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terça-feira, 1 de outubro de 2013

HISTÓRIA DO CRISTIANISMO 1 - A CRISE DO JUDEU - CRISTIANISMO

A CRISE DO JUDEU - CRISTIANISMO

    O período que medeia entre 40 e 70 é marcado para a comunidade cristã por dois fatos importantes. Por um lado, o momento em que o nacionalismo judeu se há de exasperar: os judeu-cristãos sentirão forte pressão da parte deste nacionalismo. A queda de Jerusalém em 70 desferirá golpe muito sério ao judaismo em geral e ao judeu-cristianismo em particular. Aliás durante o mesmo tempo, graças sobretudo ao impulso dado por São Paulo, o cristianismo ganha terreno nos meios pagãos, fato que leva progressivamente os cristãos de tais meios a se libertarem do contexto judeu, embora não sem crise difícil. No final chegaremos a uma reviravolta da situação. O judeu-cristianismo, triunfante em 49, se desmoronará; o cristianismo paulino começará seu destino triunfal. Na soleira desta época situa-se o concílio de Jerusalém que lhe fornece os elementos; e em seu termo, a queda de Jerusalém, que soluciona as questões.
    No ano de 49 assinalam-se dois episódios que depõem sobre a crise entre judeu-cristãos e pagano-cristãos, é o concilio de Jerusalém e o incidente de Antioquia. A relação cronológica dos dois acontecimentos está atualmente em discussão. A Epistola aos Gálatas, única a mencionar o incidente em Antioquia, o coloca em segundo lugar. As dificuldades que se opõem a esta sucessão de fatos nos parecem proceder de construções apriorísticas. Manter-nos-emos fiéis a esta ordem. Paulo voltara a Antioquia em 48, em companhia de Barnabé. Havia exposto os resultados obtidos junto aos pagãos na Ásia (14,27) e as novas perspectivas abertas. Os gentios convertidos não estavam obrigados as observâncias judaicas e em particular a circuncisão. Era o caso especifico de um asiata, Tito, que consigo trouxera.


    Eis que então "gente, vindo da Judéia", perturba em 49 a comunidade de Antioquia e ensina que a circuncisão é obrigatória para todos. Muitas vezes já quiseram ver nesta gente uns judeu-cristãos da orientação de Tiago - que se teriam oposto a Paulo, representante dos cristãos convertidos da gentilidade. Gregory Dix criticou com razão tal tese. Os judeu-cristãos. que então perfazem a quase totalidade da Igreja, admitiram desde o início que os pagãos convertidos não estavam obrigados à circuncisão, como o lembrará Pedro (At 15,10). A obrigação da circuncisão será pois pelo contrario uma novidade. A que referir tal novidade? Parece que a devemos à situação política do judaismo. Este entra em conflito aberto com Roma. O fato de os cristãos, ainda considerados como parte da comunidade judaica, admitirem não circuncisos aparece como traição em relação ao judaismo. É pois sob a pressão de nacionalistas judeus que certos judeu-cristãos se esforçam por manter os cristãos agregados à comunidade judia, marcada pelo selo da circuncisão.
    Descobre-se assim o verdadeiro desafio. O perigo consistia em solidarizar o cristianismo com o destino temporal de Israel. Paulo e Barnabé o compreendem bem e se opõem vivamente a tais exigências. Nisso se caracterizam como representantes da tradição da comunidade judeu-cristã e não como de uma tendência qualquer. No entanto, diante da gravidade da questão, a comunidade de Antioquia deseja que se leve o debate para junto dos Apóstolos em Jerusalém (At 15,2). Paulo e Barnabé, com Tito, são os enviados (Gál 2,1). Recebem-nos os Apóstolos e os anciãos. Reabre-se então o debate. Certos cristãos da seita dos fariseus defendem a tese da circuncisão para os gentios. Pedro em nome dos Apóstolos, Tiago em nome dos anciãos, decidem em favor de Paulo, precisando que os pagãos não estão obrigados senão aos preceitos noáquicos: abstenção de carnes imoladas aos ídolos, de carnes sufocadas e da fornicação. Paulo e Barnabé, aos quais ainda associam Silas e Judas, chamado Bársabas, recebem a incumbência de transmitir a decisão em Antioquia. Tal decisão capital marca a ruptura do cristianismo com a comunidade judia, ruptura que se aprofundará nos anos seguintes.
