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sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

TEOLOGIA 13 - A GRAÇA COMO MANIFESTAÇÃO DE VIDA

A GRAÇA COMO MANIFESTAÇÃO DE VIDA

Pr. Cornélio Póvoa de Oliveira 


LONDRINA
2002

 

 RESUMO



Usamos comumente em nossos púlpitos a palavra “graça”. Embora de forma geral todos compreendem o termo como “favor”, suas implicações são facilmente despercebidas por aqueles que nos ouvem. Diante desse desafio é que gostaria de analisar as implicações da graça. Veremos que é possível compreende-la como manifestação de vida. Creio que grande parte de nossos acertos e erros tem como sua causa a percepção que adotamos da doutrina da graça. Embora muitos não tem conhecimento desta doutrina vivem permeados por ela.
Não tenho por finalidade sistematizar e criar um tratado teológico para os nossos dias, mas de compreender através da doutrina da graça o que deveríamos fazer como líderes da Igreja de Cristo hoje.
Espero no final deste livro poder responder a seguinte pergunta: De que forma a graça deve ser proclamada (experimentada) hoje?






SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 4

CAPITULO I - O SIGNIFICADO DA GRAÇA NO ANTIGO TESTAMENTO.............. 6
          1. Origem etimológica ............................................................................................... 6
          2. Como entender a graça no AT .............................................................................. 7

CAPITULO II - O SIGNIFICADO DA GRAÇA NO NOVO TESTAMENTO  .............. 9
          1. Como entender a graça no NT .............................................................................. 9
          1.1. A graça é vista como manifestação presente por meio de Jesus Cristo ................. 9
          1.2. A graça é para toda criação ............................................................................. 10

CAPITULO III - A COMPREENSÃO DA GRAÇA PELOS REFORMADORES ......... 12
          1. Martinho Lutero .................................................................................................. 12
          2. João Calvino ....................................................................................................... 15

CAPITULO IV - A GRAÇA NA VISÃO DA TEOLOGIA DA AMÉRICA LATINA .... 20
          1. Leonardo Boff .................................................................................................... 20

CAPITULO V – A IMPLICAÇÃO DA GRAÇA COMO MANIFESTAÇÃO DE VIDA PARA OS NOSSOS DIAS ......................................................................................................................................... 25
    1. Que produza vida em nós .................................................................................... 25
2. Que produza vida na comunidade ........................................................................ 26
    3. Que produza vida na sociedade ........................................................................... 27

CONCLUSÃO ............................................................................................................... 29

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 31



  





 INTRODUÇÃO


Tenho visto alguns amigos de trabalho vivendo estressados, desanimados e até mesmo angustiados diante o trabalho pastoral. Faço uso da palavra vivendo porque eles se encontram num estado e não apenas num momento transitório.
Muito de nossos colegas começam trabalhando ativamente, procurando fazer de tudo o que está ao seu alcance e mais um pouco do que devem para que suas igrejas cresçam. Muitos conseguem manter-se firmes nesta motivação até o fim de seus ministérios, entretanto outros se acomodam, e há ainda aqueles que desistem do ministério por se sentirem frustrados.
Por que vivemos estes extremos dentro de nossas igrejas? Estes extremos não atingem somente a Igreja Presbiteriana do Brasil, da qual faço parte, mas todas as igrejas.
Dizer que isso é normal, e que em todas as áreas há aqueles que lutam e vencem, e outros que são derrotados e se tornam apenas expectadores é uma visão muito simplista. Há algo que sempre faz com que alguém seja o melhor médico, o melhor dentista, o melhor advogado. Há um ideal que motiva, que anima, que empurra cada pessoa para a realização dos projetos com as quais ela sonha.
Acredito que dentro da visão da liderança eclesial este impulso, este ideal motivador, seja a GRAÇA. Entretanto aqueles que não compreendem esta doutrina acabam por se cobrar demais e deixam de produzir e seus ministérios morrem.

Neste trabalho procuro mostrar que a graça é manifestação de vida. Para isso, analisaremos o entendimento da “graça” no Antigo Testamento, no Novo Testamento, no pensamento de Martinho Lutero e João Calvino, como representantes da reforma e também analisaremos a “graça” a partir de Leonardo Boff como representante da Teologia da América Latina (Teologia da Libertação).
Entendendo graça como manifestação de vida, nós, líderes, passamos a compreender que somos chamados para uma prática pastoral que gere vida. Onde Deus está tem que ter vida; todo o agir de Deus produz vida.








  

CAPITULO I

O SIGNIFICADO DA GRAÇA NO ANTIGO TESTAMENTO


1.      Origem etimológica
No Antigo Testamento a palavra “graça” era traduzida normalmente pela palavra hanan, hesed ou pela palavra hen. Estas palavras devem ter evoluído do radical que significa “inclinar-se, acampar”.
“Hanan sempre designa a relação de um superior com um subalterno, portanto um inclinar-se no sentido de magnância dedicação. Esta inclinação muitas vezes é precedida da correspondente solicitação por parte de quem busca auxilio. Neste sentido ‘ter graça para com’ significa: conceder ajuda concreta a alguém. Com relativa freqüência, no AT, Deus aparece como sujeito da forma verbal hanan, principalmente nos salmos”[1].
A palavra hesed, que significa misericórdia, podia ser usada para designar misericórdia de Deus ou do homem. Esta palavra é de difícil tradução embora seja usada com muita freqüência com referencia ao concerto entre Deus e o seu povo escolhido. Nas versões da Bíblia em português, é traduzida por bondade, beleza, glória, compaixão e misericórdia. Lutero traduziu esta palavra, pela palavra Gnade, a mesma que usou para traduzir a palavra grega charis (graça).
O sentido de “graça” aparece na palavra hesed quando esta se refere à relação de Deus com seu povo. Podemos dizer que hesed representa o amor fiel e imutável de Deus no cumprimento das suas promessas feitas a Israel. Hesed também era usada para designar a fidelidade dos contratantes de qualquer pacto. Por exemplo, Davi e Jônatas prometem usar, um para com o outro, o amor fiel (hesedh) do Senhor (1 Sm 20:14-16). Este pacto baseado na fidelidade de Deus nunca poderia ser quebrado.
A palavra hebraica hen, segundo Stringer, [2]“é empregada para significar a ação de um superior, humano ou divino, para com um inferior. Fala sobre favor desmerecido, e é traduzida por “graça”e “favor” por algumas dezenas de vezes”.
Deste termo se origina o conceito que temos de “graça” como favor imerecido. E, sempre que falamos de graça no Antigo Testamento ou mesmo no Novo Testamento, temos primeiramente essa visão de “favor imerecido”. Através deste termo, Deus fala de sua graça através da imagem do amor paternal ou mesmo maternal (conforme Os 11). Também devemos salientar que o Antigo Testamento não receia descrever a inclinação amorosa de Deus com termos e imagens utilizados principalmente para caracterizar o amor entre os sexos (Rt 2:10,13; Ester 2:9; 5:2; Sl 85:1; Jr 24:5). Segundo Bernd Jochen Hilberath, este [3]“termo designa a experiência da soberania, liberdade e infundado amor de Deus, isto é, baseado exclusivamente em si próprio”.
É verdade que graça pode significar perdão, libertação, salvação. Entretanto, é bom afirmarmos que todas estas palavras são apenas conseqüências da manifestação da graça ou do favor de Deus. Portanto, atrás destas conseqüências sempre está a ação de um Deus gracioso para com um povo não merecedor dessa graciosidade.

