A Magnanimidade de
Davi
Depois do atroz morticínio dos sacerdotes do
Senhor, ordenado por Saul, "escapou um dos filhos de Aimeleque, filho de
Aitube, cujo nome era Abiatar, o qual fugiu atrás de Davi. E Abiatar anunciou a
Davi que Saul tinha matado os sacerdotes do Senhor. Então Davi disse a Abiatar:
Bem sabia eu naquele dia que, estando ali Doegue, o idumeu, não deixaria de o
denunciar a Saul. Eu dei ocasião contra todas as almas da casa de teu pai. Fica
comigo, não temas, porque quem procurar a minha morte, também procurará a tua,
pois estarás salvo comigo". O Sam; 22:20-23.
Ainda perseguido pelo rei, Davi não encontrou lugar de descanso ou segurança.
Em Queila, seu bravo grupo salvou a cidade de ser tomada pelos filisteus; mas
não estavam livres de perigo, mesmo entre o povo que haviam livrado. De Queila
dirigiram-se ao deserto de Zife.
Naquela ocasião, em que havia tão poucos pontos claros no caminho de Davi, ele
se regozijou ao receber a visita inesperada de Jônatas, que soubera do lugar de
seu refúgio. Preciosos foram os momentos que estes dois amigos passaram na
companhia um do outro. Relataram suas variadas experiências, e Jônatas
fortaleceu o coração de Davi, dizendo: "Não temas, que não te achará a mão
de Saul, meu pai; porém tu reinarás sobre Israel, e eu serei contigo o segundo;
o que também Saul, meu pai, bem sabe." Conversando eles acerca do trato
maravilhoso de Deus para com Davi, o aflito fugitivo ficou grandemente
encorajado. "E ambos fizeram aliança perante o Senhor; Davi ficou no
bosque, e Jônatas voltou para a sua casa." I Sam. 23:17 e 18.
Depois da visita de Jônatas, Davi animou a sua alma com cânticos de louvor,
acompanhando a sua voz com a harpa, ao entoar:
"No Senhor confio;
Como dizeis, pois, à minha alma:
Fugi para a vossa montanha como pássaro?
Porque eis que os ímpios armam o arco,
Põem as frechas na corda,
Para com elas atirarem, a ocultas, aos retos de coração.
Na verdade que já os fundamentos se transtornam:
Que pode fazer o justo?
O Senhor está no Seu santo templo,
O trono do Senhor está nos Céus;
Os Seus olhos estão atentos,
E as Suas pálpebras provam os filhos dos homens.
O Senhor prova o justo;
Mas a Sua alma aborrece o ímpio e o que ama a violência." Sal. 11:1-5.
Os zifeus, para cujas regiões ermas Davi fora de Queila, enviaram uma
comunicação a Saul, em Gibeá, de que sabiam onde Davi se encontrava escondido,
e de que guiariam o rei ao seu retiro. Davi, porém, avisado das intenções
deles, mudou sua posição, procurando refúgio nas montanhas que ficavam entre
Maom e o Mar Morto.
Foi de novo enviada comunicação a Saul: "Eis que Davi está no deserto de
En-Gedi. Então tomou Saul três mil homens, escolhidos entre todo o Israel, e
foi à busca de Davi e de seus homens, até aos cumes das penhas das cabras
monteses." Davi tinha apenas seiscentos homens em sua companhia, ao passo
que Saul avançava contra ele com um exército de três mil. Em uma caverna
isolada o filho de Jessé e seus homens aguardavam a direção de Deus quanto ao
que deveria fazer-se. Estando Saul fazendo a ascensão das montanhas, desviou-se
para um lado, e entrou, sozinho, na mesma caverna em que Davi e seu grupo
estavam escondidos. Quando os homens de Davi viram isto, insistiram com seu
chefe para que matasse Saul. O fato de que o rei estava agora em seu poder, era
por eles interpretado como prova certa de que Deus mesmo entregara o inimigo em
suas mãos, para que pudessem destruí-lo. Davi foi tentado a assumir esta
opinião a tal respeito; mas a voz da consciência falou-lhe, dizendo: "Não
toques no ungido do Senhor."
