O Pentateuco
Nos relatos do Antigo
Testamento presenciamos a história do povo hebreu durante quase dois mil anos,
desde a vinda de Abraão à Palestina até a instalação da dinastia dos Hasmoneus
(cerca dos séc. XX-11 a .c):
história essa em conexão, ora maior ora menor, ora direta ora indiretamente,
com a dos povos vizinhos, sobretudo dos grandes impérios, entre os quais a
Palestina jazia como ponte: ao sul, o Egito; ao norte, sucessivamente,
Babilônia, a Assíria, a Pérsia e a Síria. Constituíam eles outros tantos
centros de civilização, que se irradiava entre os povos submetidos ou vizinhos,
formando uma vasta unidade cultural. No meio dessa civilização comum movia-se o
povo de Israel, sofrendo a sua influência. Nas artes e na, indústria, Israel
jamais desenvolveu uma civilização própria; ficou devedor ao estrangeiro, como
também a sua língua e literatura trazem o cunho da origem comum ou do prestígio
de outros povos socialmente mais evoluídos. No entanto, a ausência de originalidade
e independência de civilização material, põe em muito maior relevo o valor das
instituições religiosas e morais, elementos básicos da civilização genuína e
completa que foram glória exclusiva desse povo eleito.
O Antigo Testamento é
uma obra verdadeiramente divina porque inspirada por Deus e porque nos
apresenta, pode-se dizer, em cada uma de suas páginas, a ação de Deus sobre os
homens. Ao mesmo tempo, porém, é uma obra profundamente humana, porque
destinada aos homens, fala uma linguagem humana e nos apresenta, na sua
história, os homens tais quais são, com suas deficiências e rebeldias contra os
desígnios divinos. Não costuma encobrir as faltas dos seus heróis; Davi, por
exemplo, de quem narra os pormenores do adultério e do homicídio (2 Sam 11).
Mas ao lado do escândalo aparece a correção. Que há de mais edificante do que a
santa ousadia de Natan em lançar à face de seu soberano o duplo delito, do que
o arrependimento e a humilde confissão de Davi, o perdão da culpa, seguido da
execução dum castigo da parte de Deus? (2Sam 12). Outras vezes o pecado é
censurado mais abertamente (Gên 38:9-10). Só os fariseus poderiam
escandalizar-se com tais narrativas, motivos de ensinamento! Além disso, quão
poucos são eles em comparação com tantos exemplos de nobres virtudes! São
apenas sombras humanas a dar maior realce às luzes divinas da história sagrada.
As não poucas cenas de sangue que ela relata, não passam dum reflexo daqueles
tempos rudes e ferozes. Também os anais de outros povos orientais estão
repletos delas, distingüindo-se os dos hebreus até por um maior senso de
humanitarismo; os reis de Israel gozavam de fama universal de clemência (1 Rs
20:31).
A
relativa brandura dos hebreus derivava da legislação que Deus lhes dera por intermédio
de Moisés. A pena de morte é aplicada mais raramente do que no código de
Hamurabi, e quase só por meio de apedrejamento. Reconhece a lei de talião, em
voga nos costumes dos povos, mas a mitiga (Ex 21:23, 25:28-32). Assim em outras
asperezas (vingança do sangue) ou relaxamento de costumes (poligamia,
divórcio)a lei, encontrando costumes inveterados e não podendo desarraigá-los
totalmente, intervém para os refrear e regulamentar (cf: Mt 19:8). Doutra
parte, impõe os deveres de humanitarismo também para com o próprio adversário
(Êx 23:4-5) e estabelece a medida da mútua benevolência, com o preceito: "Amarás
o teu próximo como a ti mesmo" (Lev 19:18), donde a norma: "Não
faças aos outros o que não te agrada" (Tob 4:16). Para com os
estrangeiros, as viúvas, os órfãos, em suma, os mais necessitados, recomenda
considerações especiais (Ex 22:21-23; Dt passim). Muitas vezes o próprio Deus,
especialmente pela pregação dos profetas, faz-se seu advogado e protetor.
Contra o abuso da escravidão, praga da sociedade antiga, a lei mosaica, além de
múltiplas restrições (Ex 21:1-11; Lev 25:39-45; Dt 15:12-18), já defende o
princípio de igualdade dos homens perante Deus (Lev 25:42). Nada disso se
encontra em outros códigos orientais, sem falar na genuína doutrina religiosa,
própria do Antigo Testamento, que também é fator autêntico de verdadeira
civilização. Por outro lado, as suas mais nobres eminências o Antigo Testamento
as atinge nos seus profetas, figuras grandiosas de poetas e de heróis.
Em
comparação com a sublime doutrina evangélica, a lei antiga, evidentemente, é
bem imperfeita; para aqueles tempos e povos antigos, porém, era uma lei santa,
que trazia em si os germes de um pleno aperfeiçoamento. Era uma instituição
religiosa preparatória para um regulamento definitivo, que devia ser trazido
pelo Messias, por Cristo. S.Paulo, com razão (Gál 3:24), comparou a lei mosaica
ao pedagogo, que conduz os discípulos à escala do Mestre, de Cristo. As
próprias falhas do Antigo Testamento levavam a desejar o Senhor e Salvador, cujo
advento fora anunciado pelos profetas.
Observa-se,
pois, um progresso vital do Antigo ao Novo Testamento, como do embrião que se
desenvolve num organismo perfeito. Deste caráter do Antigo Testamento e desta
sua relação com o Novo, deriva uma conseqüência importante para a sua correta
interpretação, pois as suas instituições deviam ter alguma semelhança com as do
Novo; eram as suas imagens antecipadas. Analogamente quanto aos fatos
históricos e às pessoas desse "drama" divino, que no Novo Testamento
recebem a sua conclusão. Os apóstolos e o próprio Jesus (Mt 12:40; Jo 3:14,
6:32) indicaram-nos algumas dessas imagens antecipadas que, a exemplo de
S.Paulo, costumam chamar-se tipos ou figuras; o objeto por elas vislumbrado
chama-se antítipo ou figurado. Daí se segue que no Antigo Testamento, além do
sentido das palavras chamado verbal ou literal, há que reconhecer um sentido
das coisas, chamado real ou típico, e às vezes menos felizmente, místico e
alegórico. Entre estas duas categorias de sentido há conexão, mas ao mesmo
tempo grande diferença. O sentido literal (que pode ser próprio ou impróprio,
isto é, metafórico) não pode faltar em nenhum dito da Escritura e acha-se
freqüentemente sem o típico, do qual é fundamento necessário. O típico, ao
invés, jamais pode disjungir-se do literal e não existe em toda parte, mas
tão-somente onde há verdadeira semelhança e relação com algo de análogo no Novo
Testamento.