2. Como entender a graça no AT
Afirmar quando o conceito da “graça” se originou dentro da cultura hebraica seria impossível. Entretanto, podemos analisar como ela se originou.
Graça se originou do próprio conceito do ser de Deus. À medida que Deus vai se revelando ao homem, este vai tomando conhecimento dos atos de Deus e vendo nestes atos manifestações de bondade e de misericórdia. Deus age na história de Israel sem que o povo merecesse este favor divino. Israel entende que Deus se tornará favorável a Eles, embora não merecessem este favor. “Não vos teve o Senhor afeição, nem vos escolheu, porque fôsseis mais numerosos, do que qualquer povo, pois éreis o menor de todos os povos” (Dt 7:7).
Deus manifestou seu favor para com este povo de várias formas. Perdão, salvação, regeneração, libertação, tudo isso está envolvido no conceito da palavra “graça” no Antigo Testamento. A práxis de Deus no meio do povo faz com que Ele seja visto como um Deus gracioso.
Se “graça” é entendida pelo povo de Israel como favor imerecido, favor aqui implica em auxilio, ajuda, isto é, em ação concreta. Podemos dizer que graça é uma manifestação do amor de Deus ao seu povo; amor este tão forte e intenso que leva Deus a agir no meio deste povo. Então, estudar a doutrina da graça é estudar a ação de Deus no meio do seu povo. Na experiência da fé de Israel encontra-se o Deus da vida.
A ação de Deus para o povo de Israel é a Sua “graça”, uma vez que eles compreendiam que não mereciam este favor. Então a ação libertadora do Egito é vista como “graça”, as vitórias conquistadas sobre os outros povos são vistas como “graça”. O perdão de Deus é visto como “graça”, a salvação de Deus é vista como “graça”, em fim o agir de Deus é visto como “graça”, e a própria criação é vista como “graça” de Deus.
A graça é vista como uma ação de Deus na história do seu povo. É interessante que essa ação sempre leva a mostrar o Deus que dá vida. A graça é uma manifestação do criar e transformar de Deus na história de Israel. É Deus criando nova vida através do perdão, da salvação, da libertação. É Deus transformando um relacionamento quebrado em um relacionamento vivo e ativo. É Deus transformando um povo sem esperança, em um povo cheio de esperança. É Deus transformando amargura em alegria, morte em vida. Em fim, os atos de Deus sempre trazem vida ou apontam para uma nova vida.
A visão messiânica fazia com que o povo de Israel vivesse sempre esperando a manifestação do novo reino. Eles sempre olham para o passado vendo a manifestação da graça de Deus como aquele que trouxe vida para Israel. Olham para o presente, se lançando para o futuro, e enxergando no futuro a manifestação da graça de Deus, enxergando nesta manifestação de graça uma perspectiva de nova vida.
Leonardo Boff diz que no Antigo Testamento [4]“a graça é vivida e pensada em termos históricos e nas consciência dos fatos graciosos que Deus fez, que criaram história na memória do povo e que preparam uma plenitude cósmica na escatologia”.







CAPITULO II

O SIGNIFICADO DA GRAÇA NO NOVO TESTAMENTO


1. Como compreender a graça no Novo Testamento
O significado de “graça” não muda do Antigo Testamento para o Novo Testamento. É um engano dizer que no AT a relação com Deus está determinada por méritos e “justiça das obras”, e que, no NT, exclusivamente pela fórmula “somente por graça, somente pela fé”. O NT está situado dentro da tradição judaica, portanto o conceito de graça é o mesmo.
A palavra usada no Novo Testamento para traduzir o vocábulo hebraico hen é charis. Na diáspora judaica de fala grega, charis evolui para se tornar o equivalente da palavra hebraica e do conceito de graça judaico. O significado de “graça” não muda, mas há alguns acréscimos importantes na visão da graça.  

1.1 A Graça é vista como manifestação presente por meio de Jesus Cristo
A partir do Novo Testamento, a “graça” não é apenas lida na história, é vista como expectativa para o presente e não somente para o futuro. A “graça” irrompeu na história da humanidade e está presente nesta história.
Jesus é visto como a própria encarnação da “graça”. “Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (Jo 1:17). Estas palavras do apóstolo João nos dizem claramente que Jesus é aquele que nos trouxe a “graça”.
Por meio de Jesus, a graça deixou de ser compreendida apenas como manifestações de Deus na história do seu povo (Israel) ou como promessa de uma nova vida futura.
Hilberath diz que “com base na experiência pascal os cristãos professam que a graciosa dedicação de Deus em Jesus de Nazaré foi experienciada em pessoa, fisicamente, que quer beneficiar a todos no Espírito Santo e, quando do retorno do Senhor quando todos chegarem a ele, ela se revelará plenamente diante dos olhos de todos (Tt 2:11-13)”[5].
A graça agora é alcançada por todos aqueles que crêem em Jesus. A salvação, a libertação, a regeneração, o perdão, a justificação tudo está disponível à humanidade. A graça de Deus está disponível ao homem e a mulher, entretanto precisam crer nesta graça.
A leitura do Novo Testamento nos permite dizer, sendo graça a manifestação do amor de Deus, e que este amor se manifesta criando nova vida e transformando o velho em novo, que esta nova vida já está ao alcance de todos. Se a graça está ao nosso alcance, a nova vida também está ao nosso alcance.