Os homens de Davi ainda não estavam dispostos a deixar Saul em paz, e lembraram
ao seu comandante as palavras de Deus: "Eis que te dou o teu inimigo nas
tuas mãos, e far-lhe-ás como te parecer bem aos teus olhos. E levantou-se Davi,
e mansamente cortou a orla do manto de Saul." I Sam. 24:2-4 e 6. Mas sua
consciência o acusou depois, porque mesmo com isto deformara a veste do rei.
Saul levantou-se e saiu da caverna para continuar com suas pesquisas, quando
uma voz atingiu seus ouvidos surpresos, dizendo: "Rei, meu senhor!"
Voltou-se para ver quem se dirigia a ele, e, eis que era o filho de Jessé, o
homem a quem havia tanto tempo desejava ter em seu poder, para que o pudesse
matar. Davi inclinou-se ante o rei, reconhecendo-o como seu senhor. Então se
dirigiu a Saul nestes termos: "Por que dás tu ouvidos às palavras dos
homens que dizem: Eis que Davi procura o teu mal? Eis que este dia os teus
olhos viram, que o Senhor hoje te pôs em minhas mãos nesta caverna, e alguns
disseram que te matasse; porém a minha mão te poupou; porque disse: Não
estenderei a minha mão contra o meu senhor, pois é o ungido do Senhor. Olha,
pois, meu pai, vê aqui a orla do teu manto na minha mão; porque, cortando-te eu
a orla do manto, te não matei. Adverte, pois, e vê que não há na minha mão nem
mal nem prevaricação nenhuma, e não pequei contra ti; porém tu andas à caça da
minha vida, para ma tirares." I Sam. 24:8-11.
Quando Saul ouviu as palavras de Davi, ficou humilhado, e não pôde senão
admitir a veracidade das mesmas. Seus sentimentos foram profundamente abalados,
ao compenetrar-se de quão completamente estivera em poder do homem cuja vida
procurava. Davi estava em pé diante dele, cônscio de sua inocência. Com um
espírito abrandado, Saul exclamou: "É esta a tua voz, meu filho Davi?
Então Saul alçou a sua voz e chorou." Declarou agora a Davi: "Mais
justo és do que eu, pois tu me recompensaste com bem, e eu te recompensei com
mal. … Por que, quem há que, encontrando o seu inimigo, o deixaria ir por bom
caminho? O Senhor pois te pague com bem, pelo que hoje me fizeste. Agora, pois,
eis que bem sei que certamente hás de reinar, e que o reino de Israel há de ser
firme na tua mão." I Sam. 24:16-20. E Davi fez um concerto com Saul, para
que quando isto tivesse lugar ele considerasse favoravelmente a casa de Saul, e
não suprimisse o seu nome.
Sabedor que era da conduta passada de Saul, Davi não podia depositar confiança
nas afirmações do rei, tampouco esperar que sua condição penitente demorasse
muito. Assim, voltando Saul para sua casa, permaneceu Davi nas fortalezas das
montanhas.
A inimizade que é alimentada para com os servos de Deus por aqueles que se
renderam ao poder de Satanás, modifica-se por vezes em um sentimento de
reconciliação e favor; mas a mudança nem sempre se mostra duradoura. Depois que
homens mal-intencionados se empenharam em fazer e dizer coisas ruins contra os
servos do Senhor, a convicção de que estiveram em erro apodera-se algumas vezes
profundamente de seu espírito. O Espírito do Senhor trabalha com eles, humilham
seus corações diante de Deus e diante daqueles cuja influência procuram
destruir, e podem modificar sua conduta em relação aos mesmos. Mas, abrindo
novamente a porta às sugestões do maligno, revivem as velhas dúvidas,
desperta-se a velha inimizade, e eles voltam a empenhar-se na mesma obra de que
se arrependeram e que por algum tempo abandonaram. Novamente falam mal,
acusando e condenando da maneira mais acrimoniosa os mesmos a quem fizeram a
mais humilde confissão. Satanás pode usar tais almas com muito maior poder,
depois que tal conduta haja sido seguida, do que o poderia antes, pois que
pecaram contra uma luz maior.