A
autêntica originalidade do Antigo Testamento consiste na sua doutrina religiosa
e moral, cujo centro ocupa-o a idéia do monoteísmo. Na expressão artística do
pensamento, porém, não difere muito dos produtos das línguas e literaturas
irmãs, em particular da acádica e da fenícia (ugarítica). A língua hebraica,
bastante parca de conjunções subordinativas, costuma exprimir-se em proposições
breves coordenadas com a simples aditiva: e... e... Resulta daí certa dureza e
monotonia, sobretudo na parte narrativa, que as versões modernas devem atenuar,
ligando e construindo à nossa maneira usual.
O
estilo hebraico é imaginoso e concreto; exprime-se com metáforas ousadas e
imagens exuberantes, apresentando as coisas abstratas e espirituais com termos
realistas capazes de chocar nossos costumes e gostos mais refinados. Em
particular fala de Deus e de suas ações em termos de atividade humana: mãos,
olhos, ouvidos (antropomorfismo), ficar, sentido, comover-se, arrepender-se
(antropopatismos), e semelhantes. Que o leitor não se admire disso, nem se
deixe levar a erro. Sob a aparência muitas vezes áspera, oculta-se sempre um
pensamento nobre e puro.
Sem pretender expor
aqui toda a complicada questão da lista dos Livros que no decorrer de quinze
séculos foram sendo inspirados por Deus, restringimo-nos a menciona-los de
acordo com a divisão comumente aceita atualmente nos exemplares da Bíblia
editados conforme a Vulgata latina:
Antigo
Testamento
|
Novo
Testamento
|
Livros
Historicos
O
Pentateuco ou a obra de Moisés: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio,
Josué, Juizes, Rute, Samuel I e II, Paralipômenos ou Crônicas I e II, Reis I
e II, Esdras Neemias, Tobias, Judite, Ester, Macabeus I e II
|
Livros
Historicos
Os
Evangelhos: São Mateus, São Marcos, São Lucas, São João, Atos dos apóstolos
|
Livros
Sapienciais ou Epistolares
Jó,
Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Sabedoria,
Eclesiástico
|
Livros
Sapienciais ou Epistolares
Epistolas
aos Romanos, Coríntios I e II, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses
Tessalonissenses I e II, Timóteo I e II, Tito, Filemon, Hebreus; Epistolas de
São Tiago, São Pedro I e II, São Judas, São João I, II e II
|
Livros
Proféticos
Isaias,
Jeremias, Lamentações, Baruque, Ezequiel, Daniel.
Os
doze profetas menores: , Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias., Naum,
Abacuque, Safonias., , Ageu, Zacarias e Malaquias.
|
Livros
Proféticos
O
Apocalipse
|
Essa
lista dos Livros inspirados é a que se acha na tradução grega dos LXX e que foi
adotada pela Igreja desde os primeiros séculos. Foi essa Bíblia grega a que os
Apóstolos citaram e espalharam como contendo a palavra de Deus. Entretanto os
judeus na Palestina não adotavam todos esses Livros como inspirados. Na sua
lista não figuravam os Livros de Tobias e Judite, os dois Livros de Macabeus,
os Livros da Sabedoria e Eclesiástico, bem como o Livro de Baruque, mais alguns
poucos trechos dos livros de Ester e de Daniel.
Ainda
hoje os judeus em suas
Bíblias hebraicas não lêem esses Livros, nem temem conta de
inspirados. Baseando-se nesse cânon hebraico, os protestantes também não os
inserem nas suas edições da Bíblia.
O primeiro lugar de
ordem e de honra entre os livros do Antigo Testamento ocupa-o aquele que os,
gregos chamaram Pentateuco, isto é, obra em cinco tomos. Para os hebreus é a
"tora," ou seja, a lei, nome tomado da matéria central. Também os
hebreus o dividiram nos mesmos cinco livros que os gregos, distinguindo-os com
a palavra inicial. Nós usamos exclusivamente os nomes impostos pelos gregos,
que de maneira graciosa lhes caracterizaram o conteúdo: Gênesis, Exodo,
Levítico, Números, Deuteronômio. De fato, o Gênesis narra as origens do
universo e do gênero humano até à formação paulatina do povo de Israel na sua
estada no Egito. O Exodo narra a saída dos israelitas do Egito, conduzidos por
Moisés aos pés do Sinai, para aí receberem de Deus a sua lei religiosa e civil
e se constituírem, por meio de um pacto sagrado ("testamento"), em
peculiar "povo de Deus (Javé)." O Levítico regula o culto religioso à
maneira de ritual, dirigido especialmente aos levitas, que formavam o clero
consagrado ao serviço do santuário. Os Números recebem o nome dos
recenseamentos do povo contidos na primeira parte, estendendo-se, depois, em
referir fatos e providências legislativas correspondentes a cerca de quarenta
anos de vida nômade no deserto da península sinaítica. No Deuteronômio, ou
segunda lei, emanada pelo fim da jornada no deserto, Moisés retoma a legislação
precedente para adaptá-la às novas condições de vida sedentária, em que o povo
viria a se encontrar com a conquista iminente da Palestina.
Neste
rápido apanhado aparece num só lance tanto a unidade como a variedade do
Pentateuco, bem como a sua importância fundamental para a religião antiga e
para a história especial do povo hebreu.
Quem
é o autor do Pentateuco? Desde a mais remota antigüidade foi considerado seu
autor o próprio Moisés, o protagonista dos últimos quatro livros. Já nos livros
posteriores da Bíblia citam-se-lhe várias sentenças com a fórmula: "Está
escrito na lei de Moisés" ou "no livro de Moisés," ou "no
volume da lei de Moisés." Assim, para não falar do livro de Josué, que é a
continuação imediata e como que o complemento do Pentateuco (Jos 8:31, 23:6, em
1Rs 2:3; 2Rs 14:6; 2 Crôn 23:18; 25:4, 35:12; Esdr 3:2, 6:18; Ne 8:1, 10:3,;
13:1; Bar 2:2; Dan 9:11 etc.). Os Evangelhos nos apresentam a convicção de que
Moisés é autor da lei, difundida e radicada entre os judeus; o próprio Jesus,
bem como os apóstolos admitem-na e a confirmam (veja Mt 8:4; Mc 12:26; Lc
20:37; Jo 5:46; At 3:32, 15:21; Rom 10:5 etc.). Entre as testemunhas eloqüentes
da fé judaica figuram Fílon, José Flávio e com maior crédito e ressonância o
Talmud (tratado Baba batra, f. 14,15); entre os cristãos, os Padres da Igreja
são unânimes em
reconhecer Moisés autor do Pentateuco.