1.2 A graça é para toda criação
Toda a ação de Deus está permeada de amor ou tem como causa o Seu grande amor. João nos diz isso: “porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3:16).
Por que Deus deu Seu Filho? O apóstolo João nos diz que porque amou ao mundo. Deus amou sua criação, Deus nos amou e essa é a razão Dele intervir na história.
Nas palavras de João percebemos outra mudança significativa na visão da graça. Veja que o apóstolo afirma que Deus amou o mundo e por ele deu seu Filho. Agora, a graça passa a ser vista não apenas na história de Israel, mas na história da humanidade. Nós vimos que no Antigo Testamento a graça era só compreendida quando Deus agia na história de Israel, seu povo; entretanto a partir do Novo Testamento a manifestação de Deus é para todo o mundo, para todas as raças, todas as famílias. Jesus não morreu exclusivamente para o povo de Israel. Jesus morreu pelo mundo, isto implica toda a criação.
Jesus Cristo é a maior manifestação da “graça” de Deus. Jesus é a maior manifestação do amor de Deus. Jesus é a maior prova do poder criador e transformador de Deus. Sua ressurreição é a prova da nova criação. Sua ressurreição significa a criação de novo céu, nova terra, de uma nova Jerusalém (Ap 21:1,2). Significa pelas palavras de Paulo a redenção de toda criação. “Na esperança de que a própria criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Rm 8:21).
Graça no Novo Testamento significa nova vida, não apenas a um povo, não apenas à raça humana, mas a toda criação como vimos expresso nos pensamentos do apóstolo João e do apóstolo Paulo.












CAPITULO III

A COMPREENSÃO DA GRAÇA PELOS REFORMADORES

A graça também é compreendida pelos reformadores como manifestação de vida. Ela está tão fortemente associada com o termo justificação na visão reformada, que nos é quase impossível separá-la deste conceito. Graça é entendida como tornar o homem e a mulher justos. Para Lutero e Calvino a graça é o “favor de Deus” que justifica o homem. 
Como já disse anteriormente, graça não pode estar presa somente no sentido de justificar, tornar justo o pecador. Graça significa levar o justo à vida eterna, dar ao pecador nova comunhão com Deus, oferecer-lhe nova morada, torná-lo co-herdeiro com Cristo. Todos estes atos são manifestação de vida, manifestação da graça de Deus. 

  1. Martinho Lutero
A experiência deste monge agostiniano mudou a história da igreja. Não apenas ensinou doutrinas diferentes, mas rompeu com o sistema romano-católico que impunha uma religião baseada em trocas ritualísticas da manifestação da graça de Deus pelas obras. O sistema católico oferecia a bem-aventurança eterna salvando o pecador da punição eterna. Para alcançar a graça de Deus era necessário participar dos sacramentos e realizar méritos. De forma que a graça como “favor imerecido” deixava de ser graça e se tornava tão somente mérito.
Lutero não era um homem diferente de sua época, assim como tantos de sua época, vivia com profundo medo da ira de Deus. A imagem que a igreja passava de Deus era de um Deus ameaçador e punitivo. Na busca por um Deus gracioso, nasce a reforma. O que provocou a ruptura de Lutero foi o sacramento da penitência; Lutero não concordava com os abusos deste sacramento. As partes que formavam este sacramento eram a contrição, confissão, absolvição e satisfação.
A contrição era transformada em medo da punição eterna. A satisfação, aqui esta relacionada com o perdão, era alcançada por méritos, por meio de boas obras. O sacerdote impunha qualquer tipo de penitência, às vezes tão difícil que as pessoas tinham medo de cumprir. O medo ou as dificuldades para se cumprir determinadas penitencias levavam as pessoas muitas vezes optarem pelas indulgências. Qualquer um podia comprar esta indulgência e ficavam livres de todas as penas, tanto aqui na terra como no purgatório.

Nas teses, Lutero distingue entre a postura prática do ser humano e o conhecimento teológico. Na primeira parte (teses 1-18), prova que o ser humano não tem direito de se basear em suas realizações éticas. Nem mesmo a lei divina torna o ser humano justo. O mesmo vale para as obras que brotam ao natural do ser humano. Também as melhores obras humanas são pecados diante de Deus, mesmo que do ponto de vista humano não constituam crimes (teses 2-12). A possibilidade de vislumbrar no livre arbítrio da decisão ética ocasião para justificação diante de Deus é qualificada de absoluta tolice; segundo o testemunho da Escritura, o “livre” arbítrio é sempre escravo do pecado (teses 13-15). Somente está apto para conseguir a graça de Cristo quem desesperar totalmente de si mesmo e colocar sua confiança totalmente em Cristo (teses 16-18).[6]