"E faleceu Samuel, e todo o Israel se ajuntou, e o prantearam, e o
sepultaram na sua casa, em Ramá." I Sam. 25:1. A morte de Samuel foi
considerada uma perda irreparável pela nação de Israel. Um grande e bom profeta
e juiz eminente sucumbira; e a dor do povo foi profunda e sentida. Desde sua
mocidade Samuel andara diante de Israel na integridade de seu coração; embora
Saul tivesse sido o rei reconhecido, Samuel exercera uma influência mais
poderosa do que ele, porque o registro de sua vida era de fidelidade,
obediência e devoção. Lemos que ele julgou Israel todos os dias de sua vida.
Contrastando o povo a conduta de Saul com a de Samuel, viam o erro que haviam
cometido, desejando um rei para que não fossem diferentes das nações em redor
deles. Muitos olhavam alarmados para as condições da sociedade, em que
rapidamente se estendia o fermento da irreligião e da impiedade. O exemplo de
seu governante estava exercendo uma dilatada influência, e bem poderia lamentar
Israel que Samuel, o profeta do Senhor, fosse morto.
A nação havia perdido o fundador e diretor de suas escolas sagradas; mas isso
não era tudo. Tinha perdido aquele a quem o povo se acostumara a ir com suas
grandes dificuldades – perdido aquele que constantemente intercedera junto a
Deus em prol dos maiores interesses de seu povo. A intercessão de Samuel
proporcionara um sentimento de segurança; pois "a oração feita por um
justo pode muito em seus efeitos". Tia. 5:16. O povo sentia agora que Deus
os estava abandonando. O rei parecia ser pouco menos que um louco. A justiça
estava pervertida, e a ordem mudada em confusão.
Foi quando a nação era torturada por conflito interno, quando o conselho calmo
e inspirado no temor de Deus, dado por Samuel, se mostrava mais necessário, foi
então que Deus deu repouso ao seu idoso servo. Amargas foram as reflexões do
povo, ao olharem para o seu silencioso lugar de descanso, e lembrarem-se de sua
loucura rejeitando-o como seu governador; pois que ele tivera tão íntima
ligação com o Céu que parecia ligar todo o Israel ao trono de Jeová. Fora
Samuel que os ensinara a amar e a obedecer a Deus; mas, agora que ele estava
morto, o povo sentia achar-se abandonado nas mãos de um rei que se unira a
Satanás, e que de Deus e do Céu divorciaria o povo.
Davi não pôde estar presente ao sepultamento de Samuel; mas chorou-o tão
sentida e ternamente como um filho fiel o poderia fazer por um pai dedicado.
Sabia que a morte de Samuel rompera um outro laço que restringia as ações de
Saul, e sentiu-se menos livre de perigo do que quando o profeta vivia. Enquanto
a atenção de Saul estava ocupada em lamentação pela morte de Samuel, Davi
aproveitou o ensejo para procurar um lugar de maior segurança; assim, fugiu
para o deserto de Parã. Foi ali que compôs os salmos cento e vinte e cento e
vinte e um. Naquelas desoladas regiões incultas, compenetrado de que o profeta
era morto, e que o rei era seu inimigo, cantou:
"O meu socorro vem do Senhor,
Que fez o céu e a Terra.
Não deixará vacilar o teu pé;
Aquele que te guarda não tosquenejará.
Eis que não tosquenejará nem dormirá
O guarda de Israel. …
O Senhor te guardará de todo o mal;
Ele guardará a tua alma.
O Senhor guardará a tua entrada e a tua saída,
Desde agora e para sempre." Sal. 121:2-8.
Enquanto Davi e seus homens se encontravam no deserto de Parã, protegeram
contra as depredações dos saqueadores os rebanhos e gado de um homem rico
chamado Nabal, que tinha vastas posses naquela região. Nabal era descendente de
Calebe, mas seu caráter era intratável e mesquinho.
