por esta razão devemos crer no evangelho. Neste sentido, o Evangelho
é também o objeto de nossa fé.
Ambas as tradições também crêem
que a fé é gerada no coração dos homens pela obra do Espírito Santo, mas a
questão a respeito dos instrumentos que causam a fé levanta algumas diferenças
entre elas:
Sobre a Origem da Fé Justificadora
Na tradição luterana, a fé é
gerada através da pregação do Evangelho e através da administração dos
sacramentos, batismo e eucaristia.(46)
Na tradição reformada, a fé vem
como resultado da obra do Espírito, apenas através da pregação do Evangelho, e
não através do batismo (ou outro sacramento), como é crido na tradição
luterana.
Sobre os Elementos Constitutivos da Fé
Justificadora
O que faz a diferença entre as
duas tradições são os elementos constitutivos da fé justificadora.
A teologia reformada crê que a fé
justificadora sempre deve conter um elemento intelectivo. Aquele que crê tem
que possuir algum conhecimento daquele em quem crê e daquilo que ele disse e
fez. Quando um infante, de absoluta tenra idade, é batizado, ele não tem a
capacidade de entender nada daquilo que é feito com ele, nem a capacidade de
entender algo a respeito de Cristo ou de sua obra, ou ainda de suas palavras.
Os reformados batizam os seus infantes, mas o batismo não gera fé nos corações
deles, porque na fé justificadora, de acordo com a teologia reformada, os três
elementos devem estar presentes: intelectivo, emocional e volitivo. Contudo, no
batismo dos filhos pequeninos, estes elementos não podem estar presentes. Portanto,
o sacramento em si mesmo, não gera fé neles. Eles são batizados, não porque
crêem ou porque o sacramento gera algo neles, mas porque são herdeiros das
promessas, pois Deus diz que abençoaria os crentes e os seus filhos, sendo a
promessa de salvação para os do pacto e de sua descendência.
A teologia luterana, contudo, não
dá ênfase a esses três elementos, especialmente no caso do batismo dos
infantes. O elemento mais importante para ela é a "fiducia", a confiança do coração, que certamente acontece no
coração de quem é batizado, mesmo quando ainda na mais tenra idade. Um dos mais
representativos teólogos luteranos, ainda estudado e aceito nos círculos
luteranos, disse que fiducia é:
o ato apresentado pelo homem,
esteja ele dormindo ou acordado, seja ele adulto ou criança, seja debaixo de
circunstâncias normais quando ele está cônscio de sua fé ou nas horas mais
severas de provação quando ele imagina que perdeu a sua fé.(47)
Por essa razão é crido que fiducia pode acontecer no coração de um
infante quando o sacramento do batismo é ministrado.
Essa questão sobre os elementos
constitutivos da fé faz uma enorme diferença quando se trata do assunto da
justificação subjetiva. Em outras palavras, segundo a tradição luterana, todos
os infantes que são devidamente batizados são justificados subjetivamente,
porque o elemento fiducia já está
presente no coração deles, independente de qualquer entendimento que eles
possam ter daquilo que objetivamente Jesus Cristo fez por eles. Na fé
reformada, contudo, o elemento fiducia
aparece quando há o devido entendimento da mensagem que é proclamada, porque a
fé vem pelo ouvir da pregação. Portanto, somente aqueles que crêem pessoalmente
é que são justificados subjetivamente, e eles crêem simplesmente porque
entendem aquilo que lhes é pregado. O elemento intelectivo (juntamente com os
outros dois) é extremamente importante para que haja fé. A fé não é cega, ela
pressupõe um conhecimento de Cristo. Quando alguém crê no que é pregado, por
graça divina, esse conhecimento se torna salvador. Aí, então, acontece a
justificação subjetiva.
Um outro aspecto importante da
tradição reformada é que, quando um infante morre, ele não precisa ser
justificado subjetivamente, porque a fé só é necessária para que se desfrute a
salvação neste presente mundo. Já que a criança não vai desfrutar da salvação
nesta vida presente, ela não necessita de fé.