Não
contraria essa atribuição o fato de que de Moisés se fale sempre em terceira
pessoa; Xenofonte e Júlio César (para falar só em nomes célebres),fizeram o
mesmo. Nem suscita a menor dificuldade a grande antigüidade de Moisés (cerca do
século XIV a.C.), pois agora sabemos por documentos originais recentemente
descobertos, que naquela época, não só a escrita já era conhecida desde
séculos, mas até o próprio alfabeto fenício-hebraico já fora inventado. Nem
derrogam esta convicção universal a opinião de alguns, já na Idade Média, de
que um outro trecho breve, como os oito últimos versículos do Deuteronômio, que
narram a morte de Moisés, tenha sido acrescentado mais tarde ao Pentateuco. Só
nos tempos modernos é que surgiram dúvidas e negações radicais.
A
partir do século XVIII vem-se fazendo pesquisas perspicazes em três sentidos:
composição, autor, idade do Pentateuco. A composição: é fruto ou não da união
de vários documentos ou de mais escritos originariamente distintos? O autor: de
quem são as partes individuais ou os documentos, quem as reuniu num todo, ou
seja, de quem é a redação definitiva do atual Pentateuco? A idade: quando viveu
cada um dos autores e redatores? São três questões distintas entre si, mas tão
conexas que podem e habitualmente são tratadas como um tema comum: a questão
mosaica. Para responder a tais questões elaboraram-se, no século XIX, vários
sistemas; mas prevaleceu sobre todos, no fim do século, o defendido por K.H.Graf
(1866) e aperfeiçoado por J.Wellhausen(1876-78). Ele distingue no Pentateuco
quatro autores ou escritores diferentes: dois narradores denominados pelo uso
diferente do nome de Deus, um javista (abreviado J), o outro eloísta (E), aos
quais se deve a maior parte dos fatos referidos no Gênesis, Êxodo, Números; um
deuteronomista (D), autor quase exclusivo do Deuteronômio; e um tratado
presbiteral (P) ou código sacerdotal, que compreende todo o Levítico e muitas
partes narrativas de Gênesis, Êxodo e Números. Esses os documentos. Para as
respectivas datas, segundo a supracitada escola, o código sacerdotal (P) seria
posterior ao profeta Ezequiel (primeira metade do século VI a.C.), o
Deuteronômio teria sido composto pouco antes da reforma religiosa de Josias, ou
seja, pelo ano de 621 a .C.,
o eloísta e o javista seriam mais antigos (século VIII e IX). A união de todos
esses escritos no atual Pentateuco ter-se-ia realizado no tempo de Esdras
(século V a.C.). Com tais conclusões, nada mais resta a Moisés do Pentatéuco,
exceto um ou outro fragmento, como o Decálogo (Êx 20), incorporado pelos
primeiros colecionadores das antigas memórias (J E) à própria obra.
Esta
teoria, que se estriba, em boa parte, no princípio filosófico da evolução
aplicado à religião e à história do povo hebreu, se bem que tenha encontrado a
maior aceitação entre os protestantes, teve na própria Alemanha, fortes
opositores entre os críticos de primeira ordem, especialmente no que concerne
às datas atribuídas aos supostos documentos, que, se na verdade é o ponto mais
revolucionário, é também o mais vulnerável de todo o sistema. Para desmenti-lo
neste ponto, surgiram no século XX novas escolas; novas orientações emergiram
do solo, com as escavações no Oriente, importantíssimos documentos, tais como o
código de Hamurabi, rei de Babilônia, os arquivos dos heteus, ou hititas, em
Bogazköy, na Ásia Menor, e os poemas ugaríticos descobertos em Ras Shamra , no litoral
da Síria, para só mencionar os principais. Eles trazem à luz costumes,
instituições e ritos análogos aos do Pentateuco de tempos até mais antigos de
Moisés, e que os críticos julgavam próprios de época mais recente, e nos
revelam fatos que se refletem na vida dos patriarcas (Gên 12:fim), com matizes
que poucos séculos atrás teria sido impossível imaginar. Conseqüentemente, a
brilhante concepção arquitetada por Wellhausen acha-se em plena dissolução.
Resiste ainda tenazmente a análise documentária, ou seja, a distinção de quatro
(ou mais) fontes, de cuja fusão teria resultado o Pentateuco.
Remetendo,
para mais amplas explicações, a tratados especializados de introdução bíblica,
ou a comentários mais desenvolvidos, exporemos aqui os fatos objetivos, sobre
os quais se quer fundamentar a prova da estrutura compósita do Pentateuco, para
indicar depois uma via de solução, e mostrar como esses fatos, quando reduzidos
ao seu justo valor, não impedem que Moisés possa ser verdadeiramente chamado
autor do Pentateuco. A exposição que segue auxiliará o leitor a formar uma
compreensão mais clara destes livros.
Nomes
divinos. Para exprimir a idéia de Deus, a língua hebraica dispõe de muitos
termos. O mais freqüente (1440 vezes no Pentateuco, mais de 6800 em toda a
Bíblia) é "Javé" (ou "Jeová," segundo uma pseudo pronúncia
introduzida entre os séculos XVI e XIX), nome próprio, pessoal.
"'Elohim" (975 vezes no Pentateuco, cerca de 2500 na Bíblia) é nome
de natureza, como se disséssemos: a divindade; gramaticalmente plural (a forma
singular, "'eloah," é poética e existe só 2 vezes no Pentateuco),
quanto ao sentido é singular "El," de igual valor, mas arcaico e
poético, 46 vezes no Pentateuco; "'Adonai" = Senhor, 17 vezes;
"Saddai" = o Onipotente, 9 vezes; "Elion" = o Altíssimo, 6
vezes. A questão mosaica interessam principalmente os dois primeiros. Foi
observado (e o primeiro a dar pelo fato foi o médico católico francês Jean
Astruc em 1756) que no Gênesis e no início do Êxodo capítulos inteiros empregam
exclusivamente, ou quase, o nome Javé; outros, ao invés, com a mesma
exclusividade e constância rezam Eloim. Assim, por exemplo, em Gên 1, lê-se 33
vezes Eloim, e nunca Javé; em Gên 4, uma vez Eloim e 10 vezes Javé (em 2-3
diga-se de passagem, estão juntos Javé e Eloim); em Gên 10:16 nenhum Eloim, 36
Javé (com 2 Adonai); em Gên 17, ao invés, 7 Eloim, 1 Javé; em Gên 24 nenhum
Eloim, 19 Javé; em Gên 30-35 contra 32 Eloim 6 Javé. Na tradução, a Vulgata nem
sempre conserva a distinção.