Era o tempo da tosquia das ovelhas, a ocasião da hospitalidade.
Davi e seus homens estavam em grande necessidade de provisões; e, de acordo com
o costume daqueles tempos, o filho de Jessé enviou dez moços a Nabal,
ordenando-lhes que o saudassem em nome de seu senhor; e acrescentou:
"Assim direis àquele próspero: Paz tenhas, e que a tua casa tenha paz, e
tudo o que tens tenha paz! Agora, pois, tenho ouvido que tens tosquiadores. Ora
os pastores que tens estiveram conosco; agravo nenhum lhes fizemos, nem coisa
alguma lhes faltou todos os dias que estiveram no Carmelo. Pergunta-o aos teus
mancebos, e eles to dirão; estes mancebos pois achem graça aos teus olhos, porque
viemos em bom dia; dá pois a teus servos e a Davi, teu filho, o que achares à
mão." I Sam. 25:6-8.
Davi e seus homens tinham sido como uma muralha protetora aos pastores e
rebanhos de Nabal; e agora pedia-se àquele homem rico que fornecesse de sua
abundância algum recurso à necessidade daqueles que lhe haviam prestado tão
valioso serviço. Davi e seus homens poderiam ter-se servido dos rebanhos e
gado; mas não o fizeram. Portaram-se honestamente. Sua bondade, entretanto,
nada valera junto a Nabal. A resposta que este enviou a Davi indicava o seu
caráter: "Quem é Davi, e quem o filho de Jessé? muitos servos há hoje, e
cada um foge a seu senhor. Tomaria eu, pois, o meu pão, e a minha água, e a
carne das minhas reses que degolei para os meus tosquiadores, e o daria a
homens que eu não sei donde vêm?" I Sam. 25:10 e 11.
Quando os moços voltaram com as mãos vazias, e relataram o acontecido a Davi,
este ficou cheio de indignação. Ordenou que seus homens se aparelhassem para um
encontro; pois que resolvera castigar o homem que lhe negara o que era de seu
direito, e que ao dano acrescentara o insulto. Este movimento impetuoso estava
mais em harmonia com o caráter de Saul do que com o de Davi; o filho de Jessé,
porém, tinha ainda de aprender lições de paciência na escola da aflição.
Um dos servos de Nabal foi apressadamente a Abigail, esposa de Nabal, depois
que este despedira os moços de Davi, e contou-lhe o que tinha acontecido.
"Eis que Davi enviou mensageiros", disse ele, "desde o deserto a
saudar o nosso amo, porém ele se lançou a eles. Todavia, aqueles homens têm-nos
sido muito bons, e nunca fomos agravados deles, e nada nos faltou em todos os
dias que conversamos com eles quando estávamos no campo. De muro em redor de
nós nos serviram, assim de dia como de noite, todos os dias que andamos com
eles apascentando as ovelhas. Olha pois, agora, e vê o que hás de fazer, porque
já de todo determinado está o mal contra o nosso amo e contra toda a sua
casa." I Sam. 25:14-17.
Sem consultar o esposo, ou contar-lhe sua intenção, Abigail fez um amplo
suprimento de provisões, que, posto sobre jumentos, enviou adiante sob o
cuidado de servos, e ela partiu para encontrar-se com o grupo de Davi.
Encontrou-os no encoberto de um monte. "Vendo, pois, Abigail a Davi,
apressou-se, e desceu do jumento, e prostrou-se sobre o seu rosto diante de
Davi, e se inclinou à terra. E lançou-se a seus pés, e disse: Ah, senhor meu,
minha seja a transgressão; deixa, pois, falar a tua serva aos teus
ouvidos." I Sam. 25:23 e 24. Abigail dirigiu-se a Davi com tanta
reverência como se falasse a um rei coroado. Nabal tinha escarnecedoramente
exclamado: "Quem é Davi?" (I Sam. 25:10) mas Abigail chamara-o
"senhor meu." Com amáveis palavras ela procurou abrandar-lhe os
sentimentos irritados, e pleiteou com ele em favor de seu esposo. Nada tendo de
ostentação ou orgulho, antes cheia da sabedoria e amor de Deus, Abigail revelou
a força de sua devoção para com sua casa, e esclareceu a Davi que o
procedimento indelicado de seu marido de nenhuma maneira fora premeditado
contra ele como uma afronta pessoal, mas que simplesmente tinha sido a explosão
de uma natureza infeliz e egoísta.