6. Diferença Sobre a Ordo Salutis
Na teologia luterana a ordo salutis, geralmente falando, começa
com a obra da justificação. "Então, quando a pessoa é justificada, ela é
também renovada e santificada pelo Espírito Santo, da qual (justificação) a
renovação e a santificação, e os frutos das boas obras provém."(48) Lutero também
segue uma ordo salutis parecida na
explicação do artigo terceiro de seus catecismos. Pieper diz que nessa
explicação e "em todas as passagens na qual ele (Lutero) chama a doutrina
da justificação, como a doutrina central, e ao redor da qual todas as outras
doutrinas estão agrupadas, seja como antecedens
ou consequens."(49) A regeneração, ou
a renovação é algo posterior à fé justificante. A Apologia da Confissão de Augsburgo, preparada por Melanchton diz
que "quando nós cremos, o Espírito Santo desperta os nossos corações
através da palavra de Cristo."(50) Portanto, o despertamento
(que é equivalente à regeneração segundo o entendimento da teologia reformada)
acontece como um resultado da fé, na tradição luterana. Isto está claro em
outros lugares: "Visto que a fé
traz o Espírito Santo e produz a nova
vida em nossos corações, ela deve também produzir os impulsos espirituais no coração ... Após termos sido justificados e regenerados pela fé,
portanto, começamos a temer e amar a Deus..."(51) Em outro lugar ainda diz: "A fé
somente aceita o perdão dos pecados, justifica e regenera."(52) E ainda: "A fé é o verdadeiro conhecimento de Cristo,
ela usa suas bênçãos e ela regenera
nossos corações."(53)
Portanto, na teologia luterana, a
fé é o que causa a regeneração. O novo nascimento também é produto da fé
justificadora. Os símbolos luteranos dizem que "nós não podemos guardar a
lei a menos que tenhamos sido nascidos de
novo pela fé em Cristo."(54) É verdade que é também dito nas Confissões que a regeneração é obra do Espírito, mas tem que ser
entendido que a regeneração do Espírito é mediante a fé. É uma ordo salutis diferente da esposada pela
fé reformada.
Na fé reformada a ordo salutis é totalmente diferente. A
primeira coisa a ser considerada nela é a regeneração (que normalmente nos
adultos acontece concomitantemente com a pregação da Palavra), que é a
implantação do princípio de vida, e então, a pessoa nasce de novo, sendo
habilitada a crer em Cristo, a fim de ser justificada subjetivamente. A fé é o
resultado do ato regenerador de Deus, não a causa que leva o Espírito Santo a
operar a regeneração. Por esta razão, na fé reformada, os pequeninos não são
batizados a fim de serem justificados. Eles podem ser objeto da obra
regeneradora do Espírito Santo antes de terem a fé justificadora. Sendo objeto
da obra regeneradora de Deus, quando ouvem a Palavra e a entendem em alguma
medida, crêem no seu Redentor. A teologia reformada segue geralmente uma forma
mais desenvolvida da ordo salutis,
incipiente em Romanos 8.30.
Algumas Conclusões
Nas partes em que diferem:
1. As diferenças entre ambas as
tradições não são unicamente as de interpretação de textos relacionados à
justificação, mas estão, sobretudo, nas suas pressuposições teológicas.
2. Ambas as tradições possuem uma
estrutura teológica bastante consistente, se as entendemos à luz de sua própria
hermenêutica e pressuposições.
Nas partes em que concordam:
3. Ambas as tradições, na
formulação de sua doutrina sobre a justificação, lutaram contra o mesmo
inimigo, a teologia da Igreja de Roma. O nascedouro dessa doutrina tem a mesma
raíz em ambas as tradições.
4. Ambas as tradições sempre
concordam nos pontos onde o inimigo comum foi a a teologia da Igreja de Roma
com respeito à doutrina da justificação.
English Abstract
This article is a
comparison of the Lutheran and Reformed teaching on Justification by faith. Dr.
Campos compares what these two great traditions within Protestantism believe,
showing their similarities and differences on this issue.
Both traditions agree
as to the importance of the doctrine, its forensic aspect, the fact that it is
by faith alone, that it is imputed and as the role of faith in justification.
They disagree however as to the extension of Justification, the relation
between objective and subjective Justification, the basis on which God
justifies and rejects, the relation between Justification by faith and other
aspects of soteriology, the origin and the elements of justifying faith, and
the order of salvation.
Dr. Campos concludes
that the differences are due mainly to the theological pressupositions of both
traditions as they interpret the relevant biblical passages. He also points out
that they agree whenever they face their common enemy, Roman Catholic teaching
on Justification.
__________________________
Notas
1 No Book of Concord (Philadelphia: Fortress Press, 1959), onde estão
todos os principais documentos confessionais luteranos, o artigo sobre a
justificação é o mais extenso de todos, especialmente na "Apologia da
Confissão de Augsburgo".
