A mulher samaritana, Coca-Cola e Jesus.
Às vezes, a gente ouve certas coisas que não aceita, mas não sabe bem o porquê.
Só depois de algum tempo entende. Não foi por mera antipatia que aquela
mensagem não desceu bem. Recordo-me quando ouvi pela primeira vez o paralelo
entre Jesus e a Coca-Cola. O pregador, inflamado de zelo e paixão missionária,
afirmava que numa viagem ao interior do Haiti, sob uma temperatura de mais de
40 graus, sentiu-se aliviado quando parou num quiosque miserável feito de palha
de coqueiros e pôde comprar uma garrafa do mais famoso refrigerante do mundo.
Devidamente refeito depois de beber sua Coca geladinha, perguntou ao dono da
venda se já ouvira falar de Jesus. Ele não sabia de quem se tratava. E o nosso
palestrante fez sua analogia, tentando dar um choque na complacência da igreja
ocidental: “A Coca-Cola conseguiu alcançar o mundo inteiro em menos de um
século e a igreja cristã ainda não cumpriu a ordem da Grande Comissão em mais
de 20 séculos!”. Depois daquela primeira exortação, já devo ter escutado essa
mesma comparação uma dúzia de vezes em diversas conferências missionárias.
Verdade ou tolice? Pior. Estou certo que essas ilustrações não são meros
simplismos, nascem de grandes erros teológicos (ou ideológicos?).
Coca-Cola é uma bebida inventada na Geórgia, Estados Unidos, com uma fórmula
secreta. Sabe-se que sua receita original continha alguns ingredientes também
encontrados na cocaína, daí o seu nome. Seus fabricantes nunca intencionaram
outro propósito senão matar a sede das pessoas. A The Coca-Cola Company não
convoca ninguém a rever valores do caráter, não confronta estruturas de morte,
não se propõe a aliviar culpa, não revela a eternidade e nem Deus. Para chegar
aos quiosques mais remotos do globo, bastou criar um produto doce e
gaseificado. Investir bilhões em boas estratégias de propaganda, construir
fábricas e desenvolver uma boa rede de distribuição para que o produto chegasse
com a mesma qualidade nos pontos de venda. Tentar comparar a missão da igreja
no anúncio do Reino de Deus às estratégias de mercado de um refrigerante, beira
o absurdo. Confunde-se um bem material com uma pessoa e enxerga-se na mensagem
um produto. Os missiólogos sucumbiram à lógica do mercado do novo milênio?
Acreditam mesmo que cumpriremos nossa missão com os instrumentais corporativos?
Tudo pode se tornar um produto?
No Brasil, o esforça-se muito para “vender” o Evangelho. Quase não se usa a
mídia para proclamar os conteúdos do Evangelho. Alardeiam-se os benefícios da
fé. Basta observar a enormidade de tempo gasto divulgando os horários dos
cultos, a eficácia da oração, mostrando que aquela igreja é melhor e que a sua
mensagem é a mais forte para resolver todos os problemas das pessoas. Aborda-se
o Evangelho como um produto eficaz e adota-se uma mentalidade empresarial no
seu anúncio. Prometem-se enormes possibilidades. Tratam as pessoas como
clientes e sem constrangimento, anuncia-se que qualquer um pode adquirir esse
determinado benefício com um esforço mínimo. As igrejas se transformam em balcões
de serviços religiosos ou supermercados da fé. A tendência de oferecer cultos
diferenciados e as intermináveis campanhas de milagres demonstram bem esse
espírito. Como um supermercado com as gôndolas recheadas de produtos, as
igrejas procuram incrementar os “serviços” ao gosto dos fregueses. Os pastores
dividem os dias da semana com programações atrativas; gastam suas energias
desenvolvendo estratégias que atraiam o maior número de pessoas. Sonham com
auditórios lotados. Campanhas, correntes e demonstrações grotescas de
exorcismos e milagres financeiros se sucedem. As pessoas, por sua vez, se
achegam, seduzidos pelas promoções das prateleiras eclesiásticas.
Esse modelo induz as pessoas a adorarem a Deus por aquilo que ele dá e não por
quem é. Não se anuncia o senhorio de Cristo, apenas os benefícios da fé. Os
crentes acabam tratando a Bíblia como um amuleto e, supersticiosos, continuam
presos ao medo. Vive-se uma religião de consumo.