"Agora, pois, meu senhor, vive o Senhor, e vive a tua alma, que o Senhor
te impediu de vires com sangue, e de que a tua mão te salvasse; e, agora, tais
quais Nabal sejam os teus inimigos e os que procuram mal contra o meu
senhor." Abigail não tomou para si o crédito deste raciocínio a fim de
demover a Davi de seu precipitado propósito, mas deu a Deus a honra e o louvor.
Ofereceu então sua rica provisão como oferta pacífica aos homens de Davi, e
ainda pleiteou como se ela mesma fora quem tivesse provocado o ressentimento do
líder.
"Perdoa, pois, à tua serva esta transgressão", disse ela,
"porque certamente fará o Senhor casa firme a meu senhor, porque meu
senhor guerreia as guerras do Senhor, e não se tem achado mal em ti por todos
os teus dias." I Sam. 25:26-28. Abigail apresentou por inferência a
conduta que Davi deveria adotar. Ele faria as guerras do Senhor. Não deveria
procurar vingança de ofensas pessoais, embora perseguido como um traidor. Ela
continuou: "Levantando-se algum homem para te perseguir, e para procurar a
tua morte, então a vida de meu senhor será atada no feixe dos que vivem com o
Senhor teu Deus; … há de ser que, usando o Senhor com o meu senhor conforme a
todo o bem que já tem dito de ti, e te tiver estabelecido chefe sobre Israel,
então, meu senhor, não te será por tropeço, nem por pesar no coração o sangue
que sem causa derramaste, nem tão pouco o haver-se salvado meu senhor a si
mesmo; e quando o Senhor Deus fizer bem ao meu senhor, lembra-te então da tua
serva." I Sam. 25:29-31.
Estas palavras poderiam apenas ter vindo dos lábios de quem tivesse participado
da sabedoria do alto. A piedade de Abigail, semelhante ao perfume de uma flor,
exalava de seu rosto, de suas palavras e ações, sem que disso ela se
apercebesse. O Espírito do Filho de Deus habitava em sua alma. Seu discurso,
adubado pela graça, e cheio de bondade e paz, derramava uma influência
celestial. Melhores impulsos vieram a Davi, e ele tremeu ao pensar quais
poderiam ser as conseqüências de seu intuito precipitado. "Bem-aventurados
os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus." Mat. 5:9.
Oxalá houvesse muitos outros como esta mulher de Israel, que abrandassem os
sentimentos irritados, obstassem impulsos temerários, e com palavras de calma e
bem dirigida sabedoria aplacassem grandes males!
Uma vida cristã consagrada está sempre a derramar luz, consolação e paz.
Caracteriza-se pela pureza, tato, simplicidade e utilidade. É dirigida por
aquele amor abnegado que santifica a influência. Está repleta de Cristo, e
deixa um rasto de luz aonde quer que seu possuidor vá. Abigail tinha sabedoria
para reprovar e aconselhar. A paixão de Davi esvaiu-se, sob o poder de sua
influência e raciocínio. Ele ficou convicto de que assumira uma conduta
imprudente, e perdera o domínio de seu próprio espírito.
Com humilde coração recebeu a repreensão em conformidade com suas próprias
palavras: "Fira-me o justo, será isso uma benignidade; e repreenda-me,
será um excelente óleo." Sal. 141:5. Ele deu graças e louvores porque ela
o aconselhara retamente. Muitos há que, quando reprovados, julgam ser dignos de
elogio se recebem a repreensão sem se tornarem impacientes; mas quão poucos
recebem a reprovação com coração grato, e abençoam aqueles que os procuram
salvar de seguirem por um mau caminho!