    Se o concílio de Jerusalém é importante para a história das relações do cristianismo com o judaismo, não o é menos para o desenvolvimento da comunidade cristã. Convém anotarmos em primeiro lugar a diversidade dos que nele participam. Pedro e João representam os Doze. Pedro havia deixado Jerusalém em 43. Sua presença em Jerusalém aqui é acidental, seja que tenha vindo para o concílio seja que um período de relativa calma da parte dos judeus lhe tenha permitido a volta. Tiago, cercado pêlos anciãos, representa a comunidade local de Jerusalém. Silas e Judas, chamado Bársabas, parecem fazer parte dos anciãos. São designados como higúmenos, palavra que parece sinônima de presbíteros. Encontra-se na Epístola aos Hebreus (13,7.17.24) e na Epistola de Clemente (1,3). Além disso do concílio fazem parte Paulo e Barnabé, que ocupam posto igual ao de Pedro e Tiago. Vêm acompanhados de Tito, que, no plano missionário, se equipara aos anciãos.
    Nesta perspectiva vemos delinear-se o conjunto da organização hierárquica. Os Doze constituem ordem à parte, ordem que preside ao conjunto da Igreja; em suas sedes ou andanças, com eles há de estar em comunhão a igreja toda. Pedro ocupa entre eles posto de relevo. Paulo lhes é assimilado. Ao lado deles existem duas hierarquias paralelas. De um lado, a jerarquia local, composta do conselho dos anciãos, chamados também bispos ou higúmenos. À sua frente se encontra um presidente. Por vezes é homem de primeiro posto como Tiago de Jerusalém, que dispõe de todos os poderes que pudessem ser comunicados pêlos Apóstolos; ele por sua vez só possui autoridade para instituir anciãos. Existe por outro lado a hierarquia missionária, (apostoloi), didáscalos ou profetas. Compreende ela igualmente homens de primeira linha, como Barnabé, que participam dos poderes dos Apóstolos. A passagem de uma hierarquia à outra, que verificamos com os Sete helenistas, com os higúmenos de Jerusalém e com os presbíteros da Didaquê mostra a sua equivalência.
    O concílio de Jerusalém regulamentou definitivamente a questão da circuncisão dos gentios. Mas o nervosismo dos meios judeu-cristãos, agitados pelas preocupações nacionalistas, não se acalmara nem por isso. Percebemo-lo pouco depois, em fins de 49, por ocasião de uma viagem de Pedro a Antioquia. Pedro estivera presente em Jerusalém, por ocasião do concílio de 49. Mas a situação da comunidade de Jerusalém tornara-se mais e mais difícil. O verdadeiro trabalho realizava-se alhures. No decorrer de uma partida, para nova missão, é que Pedro se demora em Antioquia. No inicio deve ter-se dividido entre as duas comunidades, a dos judeu-cristãos e a dos pagano-cristãos. Mas, tendo chegado certas pessoas do círculo de Tiago, absteve-se de comer com os pagano-cristãos, e Barnabé o imitou. Paulo lhes censurou o ato com vivacidade. Tratar-se-ia no caso de Pedro apenas de um gesto de fraqueza? Gaechter parece ter visto melhor as coisas quando indica que as preocupações de Pedro e Paulo eram opostas (op. cit., p. 234-239). Para São Paulo que pensa nos cristãos vindos do paganismo, é essencial libertar o cristianismo de seus laços judeus. Pedro, por sua vez, teme uma defecção dos judeu-cristãos, que, sob a pressão do nacionalismo judeu, correm o risco de retornarem ao judaismo. Quer guardá-los, mostrando que é possível ser ao mesmo tempo fiel a fé cristã e à Lei judaica. Foi sem dúvida para lhe pedir um gesto deste tipo, que a gente de Tiago veio.
