A Lei do Espírito da Vida
"Portanto, não existe mais condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus. A
Lei do Espírito da vida em
Cristo Jesus te libertou da lei do pecado e da morte. De fato
-- coisa impossível à Lei, porque enfraquecida pela carne -- Deus, enviando o
seu próprio Filho numa carne semelhante à do pecado e em vista do pecado,
condenou o pecado na carne, a fim de que o preceito da Lei se cumprisse em nós
que não vivemos segundo a carne, mas segundo o espírito. Com efeito, os que
vivem segundo a carne desejam as coisas da carne, e os que vivem segundo o
espírito, as coisas que são do espírito".
Romanos 8:1-5
ÍNDICE ANALÍTICO
Capítulo 1 - A Liberdade Cristã
Capítulo 2 - Não Há Nenhuma Condenação
Capítulo 3 - Paulo, Servo de Jesus
Capítulo 4 - O Coração das Escrituras
Capítulo 5 - Pela Graça, Dom de Deus
CAPÍTULO 1: A LIBERDADE CRISTÃ
Tecnicamente, temos aqui dois blocos de textos: um maior, que é o
capítulo 8 inteiro, cuja temática é a da vida cristã sob a lei do Espírito; e
um bloco menor, que vai do versículo 1 ao 11, e que trata especificamente da
vida emancipada por esta lei do Espírito.
O texto em análise está dentro desses dois blocos, que nos dão a linha de
pensamento do autor: uma seqüência de análises sobre a vida emancipada
(vs.1-11); a vida exaltada (12-17); a vida esperançosa (18-30); e a vida
exultante (31-39). Dessa maneira, "neste capítulo, o apóstolo traça o
curso da vida cristã, na qual a graça triunfa sobre a lei, e os crentes
experimentam livramento do pecado".1
A epístola de Paulo, como um todo, enfoca três blocos temáticos: do capítulo 1
ao 8, fala da justificação pela fé; do capítulo 9 ao 11, discute a exclusão
temporal dos judeus e a inclusão dos gentios ao povo de Deus; e do capítulo 12
ao 16, exortações práticas.
Ao analisar a justificação, mostra que a salvação do homem repousa
fundamentalmente sobre a fé, proveniente da graça de Cristo e não na lei de
Moisés. Essa misericórdia de Deus não depende da lei, porque o homem, em sua
natureza pecaminosa, não tem como responder efetivamente às exigências da lei,
que expressa a santidade de Deus. Assim, a graça provem de Cristo, que no seu
amor e sacrifício, perdoa os pecados dos homens. A liberdade da vida cristã,
liberdade diante da lei, não depende do próprio homem, nem do que ele possa
fazer, mas daquilo que Cristo já fez por ele.
Há uma outra epístola de Paulo, que também trata dessa relação lei versus
graça, que é a carta escrita aos Gálatas, onde o capítulo correlato a Romanos 8
é Gálatas 5. Ali, o apóstolo escreve sobre a justificação pela fé, falando da
liberdade cristã.
Sem dúvida, a análise de Paulo parte de elementos vetero-testamentários, que
descreve no capítulo 4 de Romanos, ao explicar que a promessa feita a Abraão
teve por base a fé, já que ainda era incircunciso e não tinha a lei, enquanto
formalização apresentada a Moisés.
A passagem analisada encaixa-se perfeitamente não somente na linha geral de
pensamento do autor, mas dentro do ensinamento bíblico como um todo.
CAPÍTULO 2: NÃO HÁ NENHUMA CONDENAÇÃO
O texto que estamos analisando está inserido numa epístola, forma literária
específica, amplamente utilizada pelos apóstolos e pela igreja primitiva. No
capítulo que segue, analisaremos com mais detalhes esta forma literária,
inserindo-a no contexto histórico de gregos e romanos durante o primeiro século
da era cristã.
A epístola aos Romanos é uma carta de difícil compreensão. Isto porque Paulo
tinha o costume de escrever intercalando um pensamento central com várias
digressões, tornando complexa a conexão das idéias expostas. Outra dificuldade
é o próprio tema, já que o apóstolo estava tratando de um assunto eletrizante
para a época, mas hoje aceito pela totalidade cristã: os gentios podem ou não
tornarem-se cristãos sem serem prosélitos dos judeus?
Em Romanos 8:1-5, encontramos cinco verbos fundamentais para a compreensão do
que o autor está expondo. São eles:
(1) o oposto ao estado de escravidão, receber alforria, não estar sujeito a uma
obrigação, livrar, libertar. "Te libertou", variantes: "me
libertou", "nos libertou". É um aoristo passado, isto significa
que a ação foi plenamente realizada, mas segue vigente no presente.