Lutero acreditava que para alcançar a graça (justificação) de Cristo era preciso que o homem se desesperasse totalmente. O homem tinha que reconhecer que era um pecador merecedor da condenação. Ele diz que “a lei quer que o ser humano desespere de si mesmo ao conduzí-lo para o inferno e torná-lo pobre, mostrando-lhe ainda que é pecador em todas as suas obras, como faz o apóstolo em Rm 2 e 3 ao dizer: ‘Está demonstrado que todos estamos sob o pecado’ (Rm 3:9)”[7].
Este conceito nos faz pensar que existe uma participação do homem para o cumprimento da graça salvadora. O homem tem que se arrepender, reconhecer seu estado miserável de pecador, para poder receber o favor imerecido de Deus.
Lutero não está afirmando que o homem não participa em nada da manifestação da graça, mas diz que o homem não pode fazer nada para receber esta graça a não ser se desesperar de si mesmo e crer em Cristo.
Precisamos separar obras (ação), arrependimento (reconhecimento) e fé (confiança). Arrependimento não é visto por Lutero e nem por Paulo como obras e nem como fé. Estas palavras representam três coisas distintas uma da outra.
João Batista separa bem arrependimento e obras quando ele diz: “produzi, pois, frutos dignos do arrependimento,...” (Lc 3:8). Os frutos podem ser chamados de obras, mas elas se manifestam como conseqüência do arrependimento.
Lutero compreendeu que a graça manifesta vida, pois ela leva o ser humano a ter paz em sua consciência. Esta compreensão da graça como vida foi algo experimentado pelo próprio Lutero. Este se viu livre de todo medo que guardava em seu coração com relação a Deus. Começava para Lutero uma nova vida, onde ele podia contemplar a salvação. Que libertação experimentou Lutero e todos aquele que creram no poder deste evangelho! Finalmente suas consciências tinham encontrado paz, pois embora fossem pecadores e incapazes de satisfazerem a Deus, descobriram que não precisavam satisfazer a Deus por meio de obras, mas tão somente crer em Jesus Cristo como o justificador de seus pecados. Diante dessa verdade se viram livres da dominação dos sacerdotes.
Para Lutero, a graça significava libertação de seus medos, do poder dominador dos sacerdotes, da obrigação de se justificar com obras ou pagando altos preços para ser justificado. Sim, a graça era um “favor imerecido” que levava o ser humano a ter nova vida.
  Surge através desta descoberta uma nova era na igreja. Abre-se a porta para a luta da libertação do ser humano. Homens e mulheres buscam se libertar da escravidão do seu ser interior.  Esta nova era continua fazendo com que a teologia busque olhar para o ser humano como indivíduos que necessitam de libertação, seja ela espiritual, emocional, biológica, ou social.
Através de Lutero, a graça se tornou uma manifestação de vida que atinge todo o ser humano.
  1. João Calvino
Para Calvino graça de Deus significa salvação da humanidade pecadora. Deus manifestou seu “favor” alcançando a humanidade que já estava condenada à morte eterna. Calvino afirma que a humanidade que se encontrava condenada foi absolvida, tornou-se livre para a vida em Cristo Jesus. Foi considerada justa diante do divino juiz.
Segundo John H. Leith, “para Calvino, a predestinação era a maneira mais enfática de dizer que a salvação é trabalho da graça de Deus, assim como a justificação pela graça, através da fé, era a maneira mais enfática de Lutero afirmar a mesma coisa”[8].
Neste sentido, graça se confunde com a justificação, tema este muito trabalhado por Calvino. Ele considerava esta doutrina a principal sobre a qual a religião está fundamentada.
A justificação pela fé é dada ao homem quando:

Excluído da justiça das obras, alcança a justiça pela fé, revestido com a mesma, apresenta-se ante a majestade divina, não como pecador senão como justo. Desta maneira afirmamos, em resumo que nossa justificação é a aceitação com que Deus nos recebe em sua graça e nos tem por justos. E dizemos que consiste na remissão dos pecados e na imputação da justiça de Cristo[9].

Mesmo Calvino afirmando que não há participação do homem na manifestação da graça de Deus, porque ele acreditava na soberania plena de Deus, ele deixa transparecer que há participação do homem no receber esta graça da justificação, nas palavras “alcança a justiça pela fé”. Assim como Lutero, Calvino está deixando claro que o homem nada pode fazer para se justificar ou para receber esta graça de Deus. Concordo com Calvino em número e em gênero. Não há obra que possamos fazer para merecermos qualquer favor de Deus.
Calvino expressa a necessidade de arrependimento (desespero para Lutero). Entendendo que Deus nos justificou em Jesus Cristo para manifestar a glória da sua justiça. Calvino diz que para glorificarmos a Deus é preciso renunciar a toda glória pessoal.
Renunciar a toda glória pessoal para Calvino é reconhecer que não somos nada, que não temos nada a oferecer diante de Deus. “A única coisa que nós temos é a impureza que contamina nossas melhores ações”[10].
Acredito que Calvino foi mal interpretado por causa de sua teologia da predestinação. Calvino acreditava que todos os seres humanos estavam condenados à segunda morte. Não havia para o ser humano como se justificar diante de Deus. Dentro dessa visão, surge a graça como manifestação de vida: Deus manifestou sua graça escolhendo alguns destes seres humanos para a vida eterna. Para Calvino estes escolhidos foram predestinados à salvação, de forma que não poderiam rejeitar a graça de Deus. Portanto, para estes, a graça era eficaz.
Muitos entendem que Calvino estava isentando o homem de qualquer responsabilidade com relação à vida futura através de sua teologia. Compreende-se que para Calvino e seus seguidores, o homem para ser salvo não depende de sua fé e nem de sua vontade.
Se Calvino realmente pensava isto, ele não conseguiu formular sua teologia com eficácia.
Veja o que diz Calvino em seu comentário, do capítulo dez e verso dez, da carta aos Romanos:

Esta passagem pode ser-nos útil na compreensão da justificação pela fé. Ele revela que obtemos a justiça quando abraçamos a benevolência divina que nos é oferecida no evangelho. Somos, pois, justificados quando cremos que Deus, em Cristo, nos é gracioso[11].