    As duas posições, embora igualmente legitimas, eram irreconciliáveis. A partir deste momento despediu-se São Paulo do judeu-cristianismo, preocupando-se tão somente, para o futuro, com a Igreja em ambiente grego. Compreende-se a hostilidade dos judeu-cristãos contra ele. Ela encontrará sua expressão nos escritos pseudo-clementinos. São Pedro pelo contrário, apesar da situação da Igreja na Judéia, parece não ter ainda perdido a esperança de conservar uma comunidade judeu-cristã. E talvez visse muito longe, tão longe quanto São Paulo. Mas na realidade estamos informados sobre os acontecimentos de Antioquia apenas por este último. Sua visão é unilateral. É uma tese. Sem acusá-lo de deformar os fatos podemos pensar que nos transmite deles apenas um aspecto. De toda maneira, o episódio tem o seu sentido, se o situarmos no quadro do duplo movimento pelo qual o cristianismo há de amplificar-se no meio grego, enquanto que a comunidade de Jerusalém marcha ao encontro da dissolução dentro do nacionalismo judeu crescente.
    O primeiro movimento, a expansão do pagano-cristianismo, se prende essencialmente a São Paulo e a seus colaboradores. Possuímos para lhe seguir o desenvolvimento uma documentação notável, historicamente a mais precisa desta época, a segunda parte dos Atos, em que São Lucas, feito companheiro de São Paulo, se utiliza de seu jornal de viagem - e o corpus das Epístolas paulinas. Mencionaremos apenas as etapas principais. No inicio de 50, São Paulo empreende nova viagem. Atravessa a Síria e a Cilícia. Passa sem dúvida por Tarso, sua cidade natal. Em seguida faz uma visita aos cristãos de Derbe, Listra, Icônio, Antioquia da Pisídia. A partir de lá, penetra em domínios novos, na Galácia, na Frigia do Norte, Mísia. Viajando em companhia de Silas, um dos higúmenos profetas vindos com ele de Jerusalém a Antioquia, associa-se Timóteo em Listra e Lucas na Mísia Os dois primeiros permanecerão ligados a obra missionária de Paulo e serão seus mandatários.
    No entanto o acontecimento que marca esta missão é a passagem de Paulo pela Europa; a esta passagem vinculam-se as fundações das igrejas da Macedônia e da Acaia (I Tess 1,7-8). Na Macedônia, demora-se em Filipos, convertendo diversos pagãos. Denunciado e preso pelas autoridades romanas, Paulo insiste em seu título de cidadão romano (At 16,37; I Tess 2,2). Em Tessalônica, fala à sinagoga e converte os judeus, mas também gregos (17,4). O mesmo acontece na Beréia. De lá dirige-se para Atenas (At 17,16-34; 1 Tess 3,1), onde prega no areópago, em presença de estóicos e epicureus (17,19) Registra todavia poucos resultados. Dirige-se afinal a Corinto, demorando-se ai um ano e meio (18,11). Esta estadia pode ser datada com precisão. Por um lado sabemos que lá encontra dois judeus, Áquila e Priscila, que mantinham indústria de tecelagem, trabalhando com eles. Ora, Áquila e Priscila acabavam de ser expulsos de Roma por Cláudio. Suetônio menciona o edito, que é de 49. Por outro lado, o procônsul da Acaia é Galião (18,12), de quem nos informa uma inscrição em Delfos que exerceu o cargo em 52. É de lá que São Paulo escreve as duas epístolas aos Tessalonicenses. Em seguida volta a Antioquia, passando por Éfeso e Jerusalém.
