A CRISE DO JUDEU -
CRISTIANISMO
O período que medeia entre 40 e 70 é marcado para a comunidade cristã por dois
fatos importantes. Por um lado, o momento em que o nacionalismo judeu se há de
exasperar: os judeu-cristãos sentirão forte pressão da parte deste
nacionalismo. A queda de Jerusalém em 70 desferirá golpe muito sério ao
judaismo em geral e ao judeu-cristianismo em particular. Aliás durante o mesmo
tempo, graças sobretudo ao impulso dado por São Paulo, o cristianismo ganha
terreno nos meios pagãos, fato que leva progressivamente os cristãos de tais
meios a se libertarem do contexto judeu, embora não sem crise difícil. No final
chegaremos a uma reviravolta da situação. O judeu-cristianismo, triunfante em
49, se desmoronará; o cristianismo paulino começará seu destino triunfal. Na
soleira desta época situa-se o concílio de Jerusalém que lhe fornece os
elementos; e em seu termo, a queda de Jerusalém, que soluciona as questões.
No ano de 49 assinalam-se dois episódios que depõem sobre a crise entre judeu-cristãos
e pagano-cristãos, é o concilio de Jerusalém e o incidente de Antioquia. A
relação cronológica dos dois acontecimentos está atualmente em discussão. A
Epistola aos Gálatas, única a mencionar o incidente em Antioquia, o coloca em
segundo lugar. As dificuldades que se opõem a esta sucessão de fatos nos
parecem proceder de construções apriorísticas. Manter-nos-emos fiéis a esta
ordem. Paulo voltara a Antioquia em 48, em companhia de Barnabé. Havia exposto
os resultados obtidos junto aos pagãos na Ásia (14,27) e as novas perspectivas
abertas. Os gentios convertidos não estavam obrigados as observâncias judaicas
e em particular a circuncisão. Era o caso especifico de um asiata, Tito, que
consigo trouxera.
Eis que então "gente, vindo da Judéia", perturba em 49 a comunidade
de Antioquia e ensina que a circuncisão é obrigatória para todos. Muitas vezes
já quiseram ver nesta gente uns judeu-cristãos da orientação de Tiago - que se
teriam oposto a Paulo, representante dos cristãos convertidos da gentilidade.
Gregory Dix criticou com razão tal tese. Os judeu-cristãos. que então perfazem
a quase totalidade da Igreja, admitiram desde o início que os pagãos
convertidos não estavam obrigados à circuncisão, como o lembrará Pedro (At
15,10). A obrigação da circuncisão será pois pelo contrario uma novidade. A que
referir tal novidade? Parece que a devemos à situação política do judaismo.
Este entra em conflito aberto com Roma. O fato de os cristãos, ainda
considerados como parte da comunidade judaica, admitirem não circuncisos
aparece como traição em relação ao judaismo. É pois sob a pressão de
nacionalistas judeus que certos judeu-cristãos se esforçam por manter os
cristãos agregados à comunidade judia, marcada pelo selo da circuncisão.
Descobre-se assim o verdadeiro desafio. O perigo consistia em solidarizar o
cristianismo com o destino temporal de Israel. Paulo e Barnabé o compreendem
bem e se opõem vivamente a tais exigências. Nisso se caracterizam como
representantes da tradição da comunidade judeu-cristã e não como de uma
tendência qualquer. No entanto, diante da gravidade da questão, a comunidade de
Antioquia deseja que se leve o debate para junto dos Apóstolos em Jerusalém (At
15,2). Paulo e Barnabé, com Tito, são os enviados (Gál 2,1). Recebem-nos os
Apóstolos e os anciãos. Reabre-se então o debate. Certos cristãos da seita dos
fariseus defendem a tese da circuncisão para os gentios. Pedro em nome dos
Apóstolos, Tiago em nome dos anciãos, decidem em favor de Paulo, precisando que
os pagãos não estão obrigados senão aos preceitos noáquicos: abstenção de
carnes imoladas aos ídolos, de carnes sufocadas e da fornicação. Paulo e
Barnabé, aos quais ainda associam Silas e Judas, chamado Bársabas, recebem a
incumbência de transmitir a decisão em Antioquia. Tal decisão capital marca a
ruptura do cristianismo com a comunidade judia, ruptura que se aprofundará nos
anos seguintes.
Se o concílio de Jerusalém é importante para a história das relações do
cristianismo com o judaismo, não o é menos para o desenvolvimento da comunidade
cristã. Convém anotarmos em primeiro lugar a diversidade dos que nele
participam. Pedro e João representam os Doze. Pedro havia deixado Jerusalém em
43. Sua presença em Jerusalém aqui é acidental, seja que tenha vindo para o
concílio seja que um período de relativa calma da parte dos judeus lhe tenha
permitido a volta. Tiago, cercado pêlos anciãos, representa a comunidade local
de Jerusalém. Silas e Judas, chamado Bársabas, parecem fazer parte dos anciãos.
São designados como higúmenos, palavra que parece sinônima de presbíteros.
Encontra-se na Epístola aos Hebreus (13,7.17.24) e na Epistola de Clemente
(1,3). Além disso do concílio fazem parte Paulo e Barnabé, que ocupam posto
igual ao de Pedro e Tiago. Vêm acompanhados de Tito, que, no plano missionário,
se equipara aos anciãos.