Destacamos aqui dois termos usados por Calvino: quando abraçamos e quando cremos. Estas expressões por si só já demonstram uma dependência de uma ação humana quando. Quando o homem abraçar ou quando o homem crer. Abraçar esta é uma palavra que só pode ser usada associada como uma atitude humana.
Considerando também as palavras já citadas por Calvino “alcança a justiça pela fé” fica um buraco inexplicável em sua teologia. O próprio termo “alcança” nos dá a idéia novamente de um esforço humano. E quando Calvino afirma que precisamos “renunciar a toda glória pessoal” abre outra porta para mostrar que o homem deve pelo menos reconhecer seu estado pecador. Como podemos renunciar aquilo que não (re)conhecemos?
Se a salvação é só para os eleitos, estes não precisam (re)conhecer nada, pois a graça eficaz os alcançaria de qualquer forma. Neste sentido, o homem só (re)conheceria seu estado após já ter sido alcançado pela graça. Então, por que Calvino diz que o ser humano “alcança a justiça pela fé” e por que este deve “renunciar a toda glória”? Se ele só consegue enxergar seu estado de pecado após ter recebido a graça; ele não precisa de fé, não precisa abraçar a benevolência de Deus e nem de renunciar qualquer glória, uma vez que já possui a graça e esta não pode ser lhe tirada.
Se estes precisam (re)conhecer algo, precisam abraçar algo, então a graça eficaz não seria uma garantia total de sua salvação, ou, ela só pode ser chamada de eficaz a partir do momento que o ser humano (re)conhece seu estado pecaminoso e se entrega a Cristo como salvador. Então a graça está condicionada à resposta do homem.
Talvez surja a idéia de que os eleitos são aqueles que Deus em sua Onisciência sabia que iriam responder positivamente a este apelo da graça. Mas aí fica a idéia de que Deus não tinha poder para escolher a quem quisesse e sim escolher aqueles que o quisessem. Este é o pensamento dos arminianos.
Para compreendermos melhor a diferença entre a compreensão arminista e calvinista, cito as palavras de Samuel Falcão:

A diferença entre os arminianos e calvinistas, com referência a esta doutrina de eleição para a salvação, é que os primeiros ensinam eleição condicional, ao passo que os últimos sustentam que a eleição é incondicional, isto é, os arminianos ensinam que Deus elege aqueles que previu iriam aceitar sua oferta de salvação, creriam na mensagem do Evangelho e perseverariam na fé e na obediência até o fim. Os calvinistas ensinam que a eleição de Deus não depende absolutamente do homem, mas unicamente da vontade da graça e do poder soberanos do Senhor[12].

Talvez nosso problema seja dialético (Calvino não soube usar as palavras certas para explicar sua teologia?) ou falta de compreensão da teologia de Calvino. Ou quem sabe devemos reconhecer que a teologia de Calvino não consegue responder a todas as perguntas feitas pelo homem, e que a própria Bíblia apresenta dificuldades para sua teologia. Como podemos ler salvação somente dos escolhidos quando a Bíblia diz:
Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna (Jo 3:16). Deus amou ao mundo e não somente os escolhidos e a manifestação de sua graça salvadora é para todo o que crê em Jesus. Se crer significa nesta passagem, somente aqueles que são escolhidos, precisamos então definir o que é crer. Crer significa confiar totalmente. Se o homem confia, não porque partiu dele, então ele não crê, mas apenas responde a um comando interno, como um animal responde a um instinto. Confiança é algo que implica em relação humana, num ato de dar-se voluntariamente. Neste sentido, depende do homem.
O qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade (1 Tm 2:4). Paulo diz que o desejo de Deus é que todos cheguem ao pleno conhecimento da salvação. Se Deus tem este desejo porque não o pode realizar? Se Deus não trabalha de forma cooperativa com o homem por que fica sofrendo? Se alguém deseja algo e não consegue realizar seu desejo, ele sofre, entristece por não ver aquilo realizado; a não ser que desista de seu desejo.
Ora, é para esse fim que labutamos e nos esforçamos sobremodo, porquanto temos posto a nossa esperança no Deus vivo, Salvador de todos os homens, especialmente dos fiéis (1 Tm 4:10). Salvador de todos os homens, significa salvador de toda raça humana. Então Cristo não morreu apenas pelos escolhidos, mas por toda raça humana. Especialmente dos fiéis nos faz concluir que Deus não deu sua vida apenas pelos fiéis.
Se fizéssemos uma re-leitura do Antigo Testamento perceberíamos que Deus escolheu Abraão para que através dele todas as famílias da terra fossem abençoadas (Gn 12:3). Em Êxodo 19:5-6 lemos que Deus escolheu Israel para serem sua propriedade peculiar com o fim de serem sacerdotes diante de Deus, o que implica que seriam instrumentos para mediar o amor de Deus a todas as outras nações. No livro de Josué 6:25, Raabe, uma prostituta é salva embora não fizesse parte da nação eleita, temos Rute, os ninivitas e outros exemplos bíblicos que não constam como parte do povo eleito, entretanto constam como alcançados pela graça de Deus. Não deveríamos compreender que Deus elegeu alguns com o fim de salvar a humanidade?
Na verdade Calvino não tenta responder as perguntas dos homens. Para ele o ser humano deve aceitar os decretos de Deus (predestinação) ainda que não consigam compreendê-los. Calvino não podendo responder a todos os questionamentos, usa as palavras de Paulo para se defender: “Quem és tu ó homem para discutires com Deus?”.
Embora Calvino cresse que a salvação dependia totalmente de Deus, ele falava e escrevia como se dependesse em parte do homem.
A teologia de Calvino sobre a graça nos leva afirmar que ela é entendida por ele como manifestação de vida. Para Calvino, todos os homens estavam condenados e a manifestação da graça trouxe vida e esperança à raça humana.
Por outro lado, se pensarmos que os não-eleitos estão condenados, isso implicaria que Deus não manifestou Sua graça a estes. Deus não favoreceu a estes por que motivo? Não sabemos responder a isso, mas fica estranho pensarmos que Deus deseja que todos sejam salvos, no entanto, não salvou. Isto demonstra uma incapacidade de Deus para salvar. Entendo que a única resposta é a compreensão de que Deus trabalha em cooperação com o homem.