O
emprego alternado dos dois nomes divinos não é casual; nem é sem motivo que
cessa em Êx 6, predominando depois quase exclusivamente Javé; isso está
manifestamente em relação com o que aí se lê; às gerações precedentes Deus se
revelava como Sadai, pois desconheciam o nome sagrado de Javé, revelado pela
primeira vez a Moisés (veja também Êx 3:13-15). Compreende-se, pois, porque nas
narrativas precedentes o nome usado seja Eloim. Mas, como explicar a presença
de Javé em tantas partes do Gênesis? Depois de Astruc viu-se aqui a prova
tangível de duas fontes ou dois autores diferentes, chamados um eloísta (sigla
E), outro javista (sigla J). Veremos se com razão.
Língua
e estilo. No entanto, estão já todos
concordes que ó argumento dos nomes divinos, por si só, não é suficiente para
se distinguirem solidamente fontes ou autores. Este argumento por isso é
acompanhado de provas subsidiárias. Com efeito, observam eles, à alternação dos
nomes divinos acha-se associada a semelhantes mudanças de vocábulos e
construções. Por exemplo, o ato criador em Gên 1 exprime-se com
"bara," em 2 com "yasar"; os habitantes da Palestina antes
dos hebreus são chamados "cananeus" por J, "amoreus" por E;
a serva, "sifha" por J, "'amah" por E; o patriarca Jacó só
em J toma o nome de Israel. A diversidade prolonga-se além do Gênesis; o monte
onde foi promulgada a lei, em J chamava-se "Sinai," em E
"Horeb"; o sogro de Moisés, em J tem o nome de "Raguel," em
E de "Jetro," e assim por diante. Igualmente, mudando os nomes
divinos, muda o estilo. J é mais abundante e minucioso; condescendente e
popular, não evita os mais chocantes antropomorfismos; vivaz e dramático, tem
um colorido poético, fascinante. E é mais sêco, anedótico, um pouco descuidado.
Observando-se
a diversidade de estilo, descobrem-se mais duas fontes ou autores: um segundo
eloísta que, nas partes legislativas, ocupa-se de preferência do culto
religioso, donde foi chamado sacerdote e autor do "código sacerdotal"
(P); e na seção narrativa ele aprecia as estatísticas, anotações cronológicas,
fórmulas esquemáticas (exemplo seja a narração da criação, Gên 1), a linguagem
precisa e quase pedante do jurista. E, enfim,o pregador que escreveu o
Deuteronômio (D) num estilo amplo, parenético, cheio de afeto humanitário e de
suave insinuação.
Os
duplicados. Para provar a pluralidade de
autores do Pentateuco surge um terceiro argumento, mais valioso do que os dois
antecedentes. Certos acontecimentos - diz-se - e não poucas leis, ocorrem duas
e até três vezes em forma pouco diversa. Assim, a criação do mundo é narrada
duas vezes (Gên 1:1-2,3 e 2:4-24); duas vezes Agar é expulsa da casa de Abraão
(16 e 21); duas vezes acha-se em perigo a honestidade de Sara (12 e 20) e uma
terceira a de Rebeca (26); as duas genealogias de Caim (4) e de Set (5) têm em
comum a maior parte dos nomes; no dilúvio (6-8) são entrelaçadas duas narrações
distintas. Duas vezes é repetida a vocação de Moisés (Ex 3 e 6), a queda do
maná e a pousada das codornizes no deserto (Êx 16 e Núm 11), a prova junto às
águas de Meribá (Ex 17 e Núm 20). O preceito das três solenidades anuais é
repetido até cinco vezes (Êx 23:14-19, 34:23-26; Lev 23; Núm 28; Dt 16).
Variações
nas leis. Entre os duplicados legais,
especial atenção reclamam os que introduzem uma modificação. A mais célebre e
mais grave de tais modificações diz respeito ao lugar do culto (templo e
altar). Ex 20:24 parece permitir a ereção de um altar em qualquer lugar,
memorável por alguma intervenção divina, e aí imolar vítimas sagradas. Lev
17:3-9 não admite nenhuma matança de animal longe do altar, sobre o qual deve
ser derramado o sangue, sendo este altar, em união com o tabernáculo sagrado, o
único para todos. Em Dt 12:1-28, segundo a interpretação comum e óbvia, únicos
são o templo e o altar, e fora deles não é permitido oferecer sacrifícios a
Deus. Permite-se, no entanto, que se matem animais em qualquer lugar, para o
uso comum, derramando-lhes o sangue por terra, ação declarada profana e não
mais sagrada.
A
esta variedade de leis corresponde - observa-se - a prática na história,
conforme vem narrada pela própria Bíblia. De fato, vemos nos livros dos juízes
(6:24-28;13:15-23), de Samuel (1 Sam 6:9-17, 9:12; 2Sam 15:7-12, 24:18-25), dos
Reis (1Rs 3:2-4, 15:14 etc.), altares erigidos e sacrifícios oferecidos quase
por toda parte, segundo as circunstâncias, em harmonia com a lei do Êxodo. Mas,
em 2Rs 22:23, lemos que o rei Josias no sétimo ano de seu reinado (621 a .C.), tendo-se
encontrado como que por acaso, no templo, um exemplar da lei, fêz dela uma
aplicação imediata, que corresponde exatamente às prescrições do Deuteronômio,
particularmente acerca da unicidade do santuário e do altar. Trata-se da
chamada reforma de Josias, precedida, um século antes, por uma tentativa de
Ezequias no mesmo sentido (2 Rs 17:22; 2 Crôn 32:12; Is 36:7).
Esses
os fatos. A supradita escola crítica tira daqui as conseqüências que temos
visto: o Deuteronômio, o primeiro a ostentar a lei do altar único, foi composto
no século VII a.C., pouco antes da reforma de Josias. O Levítico, que já supõe
essa lei, bem como todo ocódigo sacerdotal ao qual pertence, é posterior a
Josias e ao exílio, acrescentado pouco depois. Os dois escritos narrativos, o
Javista e o eloísta, que já circulavam separadamente, o primeiro desde o século
IX na Judéia, o segundo desde o século VIII no reino de Israel, refletem a
prática mais antiga.
Essas
conseqüências sustentam-se? Será que os
fatos acima mencionados, reduzidos aos seus justos limites, não comportam outra
explicação? A solução da questão da autenticidade mosaica do Pentateuco depende
da resposta a esses dois quesitos.
Partindo
do primeiro argumento, o dos nomes divinos, afirmamos antes de mais nada que
nem sempre esteve ao arbítrio do escritor usar Javé ou Eloim; o matiz sutil de
sentido e a associação diferente de idéias contidas nos dois nomes, levam, em
dadas circunstâncias, a usar um com exclusão de outro, e em certas construções
o uso, sem razão aparente, ligou-se exclusivamente a um ou ao outro. É daí que
se diz: "'is Elohim" = homem de Deus, mas "debar Jahvé" =
palavra do Senhor, e não o contrário. O critério dos nomes divinos, portanto,
está sujeito à cautela. Além disso, será que estamos certos de que os nomes
divinos, como figuram no texto atual, são originais, isto é, remontam ao
próprio autor?