Quando Abigail voltou para casa, encontrou Nabal e seus hóspedes em um grande
banquete, que tinham convertido em cenas de orgia e embriaguez. Não foi senão
na manhã seguinte que ela relatou a seu esposo o que ocorrera em sua entrevista
com Davi. Nabal era de ânimo covarde; e, quando se compenetrou de quão perto de
uma morte súbita o havia trazido a sua loucura, pareceu achar-se atacado de paralisia.
Receoso de que Davi ainda prosseguisse com seus intuitos de vingança, encheu-se
ele de terror, e prostrou-se em uma condição de irremediável insensibilidade.
Dez dias depois, morreu. A vida que Deus lhe dera tinha sido apenas uma
maldição para o mundo. Em meio a seu regozijo e alegria, Deus lhe dissera, como
disse ao homem rico da parábola: "Esta noite te pedirão a tua alma."
Luc. 12:20.
Davi mais tarde desposou Abigail. Já era marido de uma mulher; mas o costume
das nações de seu tempo tinha-lhe pervertido o discernimento, influenciando-o
em suas ações. Mesmo grandes homens, e bons, têm errado, seguindo os costumes
do mundo. O amargo resultado de desposar muitas mulheres foi dolorosamente
sentido durante toda a vida de Davi.
Depois da morte de Samuel, Davi ficou em paz por alguns meses. Novamente se
dirigiu à solidão dos zifeus; mas estes inimigos, esperando conseguir favor do
rei, informaram a este do esconderijo de Davi. Tal conhecimento despertou o
demônio da paixão que estivera a dormir no peito de Saul. Mais uma vez convocou
seus homens de armas, e os levou à perseguição de Davi. Espias que lhe eram
amigos, porém, levaram ao filho de Jessé a notícia de que Saul de novo o estava
a perseguir; e com alguns de seus homens Davi partiu para saber o lugar em que
estava seu inimigo. Era noite, quando, avançando cautelosamente, chegaram ao
acampamento, e viram diante de si as tendas do rei e de seus auxiliares. Não
foram notados; pois o arraial estava a dormir em silêncio. Davi
chamou seus amigos, para irem com ele ao próprio meio de seus adversários. Em
resposta à sua pergunta: "Quem descerá comigo a Saul ao arraial?"
respondeu prontamente Abisai: "Eu descerei contigo." I Sam. 26:6.
Ocultos pelas densas sombras das colinas, Davi e seu auxiliar entraram no
arraial do inimigo. Procurando certificar-se do número exato de seus
adversários, chegaram a Saul, adormecido, estando sua lança cravada no solo, e
uma bilha de água a sua cabeceira. Ao lado deles estava deitado Abner, chefe do
exército, e ao redor deles estavam os soldados, entregues ao sono. Abisai
levantou sua lança e disse a Davi: "Deus te entregou hoje nas tuas mãos a
teu inimigo; deixa-mo, pois, agora encravar com a lança duma vez na terra, e
não o ferirei segunda vez." Esperou a palavra que lhe desse permissão;
caíram, porém, em seus ouvidos estas palavras cochichadas: "Nenhum dano
lhe faças; porque quem estendeu a sua mão contra o ungido do Senhor, e ficou
inocente? … Vive o Senhor, que o Senhor o ferirá, ou o seu dia chegará em que
morra, ou descerá para a batalha e perecerá; o Senhor me guarde, de que eu
estenda a mão contra o ungido do Senhor; agora, porém, toma lá a lança que está
à sua cabeceira e a bilha da água, e vamo-nos. Tomou, pois, Davi a lança e a
bilha da água, da cabeceira de Saul, e foram-se; e ninguém houve que o visse,
nem que o advertisse, nem que acordasse; porque todos estavam dormindo, pois
havia caído sobre eles um profundo sono do Senhor." I Sam. 26:8-12. Quão
facilmente o Senhor pode enfraquecer o mais forte, remover a prudência dos
prudentes, e zombar da perícia do mais atento!