CAPITULO IV

A GRAÇA NA VISÃO DA TEOLOGIA DA AMÉRICA LATINA


  1. Leonardo Boff
Leonardo Boff em seu livro Graça e Experiência Humana enfatiza que a graça têm sido estudada e sistematizada, contudo ela não têm sido tratada como algo presente e experimentável. Boff procura trazer aos seus leitores o conhecimento de que a graça de Deus pode ser experimentada hoje e não é apenas uma matéria a ser estuda nos centros acadêmicos.
De que forma essa graça se manifesta hoje, para quem e como podemos prová-la? Estas são respostas que Leonardo Boff tenta responder em seu livro.
Primeiramente, gostaria de ressaltar que Boff entende graça através de suas conseqüências, como fé, esperança, amor (capacidade de autocomunicar), amizade, paz, alegria, salvação, libertação, justificação, etc.
Devemos compreender que Boff, quando associa a graça à sua manifestação, está dizendo que a graça só existe quando o homem pode percebê-la. Não podemos concordar com este pensamento porque Deus é amor, Deus é vida, Deus é graça, Deus é santo antes mesmo do homem existir e continuará sendo mesmo que o homem não se dê conta disso. A graça é uma realidade presente hoje, mesmo que o ser humano não a experimente pessoalmente.
Contudo Boff têm razão em dizer que nós homens só conseguimos enxergar a graça através de suas manifestações. Somente experimentando a graça o homem pode ter nova vida e compreensão do que é graça.
Uma vez que Boff enxerga a graça através de suas conseqüências, ele diz que ela pode ser experimentada através da libertação dos oprimidos, da justificação de nossa sociedade, do amor (capacidade de autocomunicar) ao próximo, em fim a graça é vista como um agente transformador do mundo. Este agente, a graça, é o próprio Deus transformando o mundo. Boff diz que a [13]“graça é a presença e atuação de Deus no mundo”. Neste sentido Boff afirma que a graça só e graça quando manifestada.

[14]Graça só é graça para nós hoje, se ela emergir de dentro deste nosso mundo no qual estamos imersos. Só assim ela é significativa e representa aquilo que na linguagem cristã quer significar o acontecimento do Amor livre de Deus e a presença no mundo do Deus libertador de uma situação humana deturpada e libertador para uma situação humana plenificada e divinizada.

Estas palavras de Boff nos chamam a atenção para a compreensão da manifestação da graça. Sabemos que a graça vem de Deus, como um favor imerecido, buscando restaurar a criação a vida original. A pergunta que nos surge é: por que meio Deus manifesta esta graça?
Leonardo Boff acredita que a graça está no mundo, ainda que o homem não saiba, ela está no mundo. A graça não é propriedade exclusiva da Igreja. Boff acredita na universalização da graça, isto é, a graça está de uma certa forma em todos e em tudo da mesma forma que ele entende que Deus está em todos e em tudo.
Boff diz que a religião, seja ela qual for, comunica a graça, o perdão e o futuro que Deus promete aos homens.

[15]A despeito do todas as ambigüidades que se possam apontar nas religiões do mundo (e também na religião bíblica e cristã), elas constituem os veículos comunicadores da graça, do perdão e do futuro que Deus promete aos homens.
...Assim Chuang-tzu, Lao-tze, Buda, Gandhi e outros no mundo oriental ou as cartas de Sêneca, as máximas estóicas de Marco Aurélio, a filosofia de Platão no mundo ocidental podem e devem, pela fé, ser consideradas veículos comunicadores da graça.

Fico pensando como isto pode ser possível dentro de uma religião que não reconhece a Jesus Cristo como Filho de Deus, sendo Jesus a personificação da graça de Deus como nos comunica o Novo Testamento.
Não podemos pensar na graça apenas como manifestação de vida para este mundo, mas devemos olhar para a nova vida prometida em Cristo. Desta forma não há manifestação da graça fora de Cristo, pois fora de Cristo há condenação e morte. Se a graça significar vida apenas enquanto houver vida em nosso corpo físico, ela perde o sentido de manifestação do amor imensurável de Deus. Pois ela acabaria junto com o término de nossa existência. Portanto devemos olhar a graça além desta vida, enxergar a manifestação do favor de Deus para com a humanidade como um ato passado, presente e futuro. Que futuro pode haver fora de Cristo? Como posso afirmar que uma religião é manifestação da graça de Deus se essa me leva à morte espiritual?
Graça é manifestação de nova vida e não de morte. Graça deve ser entendida com o fim de gerar vida.
Neste sentido podemos afirmar que o cativeiro na Babilônia foi manifestação da graça de Deus para com o povo de Israel. Embora aos olhos do povo estar cativo era mau. O estado em que se encontravam fazia parte do projeto de Deus para dar-lhes vida.
Todos somos participantes da graça, a esta graça, chamamos Graça Comum. Podemos compreender a graça comum olhando para a natureza: o sol nasce para todos, a chuva que cai molha o terreno do meu vizinho também. Neste caso, todos recebem a vida gerada deste favor de Deus. Dentro desta visão, também podemos afirmar que a falta de graça (des-graça) também vem sobre todos. Quando o mundo é castigado por terremotos, enchentes, vendavais, e outros fenômenos da natureza não são somente os ímpios que sofrem, também os fiéis a Deus. Vivemos neste mundo experiências de graça e des-graça.
Dizer que todas religiões manifestam a graça seria um exagero desta visão da graça comum, pois seu fim não é gerar nova vida eterna e sim, morte eterna.
Nem todos são participantes da Graça Especial. Chamamos de graça especial o “favor” de Deus que leva o ser humano a vida eterna prometida em Cristo Jesus.
Boff discute em seu livro a ação de Deus na graça e a ação do homem na graça. Devemos entender essa discussão dentro da visão da graça especial. Que parte cabe a Deus na “graça” e que parte cabe ao homem na “graça”? Essa é uma discussão que está presente entre os grandes teólogos há muitos anos. Boff em seu livro acaba limitando a graça de Deus a resposta do homem. Para Boff, o homem pode ser agraciado se responder positivamente ao chamado de Deus. Neste sentido, a graça está presa à resposta do homem.
Embora eu seja um pastor presbiteriano trago dentro de mim uma inquietação diante dos textos das expressões de João Batista e de Jesus “arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus” (Mt 3:2; 4:17). Estas palavras foram reforçadas também pelos apóstolos Pedro e Paulo conforme descreve Lucas (At 2:38; 3:19; 17:30). Por anos tenho ouvido que ao homem nada cabe fazer para sua salvação. A salvação é manifestação da graça de Deus, e não há dúvida nenhuma quanto a isso. Entretanto, não cabe ao homem responder ao apelo do Espírito Santo (Jo 16:8) que nos convence do pecado, da justiça e do juízo. De forma que uma vez convencidos venhamos nos arrepender. Ou não é necessário o arrependimento? Por que então Jesus manda nos arrepender?
Nossa tradição reformada também nos afirma que a fé é dom de Deus (Ef 2:8). Este texto tem sido mal interpretado, precisamos fazer uma exegese séria deste texto. O dom de Deus não é a fé, mas a salvação. A salvação nos foi dado como “favor imerecido” de forma que não vem de obras, por isso ela é um dom de Deus a nós. Para Paulo, a fé tinha o sentido de abandonar toda tentativa de alcançar a salvação por méritos. Era aceitar confiante o dom de Deus em Cristo.
Boff talvez tenha razão em dizer que o homem tem parte na aceitação da graça, mas não podemos dizer que o homem pode manipular a graça de Deus. Deus deu a graça em Cristo Jesus a todos os homens. A graça já foi dada por Deus e isto é um fato consumado. Portanto o homem não tem nenhuma participação na graça.
O homem tem participação na resposta à graça que já foi dada? Esta é a pergunta que Boff discute em seu livro. Enquanto Calvino afirma que mesmo a aceitação da graça é obra da graça de Deus, Boff demonstra que o homem é livre para aceitar esta graça.
Existe uma resposta do homem à graça de Deus, o homem convencido pelo Espírito Santo, percebe seu estado pecaminoso, enxerga seu futuro assustador e clama arrependido a Deus pela sua salvação.
Gostaria de suscitar algumas perguntas: Será que sempre que o Espírito convence alguém, está se converte? Convencer significa converter? Pode alguém ser convencido e continuar no mesmo caminho? Se convencer significa converter, voltamos para o mesmo problema que já trabalhamos no estudo de Calvino.
Como pode o homem se perder quando a Palavra nos diz que Deus “deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1Tm 2:4)? Por que Deus não tem poder para convencer todos os homens? Aqui voltamos novamente para a pergunta que fizemos quando falamos de Calvino e sua teologia da predestinação.
Só posso entender que há uma participação do homem neste processo, e que esta participação está vinculada com o arrependimento, que leva o homem a lançar-se nos braços de Jesus. Chegar ao pleno conhecimento da verdade, assim como ser convencido da verdade do pecado, da justiça e do juízo, não significa sempre arrependimento por parte do homem.