    Na primavera de 53, torna a partir para nova viagem. Atravessa de novo a Galácia e a Frigia. Desta vez porém o objetivo da missão é Éfeso. Prega então na sinagoga; mas também em uma escola para os pagãos (19,9). Permanece aproximadamente três anos na cidade (54 a 57). É de lá que escreve a Epistola aos Gálatas e a Primeira Epístola aos Coríntios. Seu projeto previa a volta a Jerusalém, passando por Corinto e Roma (19,21). De fato porém pára na Macedônia (I Cor: 16,5) e chega a Corinto no fim de 57 (20,2) depois que Tito se reuniu a ele (2 Cor 7,6). Durante o inverno de 57-58, escreve a Epistola aos Romanos. Em seguida chega a Filipos embarca para Tróade e aborda em Tiro por via marítima, fazendo escala em Mileto. Encontra-se em Jerusalém por Pentecostes de 58 (20,16).
    O balanço das missões de São Paulo é pois positivo. Entre 50 e 59, fundou as igrejas da Macedônia (Filipos, Tessalônica) e da Acaia (Corinto). Mas o que os Atos deixam apenas entrever e o que as Epístolas mostram de maneira patética é a oposição crescente que durante este período não cessou de encontrar da parte dos judeu-cristãos, suscitada contra ele pelo nacionalismo judeu, oposição que o levará primeiro à prisão em Jerusalém no ano de 58, e depois ao martírio em 67. Como bem o indicaram Brandon e Reicke, todas as dificuldades que Paulo encontra provêm desta única causa. Começam já no início de sua missão de 49. Barnabé e Marcos recusam-se a partir com ele e embarcam para Chipre (15,39)` Se nos lembrarmos que justamente um pouco antes Barnabé "por temor do pessoal da circuncisão" já se havia dessolidarizado de Paulo (Gál 2,14), é claro que foi a mesma razão que o levou a separar-se dele. Em Listra "por causa dos judeus" ( 16,3), Paulo circuncida a Timóteo, o que é uma concessão. Em Tessalônica, os judeus "por inveja" levantam o povo contra ele. Mas há mais. A Igreja é perturbada por "gente desregrada", que não trabalha e "se ocupa com coisas vãs" (2 Tess 3,11). São os membros da comunidade. Anunciam uma vinda iminente do Dia do Senhor (2 Tess 2,2). É difícil não ver aí uma agitação política de ordem messiânica, que faz lembrar o que Josefo nos diz dos revoltosos judeus desta época. Contra a influência deles é que São Paulo escreve suas duas cartas.
    Em Éfeso é ele precedido por Apolo. É um judeu de Alexandria, instruído no "caminho do Senhor", mas "só conhece o batismo de João" (At 18,25). Fundou uma comunidade (At 18,26). Parte para a Acaia em 54. Reencontramo-lo em Corinto. Parece estar na origem das dificuldades de que nos fala Paulo (I Cor 1,12). Ora, que é que ensina Apolo? Mostra em Cristo a Sabedoria (sophia), descida para o mundo e ignorada pêlos arcontes (I Cor 26-11). São Paulo não condena tais especulações. Mas censura a Apolo de fazer do cristianismo uma gnose. Ora o que é que representa neste momento para um judeu a gnose senão a apocalíptica que dá a conhecer os segredos celestes; os nomes dos anjos. Esta gnose se desenvolveu em particular nos meios essênios. Encontramo-la porém igualmente no Egito junto aos terapeutas que lhes são aparentados. Seria este o meio de que procede Apolo? Convertido por Priscila e Áquila guarda Ele no cristianismo esta mentalidade especulativa que reencontramos nas obras judeu-cristãs por exemplo: na Ascensão de Isaías.
    Esse fato nos esclarece algo sobre o cristianismo asiata. Por ocasião de sua segunda viagem o Espirito Santo havia afastado Paulo da viagem à Ásia (At 16,6). Quando lá chega de 54 a 57 encontra judeu-cristãos da tendência de Apolo. Choca-se com uma viva oposição da parte do meio judaizante (At 19 33). Falará dos adversários que lá encontra (1 Cor 16,9). Parece assim que São Paulo se tenha encontrado diante de uma comunidade judeu-cristã muito poderosa contra a qual tentou fundar uma comunidade de pagano-cristãos. Será entregue aos animais ( I Cor 15,32) em conseqüência da hostilidade manifestada contra ele pêlos judeu-cristãos. Em 61 há de esbarrar ainda com judeu-cristãos em Éfeso (I Tim 13) depois em 63 queixa-se que todos na Ásia o abandonaram (2 Tim 1 15).