2 "Apology of Augsburg Confession",
Art. IV,2 (Book of Concord, p.107,2).
3 "Formula of Concord, Solid
Declaration", Art.III, 6 (Book of
Concord, p. 540,6).
4 John Calvin, Institutes of Christian Religion, vol. 1 (Philadelphia: The
Westminster Press, 1960, editado por John T. McNeill), III, 11,1.
5 No período da controvérsia
sobre a justificação entre protestantes e católico, a Confutação Romana dizia:
"É inteiramente contrário à Santa Escritura negar que nossas obras são
meritórias...Contudo, todos os católicos confessam que, de si mesmas, nossas
obras não têm nenhum mérito mas que a Graça de Deus os torna dignos da vida
eterna (Pt I, Art. IV). Esse documento de Roma diz ainda que a atribuição dos
Príncipes luteranos "da justificação à fé somente é diametralmente oposta
à verdade do Evangelho, pelo qual as obras não são excluídas..." (citado
no Book of Concord, 107, nota de
rodapé 8). O Cânone IX do Concílio de Trento, tratando da justificação diz:
"Se alguém diz que pela fé somente
o ímpio é justificado, de modo que queira dizer que nada mais é requerido para cooperar a fim de obter a graça da
justificação, e que não necessário de modo algum, que ele esteja preparado e
disposto por um movimento de sua própria
vontade: que seja anátema." (vide
Philip Schaff, Creeds of Christendom,
vol. 2, [Grand Rapids: Baker, reimpressão 1990] 112 - itálicos acrescentados).
6 H.J. Schroeder, Canons and Decrees of the Council of Trent, (London: Herder Book
Co., 1941), 43.
7 Esta expressão de Melanchton
nasceu de uma tradução que Lutero fez de Rm 3.28, onde ele diz que "o
homem é justificado pela fé somente,
independentemente das obras da lei", sendo que o texto grego não inclui
literalmente a palavra ‘somente’.
8 Art. IV, 73 (Book of Concord, 117,73), itálico acrescido.
9 Joel R. Beeke, em Justification by Faith Alone, editado por Don Kistler, (Soli Deo
Gloria Publications, 1995), 81.
10 Stanford Reid, "Justification by Faith
According to John Calvin",
Westminster Theological Journal, 1990, 296. (Conferir Institutes III, iii, 1).
11 Reid, "Justification by Faith...",
296.
12 Literalmente, Calvino diz:
"Eles (os Sofistas) se atrevem a negar que o homem é justificado pela fé
porque ela (a doutrina) ocorre muito frequentemente na Escritura. Mas visto que
a palavra "somente" não é expressa em lugar algum, eles não permitem
que esta adição seja feita" (Institutes,
III, 11, 19).
13 Ibid.
14 A palavra "forense"
usada em teologia tem a ver com os assuntos que dizem respeito aos
procedimentos do sistema judicial, isto é, os termos legais frequentemente
encontrados na Escritura. O assunto da justificação envolve uma matéria legal
de grande importância na Bíblia, porque trata do julgamento da situação de uma
pessoa em razão dos procedimentos de um Substituto, que age em seu lugar.
15 H.J. Schroeder, Canons and Decrees of the Council of Trent, (London: Herder Book Co.,
1941), 33.
16 Ibid.,
42.
17 Alister McGrath, "The Article by which
the Church Stands or Falls", Evangelical
Quarterly, 58, 1986, 221.
18 Art. IV, 252 (Book of Concord, 143, 252).
19 Reid, "Justification by faith...",
294 (itálico acrescido).
20 Institutes,
III, 11, 2.
21 Reid, "Justification by Faith...",
294.
22 Paul Althaus, The Theology of Martin Luther, 227-228.
23 Calvin, Institutes,
III, 11, 23.
24 Ibid., III, 11, 23.
25 A frase fides caritate formata (fé informada pelo amor), é muito comum
dentro do catolicismo romano. Esta fé é animada e instruída pelo amor, e é,
portanto, ativa na produção de boas obras. Segundo os doutores medievais, fides caritate formata poderia existir
somente quando o crente estava num estado de graça, visto que tal fides deve descansar sobre um hábito ou
disposição de amor criado sobrenaturalmente na alma pela graça. Esta concepção
de fé é negada pelos reformadores, porque implica na necessidade de obras para
a justificação, de modo que ela descansa sobre um conceito de graça criada,
implantada ou infusa no homem (Richard Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms,Baker, 1985),
116.