Quando Davi se encontrou a uma distância do acampamento que o punha fora de
perigo, pôs-se em pé no cimo de uma colina, e clamou com grande voz ao povo, e
a Abner, dizendo: "Porventura não és varão? e quem há em Israel como tu,
por que, pois, não guardaste tu o rei teu senhor? porque um do povo veio para
destruir o rei teu senhor. Não é bom isto, que fizeste; vive o Senhor, que sois
dignos de morte, vós que não guardastes a vosso senhor, o ungido do Senhor;
vede, pois, agora onde está a lança do rei, e a bilha da água, que tinha à sua
cabeceira. Então conheceu Saul a voz de Davi, e disse: Não é esta a tua voz,
meu filho Davi? E disse Davi: Minha voz é, ó rei meu senhor. Disse mais: Por
que persegue meu senhor assim o seu servo? Pois que fiz eu? E que maldade se
acha nas minhas mãos? Ouve, pois, agora, te rogo, rei meu senhor, as palavras
de teu servo." De novo caiu dos lábios do rei o reconhecimento:
"Pequei; volta, meu filho Davi, porque não mandarei fazer-te mal; porque
foi hoje preciosa a minha vida aos teus olhos. Eis que procedi loucamente, e
errei grandissimamente. Davi então respondeu, e disse: Eis aqui a lança do rei;
passe cá um dos mancebos, e leve-a." Embora Saul fizesse a promessa: "Não
mais te farei mal" (I Sam. 26:15-22), Davi não se pôs sob o seu poder.
Este segundo exemplo do respeito de Davi pela vida de seu soberano, produziu
impressão ainda mais profunda no espírito de Saul, e alcançou dele um
reconhecimento mais humilde de sua falta. Ficou admirado e vencido com tal
manifestação de bondade. Despedindo-se de Davi, Saul exclamou: "Bendito
sejas tu, meu filho Davi; pois grandes coisas farás, e também
prevalecerás." I Sam. 26:21. Mas o filho de Jessé não tinha esperança que
o rei continuasse muito tempo nesta disposição de espírito.
Davi não esperava uma reconciliação com Saul. Parecia inevitável que finalmente
ele tombasse como vítima da malícia do rei; e resolveu de novo buscar refúgio
na terra dos filisteus. Com os seiscentos homens sob o seu comando, passou-se
para Aquis, rei de Gate.
A conclusão de Davi, de que Saul certamente cumpriria seu intuito assassino,
foi formulada sem o conselho de Deus. Mesmo quando Saul estava tramando e
procurando levar a efeito a sua destruição, o Senhor agia com o fim de
assegurar a Davi o reino. Deus efetua Seus planos, embora aos olhos humanos
estejam velados em
mistério. Os homens não podem compreender os caminhos de
Deus; e, olhando às aparências, interpretam os transes, provações e
experiências que Deus permite que venham sobre eles, como coisas que contra
eles são, e que apenas farão a sua ruína. Assim Davi olhava para as aparências,
e não para as promessas de Deus. Duvidava que algum dia viesse a ocupar o
trono. Longas provações lhe tinham cansado a fé e esgotado a paciência.
O Senhor não mandou Davi, à busca de proteção, aos filisteus, os piores
adversários de Israel. Esta nação, precisamente, estaria entre seus piores
inimigos, até ao fim; e no entanto fugira para eles à procura de auxílio em seu
tempo de necessidade. Tendo perdido toda a confiança em Saul e nos que o
serviam, lançou-se à disposição dos inimigos de seu povo. Davi era um bravo
general, e tinha-se mostrado guerreiro prudente e bem-sucedido; mas estava a
agir diretamente contra seus próprios interesses quando foi aos filisteus. Deus
o havia designado para levantar Seu estandarte na terra de Judá, e foi a falta
de fé que o levou a abandonar seu posto de dever sem ordem da parte do Senhor.