    Ao mesmo tempo que os Coríntios após os efésios se deixam influenciar por Apolo promovem-se agitações na Galácia. Aqui a situação está ainda mais clara. Os gálatas retornam as práticas judias; libertados por Cristo voltam à escravidão (Gál 5 1). E esta servidão consiste na observância da Lei tornada obrigatória para os pagano-cristãos (Gál 5 2). Emprestam importância toda especial aos dias aos meses aos tempos e aos anos (Gál 4 10). Ora os estudos sobre o gênero apocalíptico judeu desta época nos mostra a importância dada ao calendário como expressão da determinação do tempo por Deus Esta insistência se liga a expectativa do acontecimento escatológico Não se poderia dar idéia mais clara do espirito que animava o zelotismo judeu. Compreendia ele dois elementos: apego fanático às observâncias legais; exasperação da expectativa escatológica. Tais são as tendências que perturbam os gálatas. Assistimos a uma judaização do cristianismo.
    Percebemos a situação dramática em que se encontra São Paulo. A Epístola aos Romanos, do inverno de 57 será a sua expressão suprema. Uma corrente poderosa de revolta contra Roma sacode o mundo judeu. Impressiona numerosos cristãos. O conflito que os opõe a Paulo não é dogmático. Não se trata de dois cristianismos. Mas da situação dos cristãos em relação à comunidade judia donde eles procedem. Renegar a circuncisão parece-lhes traição política não infidelidade religiosa. Trair a comunidade judia é colocar os cristãos de origem judia em uma situação difícil é expô-los de novo às perseguições dos judeus acuá-los ao desespero e à apostasia E ainda e sempre o problema suscitado em Antioquia que se avoluma. Torna-se ainda mais agudo. Homens sábios e eminentes Pedro Barnabé e ainda outros pensam que se devam fazer concessões para salvaguardar um judeu-cristianismo que continua sendo a maioria numérica. A ausência de Tito angustia Paulo. Aliás é ele perseguido também por pagãos em Filipos e Éfeso além de escarnecido pêlos filósofos em Atenas. Chega a perguntar-se se não se teria enganado. Está aliás disposto a concessões. Aconselha os Coríntios a evitarem o escândalo de comerem os idolotitos (carnes imoladas aos ídolos). Mas a certeza da voz que lhe falou impede-o de fraquejar.
    O conflito culmina em 58 com uma crise dramática. Indo a Jerusalém sabia Paulo a que se exporia (At 20, 22). É recebido por Tiago e pêlos anciãos. Estes lhe fazem chegar ao ouvido as acusações que os judeus contra ele levantam: afastar os judeus da circuncisão e das tradições (2 12 1 ). Aconselham-lhe a submeter-se a um ato público de lealdade judaica. Paulo sobe pois ao Templo. Mas há judeus da Ásia que o reconhecem e levantam contra ele uma sedição. Acusam-no injustamente de ter profanado o Templo introduzindo nele um pagão. E preso pêlos soldados romanos tendo porém feito valer seu titulo de cidadão romano não lhe infligem nenhum mau trato. Após uma discussão no sinédrio segue novo tumulto. Um grupo de judeus forma o projeto de assassiná-lo. Envia-o então o tribuno a Cesaréia ao procurador Félix que ocupou o cargo de 52 a 59. Félix se dá conta da inocência de Paulo mas retém-no dois anos na prisão. Em 59 e substituído por Festo (24 27). Os judeus exigem que se conduza Paulo a Jerusalém. Ele então apela para César. Festo decide enviá-lo a Roma. Antes ainda será interrogado por Agripa II e sua irmã Berenice que se convencerão de sua inocência.