Mas existe outra dimensão ainda mais sutil. Naomi Klein, jornalista canadense,
publicou recentemente “Sem Logo” (Editora Record) para denunciar a tirania das
marcas em um planeta obcecado pelo consumo. Ela defende a tese de que a grandes
corporações do mercado global não vendem apenas os seus produtos, mas a marca.
Procuram criar uma filosofia de vida embutida em seus produtos. Desejam induzir
seus consumidores a acreditarem que podem viver um determinado estilo de vida,
desde que comprem aquela marca específica. Assim os fumantes de Marlboro
imaginam personificar o “cowboy” solitário, mesmo morando em um apartamento.
Quando atletas amadores vestem as roupas ou calçam os tênis da Nike, acham que
se transformam em campeões. Gente que vive presa no trânsito apinhado das
grandes metrópoles, ao dirigir jipes com tração nas quatro rodas, sente-se
desbravando sertões. Klein declara: “’Marcas, não produtos!’ tornou-se o grito
de guerra de um renascimento do marketing liderado por uma nova estirpe de
empresas que se viam como ‘agentes de significado’ em vez de fabricantes de produtos.
Segundo o velho paradigma, tudo o que o marketing vendia era um produto. De
acordo com o novo modelo, contudo, o produto sempre é secundário ao verdadeiro
artigo. A marca e a sua venda adquirem um componente adicional que só pode ser
descrito como espiritual”.
Infelizmente percebe-se o mesmo em determinados círculos cristãos. Querem fazer
do Evangelho uma grife. Como? Primeiro transforma-se um seleto grupo de
evangelistas, cantores e pastores em superestrelas ao estilo de Hollywood.
Depois associam seu nome a grandes eventos e dão-lhes o holofote. Ensinam-lhes
habilidades espirituais acima da média. Assim produzem-se ícones semelhantes
aos do mundo do entretenimento. Eles aglutinam multidões, vendem qualquer coisa
e criam novas modas. A indústria fonográfica enriquece, os congressos se
enchem, e os novos astros do mundo “gospel” alavancam suas igrejas.
Jesus dialogou com uma mulher samaritana e ofereceu-lhe uma água viva. A mulher
imaginou essa água com raciocínios concretos. Pensou que ao beber, nunca mais
teria sede. Uma água dessas hoje, devidamente comercializada, seria um tesouro
sem preço. “Dá-me dessa água e assim nunca mais terei que voltar aqui”.
Jesus corrigiu sua linha de pensamento. A água que ele oferecia não era mágica,
mas um relacionamento: filhos e filhas adorando ao Criador em espírito em
verdade. Infelizmente muitos evangélicos brasileiros propagandeiam água mágica.
Pretensamente matando a sede de qualquer um no estalar dos dedos.
O evangelho não é produto ou grife, volto a repetir, mas uma alvissareira
notícia. Não deveria se escravizar às regras do mercado. Ricardo Mariano em sua
tese de doutoramento concluiu, para a vergonha de tantas igrejas
neo-pentecostais: “As concessões mágicas feitas pelas igrejas pentecostais às
massas desafortunadas, por certo, não constituem tão-somente meras
concessões... observa-se que a oferta pentecostal de serviços mágicos segue
cada vez mais uma dinâmica empresarial, ditada pela férrea lógica do mercado
religioso, que pressiona os diferentes concorrentes religiosos a acirrarem seu
ativismo e a tornarem mais eficazes suas ações e estratégias evangelísticas”.
Essa mercadoria religiosa caricaturada de evangelho não representa o leito
principal da tradição apostólica. A indústria que encena essa coreografia
carismática de muito barulho e pouca eficácia, não conta com o aval de Deus. Há
de se voltar ao anúncio doloroso do arrependimento como primeira atitude para
os candidatos ao Reino. Não se pode, em nome de templos lotados, omitir a
mensagem da cruz. Precisa-se repetir sem medo a mensagem de Jesus: “Se alguém
quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Marcos
8.34).
Se não voltarmos aos fundamentos do Evangelho, teremos sempre clientes
religiosos, nunca seguidores de Cristo. Faremos proselitismo sem evangelizar.
Aumentaremos nossa arrecadação sem denunciar pecados. Construiremos
instituições humanas sem encarnação do Reino de Deus. E pior, continuaremos
confundimos Jesus com Coca-Cola. No Maranhão há um refrigerante de grande
sucesso com a marca Jesus. Entretanto, não se pode desejar alcançar o sucesso
transformando Jesus numa soda e as igrejas em quiosques religiosos.
AUTOR DESCONHECIDO
(não me responsabilizo pela posição e/ou leitura teológica do autor)
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