Deus foi desonrado pela incredulidade de Davi. Os filisteus tinham temido a
Davi mais do que a Saul e seus exércitos; e, colocando-se sob a proteção dos
filisteus, Davi patenteara-lhes a fraqueza de seu povo. Assim ele animou esses
implacáveis adversários a oprimirem Israel. Davi tinha sido ungido para ficar
na defesa do povo de Deus; e o Senhor não queria que Seu servo animasse os
ímpios, descobrindo-lhes a fraqueza de seu povo, ou dando uma aparência de
indiferença pelo bem-estar do mesmo. Além disso, receberam seus irmãos a
impressão de que ele fora aos gentios para servirem aos seus deuses. Por meio
deste ato deu motivo a que fossem mal-interpretados os seus intuitos, e muitos
foram levados a entreter preconceito contra ele. Davi foi levado a fazer
exatamente o que Satanás desejava que ele fizesse; pois, procurando refúgio
entre os filisteus, ele proporcionou grande exultação aos inimigos de Deus e de
Seu povo. Davi não renunciou ao culto a Deus, nem cessou a devoção para com Sua
causa; mas sacrificou a confiança nEle pela sua segurança pessoal, e assim maculou
o caráter reto e fiel que Deus requer que Seus servos possuam.
Davi foi cordialmente recebido pelo rei dos filisteus. O calor desta recepção
foi em parte devido ao fato de que o rei o admirava, e em parte ao fato de
lisonjear à sua vaidade que um hebreu procurasse sua proteção. Davi sentia-se
livre de perigo de traição nos domínios de Aquis. Levara sua família, sua casa
e suas posses, e o mesmo fizeram seus homens; e segundo toda a aparência ali
chegara ele a fim de fixar-se permanentemente na terra de Filístia. Tudo isto
satisfazia a Aquis, que prometeu proteger os israelitas fugitivos.
Ao pedido feito por Davi para residir no campo, afastado da cidade real,
concedeu o rei gentilmente Ziclague em possessão. Davi
compenetrara-se de que seria perigoso para si e seus homens estarem sob a
influência de idólatras. Em uma cidade inteiramente separada para si, poderiam
adorar a Deus com mais liberdade do que se ficassem em Gate, onde os ritos
pagãos não poderiam deixar de mostrar-se uma fonte de males e incômodos.
Enquanto morava naquela cidade isolada, Davi fez guerra aos gesuritas, aos
gersitas e aos amalequitas, e a ninguém deixou vivo para levar a notícia a
Gate. Quando voltou da batalha, deu a entender a Aquis que estivera a guerrear
contra os de sua própria nação, os homens de Judá. Por esta dissimulação, ele
serviu de meio para fortalecer a mão dos filisteus; pois disse o rei:
"Fez-se ele por certo aborrecível para com o seu povo em Israel; pelo que
me será por servo para sempre." I Sam. 27:12. Davi sabia que era a vontade
de Deus que essas tribos gentílicas fossem destruídas, e sabia estar ele
designado para fazer esta obra; mas não andava no conselho de Deus quando
praticou o engano.
"E sucedeu naqueles dias que, juntando os filisteus os seus exércitos para
a peleja, para fazer guerra contra Israel, disse Aquis a Davi: Sabe de certo
que comigo sairás ao arraial, tu e os teus homens." Davi não tinha
intenções de levantar a mão contra seu povo; mas não estava certo quanto ao que
haveria de fazer, até que as circunstâncias indicassem seu dever. Respondeu ao
rei evasivamente, e disse: "Assim saberás tu o que fará o teu servo."
I Sam. 28:1 e 2. Aquis compreendeu estas palavras como uma promessa de auxílio
na guerra que se aproximava, e comprometeu sua palavra a conferir a Davi grande
honra, e dar-lhe elevado cargo na corte filistéia.
Mas, embora a fé de Davi tivesse vacilado um pouco nas promessas de Deus, ele
ainda se lembrou de que Samuel o ungira rei de Israel. Recordou as vitórias que
no passado Deus lhe havia dado sobre seus inimigos. Reviu a grande misericórdia
de Deus, guardando-o das mãos de Saul, e resolveu não trair um encargo sagrado.
Mesmo que o rei de Israel tivesse procurado tirar-lhe a vida, ele não uniria
suas forças com os inimigos de seu povo.
AUTOR DESCONHECIDO
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