    A partir deste ano de 60 os acontecimentos hão de precipitar-se. Em Roma São Paulo permanece em liberdade vigiada de 61 a 63. Escreve então as Epístolas aos Colossenses, aos Efésios, aos Filipenses, A Epístola aos Colossenses atesta a atividade dos judeu-cristãos na Frígia: levantam-se ai questões de proibições alimentares questões de calendário que perturbam a comunidade (2 16). Paulo não condena tais observâncias como nocivas mas como pertencentes a uma ordem ultrapassada. Ainda adverte os Colossenses contra as especulações sobre os anjos aliás uma das características da apocalíptica judaica (2,18). Cristo sobre a cruz desapossou os principados e as potestades (2,10). São Paulo precisa que o assunto por ele exposto concerne também às cidades vizinhas de Laodicéia e de Hierápolis. Veremos mais tarde como tais cidades eram feudos judeu-cristãos. Paulo anuncia que enviará igualmente uma carta aos laodicenses (4,16). Sem dúvida, não foi ela jamais escrita.
    Libertado em 63, São Paulo retoma sua atividade missionaria. Estamos informados sobre o último período pelas Epístolas a Timóteo e pela Epístola a Tito. O conflito com os judeu-cristãos está se avolumando. São Paulo faz uma visita a Creta. Pouco depois escreve a Tito que deixou anciãos para serem estabelecidos em cada cidade (1,5). Põe de sobreaviso contra os judeu-cristãos (1,10) prestam eles ouvidos às fábulas (mythoi) judaicas. Já observamos que era essa a expressão técnica para designar os sonhos milenaristas. Insistem sobre as prescrições alimentares (1,14-l5). Que Tito deixe de lado as disputas relativas as genealogias, quer dizer as especulações sobre anjos e as relativas à Lei, isto é, sobre as observâncias judaicas (3,9).
    As duas Epístolas a Timóteo visam a situação de Éfeso. São Paulo fora para lá, sem duvida, após a travessia por Creta. Está com ele Timóteo, a quem confia a igreja de Éfeso, na hora de partir para a Macedônia. É daí que lhe envia instruções: a primeira das duas Epístolas. Trata-se em primeiro lugar de combater os que ensinam fábulas e genealogias (1,4); não fazem senão criar divisões. Timóteo deve guardar o depósito e fugir de "uma ciência que de ciência nem merece o nome (pseudonymos)" (6,21). O último termo designa as especulações judeu-cristãs. Será novamente empregado por Ireneu para designar o gnosticismo que é dele um ramo. Os judeu-cristãos aliás proscrevem o casamento e o uso de certos alimentos (4,3). Timóteo deve ter-se deixado impressionar, pois que São Paulo lhe recomenda que beba vinho (5,3). Encontramos ai novo traço do judeu-cristianismo, o encratismo, que proscreve o casamento e proíbe o vinho. O encratismo fez fortuna sobretudo no judeu-cristianismo da Palestina e da Mesopotâmia. Dá prova em Éfeso da persistência da ação dos missionários judeu-cristãos.
    Ainda outro traço da Primeira Epistola a Timóteo é importante. São Paulo nos transmite ai instruções sobre a organização da comunidade da Ásia, paralelas às que havia dado a Tito para Creta. Existe um colégio de presbíteros. O Colégio conta com um presidente, que é um dos componentes. A este atribuem em particular o nome de bispo (episcopos) que indica antes a função do que a dignidade. Ao lado deles, contam-se os diáconos, que dependem diretamente do bispo. Estamos em presença de duas hierarquias paralelas, uma mais colegial, outra mais monárquica, entre as quais o bispo e o vinculo, e que entrarão muitas vezes em conflito. A insistência de São Paulo em suas Epístolas pastorais sobre a hierarquia institucional fez com que se duvidasse da autenticidade delas. Opuseram ,a situação que elas descrevem à que encontramos nas Epístolas aos Coríntios. No entanto, a descrição parece corresponder exatamente a seu momento histórico. Verificamos apenas a substituição de uma hierarquia local ordinária a uma hierarquia missionária. Na mesma época encontramos na Síria a mesma evolução, indicada pela Didaquê.