(2) penalidade imposta por condenação judicial, servidão penal, condenar.
Também é um aoristo passado.
(3) encho, aterro, encho a ponto de transbordar, dou plenitude, cumpro.2
(4) ando, vivo, dirijo minha vida.
(5) penso, ter a mente controlada por, ter como hábito de pensamento,
inclinar-se.
Desses verbos, dois são antônimos (receber alforria versus condenado
judicialmente) e levam à oposição que o autor quer mostrar entre a lei do
Espírito da vida e a lei do pecado e da morte. Assim, ao regime do pecado,
Paulo opõe o novo regime do Espírito (cf. 3:27+), e diz que em nós transborda o
espírito da lei. Esse preceito da lei (que pode ser traduzido como "o que
é justo/o que é bom na lei"), cujo cumprimento só é possível pela união
com Cristo através da fé, tem sua tradução no mandamento do amor (cf. 13:10, Gl
5:14 e Mt 22:40). Isto porque, não vivemos segundo a carne, mas andamos no
Espírito, ou seja, temos a mente controlada pelo Espírito.
É interessante notar que a palavra lei aparece 70 vezes no texto de Romanos e
sempre tem uma das três conotações: (a) revelação de Deus e de sua santidade,
(b) foi dada para esclarecer o que é pecado, e (c) existe para orientar a vida
daquele que crê.
Da mesma maneira, a palavra carne é sempre utilizada em Romanos com um dos
quatro sentidos: (a) natureza humana fraca (6:19), (b) natureza velha do
cristão (7:18), (c) natureza humana de Cristo (8:3), (d) e natureza humana não
regenerada (8:8).
O capítulo 8 de Romanos nos apresenta a operação do Espírito Santo, entendida
nos versículos 4, 5, 6 e 10, como aquele que comunica a vida. No versículo 2,
como aquele que dá liberdade. E no versículo 26, como aquele que intercede
pelos crentes junto ao Pai.
É interessante notar que o texto original de Romanos 8, em grego, começa com
dois advérbios intercalados por uma partícula ilativa, que poderíamos traduzir
assim: "Atualmente, por isso, nada em absoluto..." pode condenar
aqueles que estão em
Cristo Jesus
CAPÍTULO 3: PAULO, SERVO DE JESUS
No mundo de gregos e romanos, as cartas particulares tinham em média,
cerca de noventa palavras. Já os textos literários, como os de Sêneca, por
exemplo, tinham em média duzentas palavras3. As epístolas de Paulo, no entanto,
eram bem maiores. A menor delas, dirigida a Filemon, tem 335 palavras, e a
maior, enviada a igreja de Roma, 7.101 palavras. Assim, podemos dizer que o
apóstolo Paulo criou um novo gênero literário, a epístola, maior que as cartas
e os textos literários comuns à época, de conteúdo teológico explícito, e
dirigida a comunidade específica.
Quase sempre, as cartas eram ditadas a um escriba profissional, chamado
amanuense, que usava uma espécie de taquigrafia durante o ditado rápido.
Depois, o amanuense burilava o texto, e o autor, finalmente, editava a carta.
Na carta de Paulo aos Romanos seu amanuense foi Tércio (Rm. 16:22).
Quando escreveu sua epístola aos Romanos, Paulo era um cristão maduro. Tinha
mais de cinqüenta anos e 25 anos de conversão. Estava ansioso para ministrar
nessa igreja, que já era conhecida no mundo cristão (1:8), e por isso escreveu
a carta que deveria preparar sua futura visita (15:14-17). Foi escrita em
Corinto, possivelmente no ano 58 d.C., quando Paulo estava levantando um coleta
para os irmãos da Palestina. Partiu, então, para Jerusalém para entregar o
dinheiro. Lá é preso, e acabará sendo levado à Roma, mas como prisioneiro.
CAPÍTULO 4: O CORAÇÃO DAS ESCRITURAS
Para muitos teólogos, que vão de Orígenes a Barth, a carta do apóstolo
Paulo aos Romanos é o ponto alto das Escrituras. Ela sedimentou a fé de
Agostinho e a Reforma de Lutero. Calvino, por exemplo, considerava que quem
entendesse Romanos estaria com a porta aberta para a compreensão de toda a
Bíblia. E Tyndale também diz algo parecido, ao afirmar que Romanos é "a
parte principal e mais excelente do Novo Testamento, e o mais puro Evangelion,
isto é, as boas novas a que chamamos Evangelho, e também uma luz e um caminho
para penetrar em toda a Escritura"4.