26 Apology
of the Augsburg Confession, art. IV, Justification (Book of Concord, p. 114.48-49).
27 Ibid.,
132.181-182.
28 Calvin, Institutes,
III, 11,17.
29 Ibid.,
III, 11,7.
30 Ibid.,
III, 11, 7.
31 E. W. A. Koehler, "Objective
Justification", Concordia
Theological Monthly, XVI, April 1945, 222.
32 Theodore Engelder,
"Objective Justificação", Concordia
Theological Monthly, 4, 1933, 508. Esta crítica de Lenski evidencia, ao
menos, que nem todos os luteranos crêem absolutamente na justificação objetiva
do modo como crêem especialmente os teólogos ligados ao Sínodo Missouri.
33 McGrath, "The Article by Which the
Church Stands or Falls", 222.
34 Ibid.,
224.
35 Koehler, "Objective
Justification", 223.
36 Ibid., 224.
37 Ibid., 224.
38 Por justificação objetiva entendemos aquela que é feita extra nos (fora de nós), na história do
mundo, objetivamente, na cruz do calvário, por Cristo Jesus; por justificação subjetiva, entendemos aquela que é feita
intra nós (dentro de nós), na nossa
história pessoal, que é apropriada pela fé.
39 Koehler, "Objective
Justification", 228.
40 Ibid.,
226.
41 Ibid.,
227.
42 Ibid.,
224.
43 Ibid.,
226.
44 Nas Confissões luteranas não
há muita precisão quanto ao sentido de algumas expressões teológicas. Às vezes,
nelas, a justificação é sinônimo de regeneração em alguns lugares, e em outros
não. A Apologia da Confissão de Augsburgo, por exemplo, diz: "Portanto,
nós somos justificados pela fé somente, sendo a justificação entendida como
tornar um homem injusto num justo, ou efetuando a sua regeneração"
(Art.IV, 78 - Book of Concord, p.
117.78, cf. 123.117; 124.125). Por essa razão, vários anos mais tarde, por
volta de 1580, na Fórmula de Concórdia, seus signatários reconheceram:
"Algumas vezes, como na Apologia, as palavras regeneratio (renascimento) e vivificatio
(tornar vivo) são usadas no lugar de justificação, e então elas significaram a
mesma coisa, mesmo embora de outro modo, estes termos referem-se à renovação do
homem e distinguem-na da justificação pela fé" (Formula of Concord,
Epitome, Art. III, 8 - Book of Concord, 474.8).
45 Jacob Preus III, "Project proposal: Biblical Metaphors for
Justification", 1 (trabalho não publicado, apresentado em classe no
Concordia Theological Seminary, Saint Louis, Mo.).
46 Em alguns círculos luteranos
creu-se na absolvição como um terceiro sacramento. E a Apologia da Confissão de
Augsburgo afirma que "a fé é concebida
e confirmada através da absolvição e através do ouvir do evangelho" (Art.
XII - Penitência, Book of Concord
187.42- itálico acrescido) e ainda: "o sacramento foi instituído para
mover o coração a crer através do que ele apresenta aos olhos. Porque o
Espírito Santo opera através da Palavra e dos sacramentos" (Apology, art.
XXIV, 70). Lutero, no Small Catechism,
IV, resposta à pergunta 2 diz: "Quais são os benefícios que o batismo
concede? Ele efetua perdão de pecados, liberta da morte e do diabo, e concede
salvação eterna a todos os que crêem, como a Palavra e a promessa de Deus
declaram" (Book of Concord,
348.5-6); ver também Book of Concord
211.5 e 262.70.
47 Francis Pieper, Christian Dogmatics, vol. II (Saint Louis: Concordia Publishing
House), 436-37.
48 Ibid., 419.
49 Ibid., 420. A doutrina da justificação é absolutamente central na
ordo salutis, embora algumas doutrinas venham logicamente antes, como a eleição
por exemplo, e outras depois, como a regeneração, santificação, etc. Essa é a
idéia de antecedens e consequens.
50 Apology
of the Augsburg Confession, Art.XII, 44 (Book of Concord, 187.44), (itálico acrescentado).
51 Ibid.,
Art.IV, 125 (Book of Concord,
124.125), (itálico acrescentado).
52 Ibid.,
292 (Book of Concord, 152.292),
(itálico acrescido).
53 Ibid.,
46 (Book of Concord, 113.46),
(itálico acrescido).
54 Ibid., 256 (Book of Concord,
144.256), (itálico acrescido).
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