    Dois anos mais tarde, quando São Paulo envia a Timóteo uma segunda carta, a situação ainda se agravou mais. O Apóstolo está sombrio. Os homens já não suportam a doutrina sadia: abrem os ouvidos para fábulas (mythoi) (4,3-4). Os falsos apóstolos se insinuam nas famílias, fascinam as mulheres (3,3). O papel desempenhado pelas mulheres é uma característica das seitas judeu-cristãs. Reencontrar-se-á no gnosticismo. Parecem-se com Janes e Jambres, que se opuseram a Moisés e Aarão na tradição judaica (3,8). Em particular Himeneu e Fileto ensinam que a ressurreição já se deu (2,18). Tornaremos a encontrar mais tarde tal afirmação em Cerinto. É a prova da exasperação na expectativa apocalíptica. Todo o mundo abandona Paulo na Ásia (1,15). Jamais o judeu-cristianismo pareceu tão triunfante quanto nesta hora. Está no entanto em vésperas de seu malogro.
    Em Roma durante este tempo o drama explodiu. Julho de 64 marca a data do incêndio de Roma. Nero está no governo desde 54. Lança a responsabilidade do incêndio sobre os cristãos. A acusação pode visar a agitação messiânica de certos meios judeu-cristãos. Prende-se pois sempre ao mesmo clima. Pedro parece bem ter sido uma das vítimas da perseguição. A totalidade dos historiadores admite-o hoje. É possível que sejam judeu-cristãos os que o denunciaram, como parece indicá-lo um texto da I Epistola de S. Clemente (5,2) e mais ainda a própria narração de Tácito que fala de uma denúncia, pêlos primeiros cristãos presos, contra seus correligionários. São Paulo se encontra novamente preso em Roma. Tudo leva a crer que seja nas mesmas condições que da primeira vez. Escreve então a Segunda Epístola a Timóteo. Podemos fixar a data de sua morte para 67, sem duvida também ele depois de ter sido denunciado pêlos judeu-cristãos às autoridades romanas como fautor de perturbações (2 Tim 4,16; 1 Clem 5,4).
    Durante este tempo, os acontecimentos se haviam agravado também na Palestina. Em 62, Tiago, bispo de Jerusalém, foi lapidado. A data encontra apoio em Josefo, que narra o acontecimento em duas ocasiões e lhe indica a data do ano em que o procurador Festo foi substituído por Albino. Coincide com o início do sumo pontificado de um membro da família de Anás, Anás o jovem. Hegesipo transmite-nos uma relação mais pormenorizada do martírio de Tiago, relação reproduzida por Eusébio (H. E. 2,23,1-25). Conforme ele, teriam sido os fariseus, que temiam a influência de Tiago sobre o povo. Recolheríamos desta forma uma prova da animosidade crescente contra os cristãos, sem duvida por causa da recusa, mesmo por parte dos judeu-cristãos, de se empenharem num messianismo anti-romano.
    Em 66, tal nacionalismo atinge o paroxismo. Começa a guerra judaica. A comunidade cristã então se retira a Pela, na Transjordânia, o que equivalia aos olhos dela a dessolidarizar-se do destino nacional de Israel (H.E. 3,5,3). Estava à frente dela Simeão, primo de Jesus, que sucedera a Tiago (H.E. 3,2). Este gesto, mais que qualquer outro, marca a ruptura definitiva da Igreja com o judaismo. A comunidade de Jerusalém havia tentado ate ao extremo manter contato com os judeus e trabalhar em sua conversão para Cristo. Apesar disso, fora perseguida por eles. Deixará Israel andar daqui por diante o seu destino. Em 70, Tito toma Jerusalém, massacra a população judia e arrasa o Templo.


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