Em termos de doutrina, Paulo em Romanos mostra que a Lei de Moisés, em si boa e
santa (7:12), fez o homem conhecer a vontade de Deus, mas não lhe transmitiu a
força para cumpri-la. Deu-lhe consciência de seu pecado e da necessidade que
tem de socorro (3:20, 7:7-13). Esse socorro, inteiramente gratuito, chegou
através de Jesus. E a humanidade, morta no pecado, é recriada em Cristo
(5:12-21), podendo agora viver em liberdade e justiça, segundo a vontade de
Deus (8:1-4).
Romanos tem como tema central a revelação da justiça de Deus e a universalidade
da obra de Cristo. E, se Romanos é o centro nevrálgico das Escrituras, o
capítulo 8 é o coração de Romanos.
CAPÍTULO 5: PELA GRAÇA, DOM DE DEUS
O capítulo 8 de Romanos mostra que a lei foi, através do sacrifício de
Cristo, dominada pela graça. Como vimos neste estudo, a epístola de Romanos é
fundamental no processo vivenciado pela Reforma. A igreja que rompe com o
catolicismo romano, quer a reformada de Lutero, Calvino e Zwinglio, quer a
revolucionária de anabatistas e inspiracionistas, entende que o apóstolo Paulo
traça na epístola aos Romanos o curso da vida cristã, mostrando que através da
graça há vitória plena sobre o pecado.
Paulo queria deixar claro que as propostas judaizantes não tinham razão de ser,
pois a obediência à lei nunca logrou êxito. Através de Cristo, unido a Cristo
pelo Espírito, aquele que crê está absolvido de seus pecados e pode iniciar uma
vida de liberdade, dentro de uma nova lei, a lei do Espírito da vida em Jesus Cristo.
O que os cristãos do século XVI entendiam, contextualizando os
ensinamentos de Paulo, é de não havia mais necessidades de obras e penitências
para se alcançar a salvação. O que a Igreja Católica Romana proclamava, tanto
no que concerne às indulgências, como às obrigações de caridade, estava fora da
doutrina cristã pregada por Paulo nas epístolas aos Romanos e Gálatas, assim
como no restante das Escrituras.
Ainda hoje Romanos apresenta ensinamentos fundamentais para a igreja de Cristo:
a pecaminosidade do homem (1:18-3:30); sua desesperada luta interior (7:14-25),
a gratuidade da salvação (3:21-24), a eficácia da morte e ressurreição de
Cristo (4:23-25, 5:6-11, 6:3-11), a justificação pela fé (5:1-2) e nossa adoção
como filhos (8:14-17).
É a partir desta hermenêutica, delineada nos vários passos apresentados neste
trabalho, que o trecho de Romanos 8:1-5 deve ser interpretado. Teremos, então,
uma melhor compreensão daquilo que o apóstolo Paulo chama de "a lei do
Espírito da vida em Jesus
Cristo " e de sua importância no caminhar do cristão.
Pr. Jorge Pinheiro
BIBLIOGRAFIA
Recomendada
Dobson,
John H., Aprenda o Grego do Novo Testamento, CPAD, Rio de Janeiro, 1994.
Gundry, Robert H., Panorama do Novo Testamento, Edições Vida Nova, São Paulo,
1991.
Halley, H. H., Manual Bíblico, Edições Vida Nova, São Paulo, 1993.
Rega, Lourenço Stelio, Noções do Grego Bíblico, Edições Vida Nova, São Paulo,
1993.
Taylor, W.C., Dicionário do Novo Testamento Grego, JUERP, Rio de Janeiro, 1991.
The Greek New Testament, United Bible Societies, USA, 1994.
Virkler, Henry A., Hermenêutica - Princípios e Processos de Interpretação
Bíblica, Vida, São Paulo, 1994.
1 Davidson,
F., "O Novo Comentário da Bíblia", Edições Vida Nova, São Paulo,
1994, pág. 1167.
2 "Cumprir, isto é, fazer que a vontade de Deus (revelada na Lei) seja
obedecida como deve ser, e as promessas de Deus (dadas pelos profetas) recebam
seu cumprimento". Taylor, W.C., Dicionário do Novo Testamento Grego,
JUERP, São Paulo, 1991, pág. 177, verbete plhrow, in citação de Thayer.
3 "A usual folha de papiro media cerca de 34 cm x 28 cm (...), podendo acomodar
entre 150 e 250 palavras (...), e a maioria das cartas antigas não ocupava mais
que uma página de papiro". Gundry, Robert H., Panorama do Novo Testamento,
pág. 287. Ed. Vida Nova - São Paulo.
4 Packer, James I. in O Conhecimento de Deus, pág. 235. Editora Mundo Cristão,
São Paulo.
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