A
tese crítica o supõe, e é para ela indispensável. Há, porém, boas razões para
duvidar. A alternação dos nomes divinos não é particularidade do Pentateuco: constata-se
também em outros livros da Bíblia, especialmente no Saltério, onde os primeiros
quarenta e os últimos sessenta salmos usam quase exclusivamente Javé, ao passo
que os demais cinqüenta, do meio, empregam geralmente Eloim. Ora (e isto é de
importância capital), pode-se demonstrar com vários argumentos que também
naqueles salmos, agora eloísticos, originalmente no lugar de Eloim havia Javé.
Mais de um salmo da seção javista é repetido na eloísta (um
"duplicado" análogo aos do Pentateuco) sem outra variante, ou quase,
senão justamente esses nomes divinos. Ora, assim como ninguém duvida que os
salmos assim repetidos, por exemplo, 13 e 52 sejam do mesmo autor, assim também
não está provado que seções javistas e eloístas no Pentateuco devam pertencer a
autores diferentes.
A
língua e o estilo não dependem unicamente do autor, mas também do assunto e do
gênero literário. Santo Agostinho ditava os seus trabalhos dogmáticos de modo
diverso dos seus sermões populares. O Deuteronômio, que, é a promulgação oral de
uma lei, em reunião pública, não pode ter o estilo lapidar de um código gravado
em tábuas, nem as disposições rituais do código sacerdotal têm que se amoldar
às leis civis do código da aliança (Ex cc. 21-23). A variedade, por maior que
seja, não se opõe à unicidade substancial do autor. Além disso, não está
excluído, como veremos, o emprego de fontes e de colaboradores que também
deixam a sua marca na obra definitivamente concluída.
Distinguimos
duas espécies dos chamados duplicados: duas vezes ocorre um fato semelhante
(duplicado real), ou duas vezes narra-se o mesmo fato (duplicado literário);
para a questão de unicidade ou pluralidade de autor, somente a segunda espécie
tem valor. Ora, que, por exemplo, a beleza de Sara tenha excitado duas vezes,
em duas cidades diversas, a cobiça de um déspota oriental (Gên 12 e 20) nada
tem de improvável. É também positivamente verossímil que em quarenta anos mais
de uma vez se tenha verificado a passagem das codornizes nas suas migrações
através do deserto (Ex 16; Núm 11); estes são duplicados reais. Cumpre
examinar, assim, caso por caso. Para a repetição em que o mesmo ato não pareça
admissível, isto é, em se tratando de verdadeiros duplicados literários, tem
valor a solução que delinearemos mais adiante.
É
ínsito em toda lei, civil ou religiosa, que, permanecendo inalterados os pontos
fundamentais, em muitos outros esteja sujeita a variações com o decorrer do
tempo e as mudanças de circunstâncias. Nem a lei mosaica podia escapar a essa
necessidade quase vital. Mas o próprio texto apresenta a razão das variações
observadas no Pentateuco. Desde a primeira legislação no Sinai (código da
aliança) e a segunda, às margens do Jordão, o Deuteronômio, passam-se cerca de
quarenta anos, e, o que mais importa, o povo de Israel, no fim desse período,
encontra-se prestes a sofrer uma profunda transformação, ao passar da vida
nômade ou pastoril, à sedentária e agrícola. Impunha-se, portanto, uma
adaptação do antigo direito às novas condições. Da não observância rigorosa,
durante séculos, da lei deuteronômica sobre a unicidade do altar, não prova de
per si que não existisse. De resto, um ou outro acréscimo ou modificação pode
ter-se introduzido com o tempo nas leis mosaicas sem derrogar ou diminuir a
paternidade de Moisés do Pentateuco.
A
escola crítica, portanto, não provou, contra o testemunho claro da própria
Bíblia, a sua tese de que o Pentateuco em nada pertence a Moisés. Das
discrepâncias, quaisquer sejam, de vocabulário, de estilo, de leis, dão-se
outras explicações conciliáveis com a autenticidade mosaica. No Gênesis, por
exemplo, não se lhe opõe a distinção de fontes, pois trata-se de acontecimentos
anteriores a Moisés, transmitidos, ao menos em grande parte, oralmente (talvez
também, parcialmente, por escrito) às gerações do povo de Israel, cujas
memórias o grande legislador teria registrado, deixando às narrações o seu
matiz original. Um exemplo claro deste gênero temo-lo no capítulo 14 (expedição
de Abraão e encontro com Melquisedec), de características tão individuais, que a
crítica o atribui a uma fonte especial, não pertencente a nenhuma das quatro
habituais. No tocante aos quatro livros posteriores, que versam exatamente
sobre os tempos de Moisés, já indicamos as razões que explicam as
particularidades estilísticas de dois grandes documentos legislativos, o Código
sacerdotal e o Deuteronômio.
Outra
hipótese, baseada na analogia do Saltério, é a seguinte: o Pentateuco, composto
inteiramente por Moisés, parte baseado em suas recordações, parte em documentos
fornecidos pela tradição e pela casta sacerdotal, propagou-se na sociedade
hebraica; e, durante a transmissão, sofrendo modificações na forma, em nada
insólitas na transcrição de obras literárias, chegou, com o tempo, a receber,
em dois pontos diversos da área israelita, por exemplo, no reino de Efraim e no
reino de Judá, duas formas um tanto diferentes; em uma delas, entre outras
coisas, o primitivo nome de Javé foi substituído por Eloim. Mais tarde (no
reinado de Ezequias ou Josias), quando se sentiu a necessidade ou a oportunidade
de unificar as duas recensões, um redator fundiu-as, extraindo ora desta ora
daquela, muitas vezes contentando-se com justaposições, sem alterar as feições
próprias de cada uma. Destarte explicar-se-iam os fenômenos que levaram a
acreditar na existência de fontes diversas.
O Gênesis narra as
primeiras origens do mundo, do gênero humano, do povo hebreu, tudo relacionado
com Deus, com sua revelação, com seu culto. Deus cria o universo, revela-se aos
primeiros homens, Deus escolhe uma família (Abraão e sua descendência), para no
seio dela conservar e desenvolver os germes da primitiva revelação e a
verdadeira religião, no intuito de preparar a solene revelação do Sinai,
narrada no Exodo.
A
criação do céu e da terra (1:1-2:3), é como que o prólogo do grandioso drama,
que se divide em duas partes, e tem por protagonistas os cinco grandes
patriarcas: Adão e Noé, patriarcas do gênero humano; Abraão, Isaac e Jacó,
patriarcas do povo hebreu.