CAPITULO V
A IMPLICAÇÃO DA GRAÇA COMO MANIFESTAÇÃO DE VIDA PARA OS NOSSOS DIAS

Se compreendermos a graça como manifestação de vida, seremos obrigados a olhar nosso ministério como um agente que promova vida. Tudo que fazemos ou que pretendemos fazer deve levar o ser humano a provar a vida. Jesus disse “eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10:10).

1.      Que produza vida em nós
Muitas vezes, corremos tanto para fazer a obra de Deus que não percebemos que estamos morrendo. Faz parte de nossa natureza que a cada dia nosso corpo se corrompa um pouco mais de tal forma que um dia venhamos a morrer. Entretanto, quando nos fatigamos demasiadamente, sem usufruir o dia do descanso estamos condenando nosso corpo a uma morte mais rápida.
Graça significa manifestação de vida e o ministério nos foi dado pela graça de Deus e deve produzir a começar por nós lideres manifestação de vida.
Não é pecado descansar, mas sim o não descansar. Afinal, o sábado foi feito para o homem ou o homem para o sábado.
Muitas são os lideres que têm experimentado a morte, a decretação da desgraça em seus casamentos, no relacionamento com seus filhos e familiares. Que dificuldade é para estes lideres falar da graça vivendo na des-graça em seus lares.
Por isso, é importante que o líder saiba que em seu ministério cada vida alcançada é manifestação da graça de Deus e não de seu esforço desumano. É necessário que o líder compreenda que ele é um instrumento para a salvação dos pecadores, pela graça, e que ele não é o salvador do mundo. É importante que o líder saiba que além dele, Deus tem muitos outros homens trabalhando para a salvação e manifestação de Sua graça.
Entenda que o ministério que Deus lhe deu é manifestação de Sua graça, portanto este deve produzir vida, a começar em você. Se a morte está rondando sua vida, pare e veja onde a des-graça (falta de manifestação de vida) está alojada e clame pela graça de Deus.

2.      Que produza vida em nossa comunidade
Como líderes, devemos produzir não só vida em nossos lares, mas devemos levar nossa comunidade a provar a graça de Deus.
Para que esta graça se manifeste em nossa comunidade, é importante que nós, lideres, enfatizemos em nossa comunidade a comunhão (koinonia), a pregação (querigma), o serviço (diaconia) e o testemunho (martiria)[16].
Isso se deve porque na comunhão (koinonia) dos discípulos de Jesus se constitui a igreja, no reconhecimento de seu senhorio, a igreja é impulsionada para a pregação (querigma), ao servir (diaconia) a igreja produz uma nova condição de vida a seus membros, podendo estes testemunhar (martiria) ao mundo a graça de Deus.
Estes elementos dependem um do outro, estão ligados, e juntos promovem a manifestação da graça de Deus, promovem vida, produzem justiça e paz para os que pertencem a comunidade, isto é para aqueles que confessam que Jesus é o Senhor.
A graça de Deus é manifestada através da comunhão, da pregação, do serviço e do testemunho.
Não podemos nos esquecer que comunhão, pregação, serviço e testemunho devem manifestar para a comunidade vida. Isto significa que através destes quatro símbolos, a igreja deve acolher e não julgar, orientar e não condenar o pecador.
A comunidade deve ser o lugar onde o cristão aprende a viver em comunhão com o pecador, sem pecar; onde o cristão aprende a pregar ao pecador, sem insultá-lo; onde o cristão aprende a servir o pecador, sem esperar nada em troca; onde o cristão aprende a testemunhar.
Com isso quero dizer que a comunidade deve ensinar o crente a manifestar a graça de Deus a todos.