O
todo é enquadrado pelo autor sagrado em dez tábuas genealógicas (2:4, 5:1, 6:9,
10:1, 11:10, 11:27, 25:12, 25:19, 36:1, 37:2) dispostas de tal modo que, após
ter registrado os ramos secundários da propagação humana, volta a narrar
difusamente os destinos do ramo patriarcal, isto é, da descendência eleita, portadora
da revelação divina e da verdadeira religião.
O
Gênesis abrange na sua narração uma longa série de séculos, e colocando (no
tronco principal das suas genealogias) ao lado dos nomes também números de
anos, forneceria os elementos de uma cronologia. Infelizmente as cifras não
parecem bem conservadas, porque nos números dos capítulos 5 e 11 os três textos
independentes: o hebraico, o samaritano e o grego divergem entre si.
Baseando-se sobre o seu texto, os gregos do império bizantino colocavam a
criação do homem 5508 anos a.C. Os hebreus ainda usam uma era que no mesmo
período conta 3760 anos. As ciência antropológicas exigem um tempo assaz maior
para a existência do homem sobre a terra. A Bíblia não é contrária a resultados
certos de tais ciências, também porque as listas genealógicas do Gênesis
poderiam ser incompletas, ou seja, com omissões de elos intermediários.
Do
nascimento de Abraão à descida dos israelitas ao Egito - 290 anos (Gên 21:5 +
25:26 + 47:28), a cronologia respectiva é mais ou menos certa. Para a
cronologia absoluta (baseada na era vulgar) ter-se-ia um ponto fixo no
sincronismo de Abraão com Hamurabi, o célebre rei da Babilônia, cujo famoso
código de leis foi descoberto em 1902. A identificação, porém, de Amrafel, rei
de Senaar (Gên 14:1), com Hamurabi da Babilônia, é hoje mais do que duvidosa;
tampouco a data do reinado deste último está definitivamente fixada; atualmente
tende-se a colocar-lhe o início por volta de 1728 a .C. Tomando como ponto
de partida a data em que os israelitas saíram do Egito sob o faraó Menefta pelo
ano de 1200 a .C.,
e remontando o curso dos séculos com os dados da própria Bíblia (Ex 12:40 e
passagens acima citadas), Abraão teria nascido por volta de 1900 a .C., mas não é certo
qual seja o faraó do Êxodo.
Muitas
páginas do Gênesis têm correspondência nos monumentos babilônicos e egípcios:
nos primeiros, a história primitiva, isto é, os primeiros 11 capítulos; nos
egípcios, o resto, especialmente a história de José (37-50). Com os dois
primeiros capítulos (a criação) têm algo de semelhante vários poemas
babilônicos entre si discordantes e que são uma, fantasiosa mitologia de crasso
politeismo; quão mais sublime pela nobreza de pensamento é a prosa simples da
Bíblia! Também a tradição babilônica conhece dez reis, como Gên 5, dez
patriarcas, de vida longuíssima antes do dilúvio. Este cataclisma foi narrado
em muitas lendas babilônicas, uma das quais foi inserida no romanesco poema
"Gilgames," assim chamado por causa do herói protagonista. Os pontos
de contato com a narração bíblica (Gên 7:8) são numerosos e típicos. A narração
da torre de Babel (Gên 11:1-9) é toda tecida de elementos babilônicos; mas um
paralelo exato não foi ainda encontrado na literatura cuneiforme. Nada ainda se
encontrou nessa literatura de verdadeiramente análogo à narração do paraíso
terrestre e da queda do homem (Gên 3).
Nos
monumentos, egípcios temos representadas muitas cenas semelhantes às narradas
no Gên cc. 12:37-50.
O segundo livro do
Pentateuco toma o nome de Êxodo da saída dos hebreus do Egito, onde, depois dos
bons tempos de José, passaram a sofrer a mais dura escravidão. Esse
acontecimento, porém, nada mais foi do que o prelúdio de fatos muito mais
importantes na vida dos filhos de Israel, os quais, de um conglomerado de
famílias que eram, recuperando a liberdade, conquistaram verdadeira unidade de
nação independente e receberam uma legislação especial, uma forma de vida moral
e religiosa, pelas quais se distinguiram de todos os outros povos da terra.
Com
toda facilidade compreender-se-á a importância deste livro, sobretudo em se
pensando que, se a história civil das nações, mormente as antigas, acha-se
intimamente vinculada à religião e essa à moral, isto jamais foi tão verídico
como a respeito dos hebreus. As leis contidas no Êxodo formam a essência da
vida civil e religiosa do povo eleito.
É
bem verdade que, de todas essas leis, e especialmente as do chamado código da
aliança (21:23), foram encontradas analogias notáveis no código de Hamurabì
(rei babilônico, que viveu alguns séculos anteriormente a Moisés), que foi
descoberto, traduzido e publicado pelo dominicano Pe. Scheil, em 1902. De tais
analogias não se infere, porém, em absoluto, como pretendem alguns, a
dependência do código mosaico do babilônico. Elas têm sua explicação adequada
nos fatores comuns às duas sociedades, israelita e babilônica, tão próximas no
tempo, no lugar e também na origem, pois os patriarcas do povo hebreu procediam
do vale do Tigre.
Realmente,
na legislação decretada no Sinai, nem tudo foi criado desde a raiz; muitos usos
e costumes já introduzidos na prática social foram confirmados pela aprovação
divina. De resto, também nas famosas leis romanas das doze tábuas descobrem-se
semelhanças com o código mosaico, sem que ocorra a alguém o pensamento de
querer estabelecer um parentesco entre as primeiras e o segundo. Providências
semelhantes surgem espontaneamente de necessidades sociais do gênero. No
decálogo, porém, e na doutrina religiosa que lhe forma a base inconcussa
(20:2-17), reside a verdadeira prerrogativa do povo de Israel; nada de
semelhante se encontra em nenhum outro povo. Citam-se, é certo, da literatura
egípcia; certas desculpas espirituais como: "Não cometi injustiça, não
roubei, não matei" etc., ou da babilônia, os esconjuros, onde se pergunta
se o exorcizado ultrajou alguma divindade, se desprezou pai e mãe, se mentiu ou
praticou obscenidades etc. Mas não há proporção entre os protestos de um
particular para evitar o castigo (finalidade daquelas fórmulas rituais) e a
autoridade soberana que impõe a lei a todo um povo. Entre os próprios egípcios
e babilônios, nada há de correspondente, na legislação, àquelas fórmulas
cerimoniais. O decálogo de Moisés não tem rivais no mundo.
Pelas
razões citadas, os acontecimentos narrados no Êxodo tiveram um eco enorme na
memória das tribos israelitas. Em quase todas as páginas do Antigo Testamento
são recordadas a libertação da escravidão do Egito, a prodigiosa passagem do
mar Vermelho, os golpes tremendos com os quais foi dominada a tenaz oposição do
opressor egípcio, as grandiosas manifestações divinas no Sinai, o sustento
milagroso de povo tão numeroso no deserto. Daí Israel deduzia os motivos mais
fortes para ser grato e fiel a Deus,, e conservar uma confiança inabalável na
sua providência soberana e nos seus próprios destinos.
A
cronologia do Êxodo, ou seja, o ano em que os hebreus saíram do Egito, está
naturalmente ligada à história desse país. Mas, já que a Bíblia não fornece os
nomes dos dois faraós, o da opressão (1:8, 2:23) e o da saída (14:5), duas
opiniões diversas se equilibraram entre os doutos, com autoridade e número de
defensores quase iguais. Para uns, o opressor seria Totmés 3 (1500-1450) e o
outro Amênofis 2 (1447-1420), da XVIII dinastia; para outros, no entanto,
Ramsés II (1292-1225), da XIX dinastia, teria oprimido ns hebreus, e seu
sucessor, Menefta (1225-1215); tê-los-ia libertado. A segunda opinião, que
estabelece o século XIII a.C. para o Êxodo, parece-nos mais condizente com o
texto (1:11) e mais coerente com outros dados da história sagrada e profana.
Este livro traz o nome
de Levítico, por tratar quase exclusivamente dos deveres sacerdotais.
Poder-se-ia compará-lo a um ritual.
Com
exceção de dois trechos históricos (8:10, 24:10-23), compõe-se inteiramente de
leis que visam à santificação individual e nacional. Santificação, de per si
ritual e exterior, que, porém, simboliza e promove certa santidade interior e
moral. Toda a matéria pode ser dividida em cinco partes:
1a
Leis relativas aos sacrifícios (1:7). Os sacrifícios são de cinco espécies;
duas séries de leis: l" série - o rito de cada sacrifício (1:5),
holocausto (1), oblação de vegetais (2), sacrifício salutar (3), sacrifício
expiatório (4), sacrifício de reparação (5). 2° série -ireitos e deveres dos
sacerdotes em cada espécie de sacrifícios (6-7).
2a
Consagração dos sacerdotes (8:9). Nadab e Abiú são punidos por terem usurpado
um ofício sagrado (10:1-7). Várias prescrições para os sacerdotes (10:8-20).
3a
Leis sobre a pureza legal (11:16) dos alimentos (11), da puérpera (12), da
lepra nas pessoas (13:1-46, 14:1-32), nas vestes (13:47-59) e casas (14:33-57);
sobre a gonorréia (15). Rito para o dia solene de expiação (16).
4a
Leis sobre a santidade (17:23): a) do povo (17:20); matança dos animais, uso do
sangue, unicidade do santuário (17); prescrições que regulam os atos sexuais
(18); várias prescrições religiosas e morais (19); punição para os
transgressores (20); b) dos sacerdotes: núpcias e luto (21:1-15);
irregularidades (21:16-24); impureza cerimonial (22:1-16; qualidades das
vítimas (22:17-30); conclusão (22:31-33); c) dos dias festivos: solenidades
anuais e o sábado (23).
5a
Determinações diversas: lâmpadas no santuário e pães da apresentação (24:1-9); pena
para o blasfemador (24:10-23); prescrições para o ano sabático e jubileu (25);
promessas e ameaças relativas a observância da lei (26); votos e dízimos (27).
O
sacrifício, o ato mais sagrado, da religião, isto é, oferecer a Deus vítimas,
animais ou vegetais, não foi instituído por Moisés, mas remonta às próprias
origens da humanidade (Gên. 4:3-4). Moisés encontrou o seu uso estabelecido e
arraigado entre todos os povos. Nas tabuinhas recentemente descobertas em Ras Shamra (antiga
Ugarit), na Fenícia setentrional, anteriores alguns séculos a Moisés, são
mencionadas espécies idênticas de sacrifícios, até mesmo com nomes iguais
(afinidade das duas línguas) aos do Pentateuco. Moisés, com suas leis, só
regulamentou e consagrou ao culto do verdadeiro Deus um cerimonial já
praticado, deixando ainda toda essa legislação dos sacrifícios separada das
condições essenciais do pacto celebrado entre Deus e o seu povo (Ex 19:23).
Nesse sentido deve-se entender aquele protesto do próprio Deus contra os
judeus, por boca de Jeremias (7:22-23): "Em matéria de sacrifícios e
holocaustos, eu nada disse e nada ordenei aos vossos pais ao tirá-los do Egito;
dei-lhes somente esta ordem: Escutai a minha voz; eu serei vosso Deus e vós
sereis o meu povo, cf. Èx 19:5).
Nada,
portanto, impede atribuir-se ao próprio Moisés a legislação cerimonial do
Levítico, embora seja óbvio que não a tenha escrito toda de uma vez e se tenha
servido, para a fixar, da obra de algum sacerdote ou levita de profissão. Nem
se exclui que algumas destas leis tenham recebido em tempos posteriores
modificações e acréscimos.
Devemos
observar ainda, que todas essas leis cerimoniais foram elaboradas depois de
Jesus Cristo. Entretanto, os sacrifícios da antiga lei haviam prefigurado o seu
sublime sacrifício na cruz, no qual, único e perfeito sacrifício, teve
cumprimento toda a variedade dos sacrifícios do Antigo Testamento. Ou melhor,
como nos ensina S. Paulo (Hebr 9:9, 10:10), os sacrifícios levíticos recebiam
sua principal eficácia de aplacar a Deus daquele valor figurativo, pois que
"é impossível que, por si só, o sangue dos touros e dos cabritos cancele
os pecados" (Hebr 10:4). Considerados nó seu significado típico e
simbólico, os ritos escritos no Levítico continuam e continuarão a ser
instrutivos.
O quarto livro do
Pentateuco recebeu o nome de Números (em grego Arithmoi , que
aqui tem o sentido de "recenseamentos") por causa dos
"recenseamentos" (1:1-4:26), que são próprios deste livro e que lhe
dão a sua feição particular. Contém, além disso, alguns fatos que se ligam
imediatamente aos acontecimentos narrados no Éxodo, e leis semelhantes às do
Levítico. Pode ser dividido facilmente, de acordo com os lugares e tempos, em
três partes: no Sinai (1:1-10:10); viagens através do deserto (10:11-21:35); na
margem oriental do Jordão (22:36).
1a
parte. No Sinai: disposições para a
partida: 20 dias. Recenseamento das tribos e respectivas posições no
acampamento (1:2). Os levitas: seu destino e recenseamento; divisão por
famílias e por ofícios. Leis: banimento dos impuros, restituições, ciúmes,
nazireato, bênção litúrgica. Últimos fatos: donativos dos chefes das tribos ao
santuário, consagração dos levitas, segunda Páscoa (9:1-14), sinais para a
partida e para a parada, as trombetas (9:15-10:10).