3.      Que produza vida na sociedade
A Igreja existe para fora. Precisamos nos conscientizar dessa verdade, pois o mundo precisa conhecer a Deus como aquele que manifesta vida, como Deus da graça.
A Igreja tem um papel importante nesta tarefa, este ó quarto elemento que Van Engen coloca no capitulo seis de seu livro já citado anteriormente.
O quarto elemento “o testemunho” é muito importante, pois é através dele que outros serão inseridos na comunidade. O testemunho implica na pregação da Palavra, na demonstração da nova vida que possuímos agora que confessamos Jesus como Senhor.
O testemunho nos leva para fora da igreja, para fora da comunidade. Nos faz olhar para aqueles que não confessam a Jesus como Senhor.
Segundo Van Engen “fica claro que a comunidade de coinonia amorosa, uma vida em comum, uma proclamação querigmatica de que Jesus é o Senhor, um compartilhamento com os necessitados por meio de um ministério diaconal de amor, todos juntos geram a martiria[17].
Devemos servir a humanidade de forma que possamos levá-los a viver uma vida de justiça, de paz, de alegria. Precisamos lutar pela liberdade de cada individuo a fim de que consigamos desta forma atingir o todo. Nosso testemunho de nova vida deve produzir na sociedade a visão de que se pode viver uma nova vida e levá-los a desejar esta nova vida.
O líder deve transmitir à sua igreja a visão de que são uma comunidade missionária.  Como discípulos do Rei Jesus devem promover a vida em seu sentido mais amplo.
Assim manifestaremos a vida, de forma que poderemos dizer que a graça de Deus está presente no mundo lutando contra a des-graça.
Somente na compreensão de que a graça deve produzir vida, a igreja será um lugar de refúgio para todos que se encontram desesperados, marginalizados, oprimidos pela sociedade. Somente nesta visão, as pessoas serão capazes de procurar na igreja um lugar para desabafarem sem serem condenadas, pois a igreja não estará ali para julgar, mas para primeiramente agraciá-las com vida.




















 

CONCLUSÃO


Graça é manifestação de vida. E, quando falamos de vida, devemos pensar no sentido mais puro e verdadeiro desta palavra. Vida significa libertação, só onde há liberdade para se viver pode haver vida. Vida significa paz, só onde há paz (shalom) interior e exterior há vida. Vida significa alegria, sem alegria não há expressão de vida. Vida significa justiça, sem justiça o homem apenas sonha em viver.
Podemos crer que onde há manifestação de vida, Deus está presente. Sempre que alguém luta pela justiça, pela paz, pela vida está manifestando a graça. Toda luta pela vida é a luta de Deus por um mundo melhor. Toda luta pela vida é manifestação da graça de Deus.
Vivemos entre a graça e a des-graça. Estamos sempre num conflito entre salvar ou matar, libertar ou aprisionar, amar ou odiar nosso mundo.
Precisamos mostrar que Deus é graça, isto significa que Deus é manifestação de vida, e que seu projeto para a humanidade, para a terra, para o cosmo é um projeto de vida. Então devemos lutar pela vida a começar por nós, em nossa comunidade, em nossa sociedade até alcançarmos o mundo.
Quero encerrar este trabalho com as palavras de John H. Leith:

A reflexão teológica como explicação da fé pela qual se vive é um trabalho humano e está sujeita a todas as limitações da existência humana. Por esta razão, não existe teologia perfeita. A finitude humana significa que nenhum teólogo consegue esgotar o sentido da fé cristã. A limitação temporal quer dizer que cada teologia é apropriada para um tempo e lugar particular, devendo ser revisada à medida que o tempo muda. O pecado, bem como a limitação de qualquer perspectiva humana, significa que toda teologia é, em certa medida, uma ideologia, ou seja, uma forma de justificar a própria situação e as intenções do teólogo[18].





































 

 

BIBLIOGRAFIA


BOFF, Leonardo. Graça e experiência humana. Petrópolis: Editora Vozes, 1998

CRABTREE, A. R. Teologia do velho testamento. Rio de Janeiro: JUERP, 1991

CALVINO, João. As institutas da religião cristã – um resumo. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1984

_______. Comentário à sagrada escritura – exposição de romanos. São Paulo: Edições Paracletos, 1997

_______. Institución de la religión cristiana. Países Bajos: Nueva Creación, 1986

CHARLES, Van Engen. Povo missionário, povo de Deus. São Paulo: Edições Vida Nova, 1996

FALCÃO, Samuel. Escolhidos em cristo. Cambuci: Editora Cultura Cristã, 1999

LEITH, John H. A tradição reformada. São Paulo: Pendão Real, 1996

LUTERO, M. Obras selecionadas. São Leopoldo / Porto Alegre: Editora Sinodal e Concórdia Editora, 1987 Vol. 1

SCHNEIDES, T. (org.). Manual de dogmática. Petrópolis: Vozes, 2001, Vol 2

STRINGER, J. H. Graça / DOUGLAS J. D. O novo dicionário da bíblia. São Paulo: Ed Vida
Nova, 1991 Vol 1


[1]SCHNEIDES, T. (org.). Manual de dogmática. Petrópolis: Vozes, 2001, Vol 2, pág. 15
[2] J. H. STRINGER, Graça / J. D. DOUGLAS.  O novo dicionário da bíblia, pág. 681. J. H. Stringer, M.A., B.D., Ministro Metodista em Ventnor, Ilha de Wight.
[3] T. SCHNEIDES, op. cit., pág.15
[4] Leonardo BOFF, Graça E Experiência Humana, pág. 22
[5] T. SCHNEIDES, op. cit., pág.18
[6] Martinho LUTERO, Obras selecionadas. Vol. 1, pág. 36
[7] Ibidem – pág. 49 – defesa da tese 18
[8]  John H. LEITH,  A tradição reformada, pág. 156
[9] Juan CALVINO, Institución de la religión cristiana, pag. 558.
[10] Joao CALVINO,  As institutas da religião cristã – um resumo, pag. 256
[11] João CALVINO, Comentário à sagrada escritura – exposição de romanos, pág. 367
[12] Samuel FALCÃO, Escolhidos em cristo, pág. 115 e 116.
[13] Leonardo BOFF, op. Cit., pág. 99
[14] Ibid., pág. 67
[15] Ibid., pág 190
[16] Este pensamento foi extraído do livro Povo Missionário, Povo de Deus, de Charles Van Engen, capitulo 6.
[17] Van Engen CHARLES, Povo missionário, povo de Deus, pág. 123.
[18] John H. LEITH, op. cit., pág. 142

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