2a
parte. Viagem através do deserto: Do Sinai
a Cades: partida e ordem de marcha (10:11-36), murmuração do povo, as
codornizes, a lepra de Maria, irmã de Moisés. Parada em Cades: missão dos doze
exploradores e queixas do povo; leis sobre as oblações e primícias, sobre o sábado
e os filactérios; sedição de Coré, Datan e Abirão, e sua punição e confirmação
do sacerdócio na família de Arão; relações entre sacerdotes e levitas,
emolumentos de uns e de outros; a água lustral; sedição do povo por falta de
água (20:1-13). De Cades ao Jordão: os edomitas negam passagem pelas suas
terras; morte de Arãò (20:14-29); queixas do povo e castigo, a serpente de
bronze (21:1-9); vitória sobre os amorreus e conquista de Basan (21:10-35).
3a
parte. Na margem oriental do Jordão: cerca
de cinco meses. A matéria desta parte, mais por ordem lógica do que por ordem
do texto, pode ser assim agrupada: últimos encontros com os povos da
Transjordânia; Balaão e seus vaticínios (22:24); prostituição a Beelfegor (25);
guerra santa contra os madianitas e leis sobre a divisão dos despojos (31);
lista das etapas (33). Grupo de leis: herança (27:1-11), festas e sacrifícios
(28:29), votos (30). Disposições para a ocupação da terra prometida. Segundo
recenseamento (26); nomeação de Josué (27:12-23). Distribuição da Transjordânia
(32); normas para a ocupação e distribuição da Cisjordânia (33:50-34:12);
designação das cidades levíticas e de refúgio (35); disposições para manter
inalterada a primitiva distribuição (36).
A
julgar pelo resumo, o presente livro compreende um período de cerca de trinta e
oito anos e meio. Sobre a maior parte desse período (os trinta e oito anos no
deserto) narra-nos apenas uns poucos fatos, mas muito notáveis pelo significado
religioso, como a serpente de bronze, a sedição de Coré, os vaticínios de
Balaão, a.água brotada da rocha; fatos dos quais os apóstolos no Novo
Testamento tiraram utilíssimas lições (1Cor 10:1-11; Hebr 3:12-19; Jo 3:14-15).
No centro do drama acham-se dois fatos semelhantes entre si, duas sedições do
povo contra Moisés, executor das ordens divinas; a primeira (14), originada
pela repugnância em empreender a conquista da Palestina; a segunda (20), por
falta de água. Conseqüência ou punição da primeira foi a longa demora da nação
inteira no deserto da península sinaítica; a segunda deixou a mais profunda
impressão na consciência nacional e na literatura posterior (cf. SI 80:94-105),
envolvendo o próprio Moisés, que por um instante duvidou da clemência divina e
por isso teve de deixar a outros o remate de sua obra, a conquista de Canaã
(cf. Dt 32).
O
livro dos Números é importante para a literatura porque, entre outras coisas,
nos conservou fragmentos de antiquíssimos cânticos populares (21:23-24), com a
indicação de coleções - já existentes, como "o Livro das guerras de javé"
(21:14), do qual não se tem outra menção.
O quinto e último
livro do Pentateuco foi chamado Deuteronômio, isto é, "segunda lei,"
talvez porque assim tenha sido traduzida, embora inexatamente pelos LXX, uma
frase hebraica em 17:18. No entanto, convém-lhe perfeitamente esse nome. O
livro não é uma simples repetição da legislação contida nos livros precedentes,
mas além de leis novas, oferece complementos, esclarecimentos e modificações às
primeiras. É, de certo modo, uma segunda lei, promulgada no fim da longa
peregrinação dos israelitas, paralela á lei dada no Sinai e destinada a regular
mais de perto a vida do povo escolhido, no solo da Terra Prometida à qual eles
estavam para chegar e dela tomar posse definitiva. Não é, porém, simples enumeração
de leis e determinações; o que caracteriza esse livro, o que lhe constitui a
alma, é um ardente sabor oratório. O hagiógrafo nos faz ouvir um Moisés que
exorta, encoraja, invectiva; inculca á observância das leis, a começar dos
grandes princípios morais; apela para os mais poderosos motivos, evoca a glória
do passado, a missão histórica de Israel, os triunfos do porvir. Na mente do
autor sagrado temos o testamento definitivo, que o grande guia e legislador
deixa ao povo de Deus às vésperas da sua morte. Pelo estilo, o Deuteronômio é
um discurso, ou melhor, vários discursos, dirigidos por Moisés aos israelitas.
Deduz-se daí a divisão do livro em quatro partes:
1a
parte: 1° discurso (1:4): olhar
retrospectivo aos fatos acontecidos desde a partida do Horeb até às últimas
conquistas da Transjordânia; exortação geral à observância da lei (4:1-40).
2a
parte: 2° discurso: renovação da lei
(4:44-26:19). Princípios gerais: o Decálogo (5), o culto e o amor ao único Deus
verdadeiro (6), guerra à idolatria (7), benefícios de Deus, censura da
infidelidade anterior de Israel, promessas e ameaças (8:11).
Leis
especiais: Deveres religiosos. Unicidade do santuário e disposições relativas
(12:1-28); contra a apostasia (12:29-13:18); alimentos e dízimos (14); ano da
remissão (15); as três grandes solenidades anuais (16:1-17).
Direito
público. Juizes (16:18-17:13), rei (17:14-20), sacerdotes (18:1-8),.profetas
(18:9-22); homicídio involuntário (19), guerra (20), homicídio por mão
desconhecida (21:1-9). 3) Direito familiar e privado. Grande variedade; os
pontos principais são: matrimônio (21:10-14, 22:13-23,) e filhos (21:15-20), o
divórcio (20:1-4), levirato (25:5-10), deveres de humanidade (22:1-12,
23:16-20, 24:6-25, honestidade (25:11-19), votos (23:22-24), primícias e dízimos
(26).
3a
parte: 3° e 4° discursos: ordem de
promulgar a lei em Siquém, maldições para os transgressores (27), ameaças e
promessas (28). Exortação à observância da lei, com a recordação dos fatos
históricos, das promessas e das ameaças (29:30).
4a
parte. Apêndice histórico. últimas
disposições de Moisés, nomeação de Josué, seu sucessor (31); cântico de Moisés
(32), bênção das doze tribos (33), morte de Moisés (34).
Amor
de Deus, beneficência, alegria no cumprimento do dever, eis as principais
características do Deuteronômio, princípios inculcados e repetidos com
solicitude incansável. Por isso, perpassa-o um sopro ardente de sincera e
profunda piedade para com Deus e uma ternura simpática pelo homem, que edifica
e comove. Há páginas que se aproximam da sublimidade divina dos ensinamentos
evangélicos, mais do que quaisquer outras.
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