Nesta perspectiva vemos delinear-se o conjunto da organização hierárquica. Os
Doze constituem ordem à parte, ordem que preside ao conjunto da Igreja; em suas
sedes ou andanças, com eles há de estar em comunhão a igreja toda. Pedro ocupa
entre eles posto de relevo. Paulo lhes é assimilado. Ao lado deles existem duas
hierarquias paralelas. De um lado, a jerarquia local, composta do conselho dos
anciãos, chamados também bispos ou higúmenos. À sua frente se encontra um
presidente. Por vezes é homem de primeiro posto como Tiago de Jerusalém, que
dispõe de todos os poderes que pudessem ser comunicados pêlos Apóstolos; ele
por sua vez só possui autoridade para instituir anciãos. Existe por outro lado
a hierarquia missionária, (apostoloi), didáscalos ou profetas. Compreende ela
igualmente homens de primeira linha, como Barnabé, que participam dos poderes
dos Apóstolos. A passagem de uma hierarquia à outra, que verificamos com os
Sete helenistas, com os higúmenos de Jerusalém e com os presbíteros da Didaquê
mostra a sua equivalência.
O concílio de Jerusalém regulamentou definitivamente a questão da circuncisão
dos gentios. Mas o nervosismo dos meios judeu-cristãos, agitados pelas
preocupações nacionalistas, não se acalmara nem por isso. Percebemo-lo pouco
depois, em fins de 49, por ocasião de uma viagem de Pedro a Antioquia. Pedro
estivera presente em Jerusalém, por ocasião do concílio de 49. Mas a situação
da comunidade de Jerusalém tornara-se mais e mais difícil. O verdadeiro
trabalho realizava-se alhures. No decorrer de uma partida, para nova missão, é
que Pedro se demora em Antioquia. No inicio deve ter-se dividido entre as duas
comunidades, a dos judeu-cristãos e a dos pagano-cristãos. Mas, tendo chegado
certas pessoas do círculo de Tiago, absteve-se de comer com os pagano-cristãos,
e Barnabé o imitou. Paulo lhes censurou o ato com vivacidade. Tratar-se-ia no
caso de Pedro apenas de um gesto de fraqueza? Gaechter parece ter visto melhor
as coisas quando indica que as preocupações de Pedro e Paulo eram opostas (op.
cit., p. 234-239). Para São Paulo que pensa nos cristãos vindos do paganismo, é
essencial libertar o cristianismo de seus laços judeus. Pedro, por sua vez,
teme uma defecção dos judeu-cristãos, que, sob a pressão do nacionalismo judeu,
correm o risco de retornarem ao judaismo. Quer guardá-los, mostrando que é
possível ser ao mesmo tempo fiel a fé cristã e à Lei judaica. Foi sem dúvida
para lhe pedir um gesto deste tipo, que a gente de Tiago veio.
As duas posições, embora igualmente legitimas, eram irreconciliáveis. A partir
deste momento despediu-se São Paulo do judeu-cristianismo, preocupando-se tão
somente, para o futuro, com a Igreja em ambiente grego. Compreende-se a
hostilidade dos judeu-cristãos contra ele. Ela encontrará sua expressão nos
escritos pseudo-clementinos. São Pedro pelo contrário, apesar da situação da
Igreja na Judéia, parece não ter ainda perdido a esperança de conservar uma
comunidade judeu-cristã. E talvez visse muito longe, tão longe quanto São
Paulo. Mas na realidade estamos informados sobre os acontecimentos de Antioquia
apenas por este último. Sua visão é unilateral. É uma tese. Sem acusá-lo de
deformar os fatos podemos pensar que nos transmite deles apenas um aspecto. De
toda maneira, o episódio tem o seu sentido, se o situarmos no quadro do duplo
movimento pelo qual o cristianismo há de amplificar-se no meio grego, enquanto
que a comunidade de Jerusalém marcha ao encontro da dissolução dentro do
nacionalismo judeu crescente.
O
primeiro movimento, a expansão do pagano-cristianismo, se prende essencialmente
a São Paulo e a seus colaboradores. Possuímos para lhe seguir o desenvolvimento
uma documentação notável, historicamente a mais precisa desta época, a segunda
parte dos Atos, em que São Lucas, feito companheiro de São Paulo, se utiliza de
seu jornal de viagem - e o corpus das Epístolas paulinas. Mencionaremos apenas
as etapas principais. No inicio de 50, São Paulo empreende nova viagem.
Atravessa a Síria e a Cilícia. Passa sem dúvida por Tarso, sua cidade natal. Em
seguida faz uma visita aos cristãos de Derbe, Listra, Icônio, Antioquia da
Pisídia. A partir de lá, penetra em domínios novos, na Galácia, na Frigia do
Norte, Mísia. Viajando em companhia de Silas, um dos higúmenos profetas vindos
com ele de Jerusalém a Antioquia, associa-se Timóteo em Listra e Lucas na Mísia
Os dois primeiros permanecerão ligados a obra missionária de Paulo e serão seus
mandatários.
No entanto o acontecimento que marca esta missão é a passagem de Paulo pela
Europa; a esta passagem vinculam-se as fundações das igrejas da Macedônia e da
Acaia (I Tess 1,7-8). Na Macedônia, demora-se em Filipos, convertendo diversos
pagãos. Denunciado e preso pelas autoridades romanas, Paulo insiste em seu
título de cidadão romano (At 16,37; I Tess 2,2). Em Tessalônica, fala à
sinagoga e converte os judeus, mas também gregos (17,4). O mesmo acontece na
Beréia. De lá dirige-se para Atenas (At 17,16-34; 1 Tess 3,1), onde prega no
areópago, em presença de estóicos e epicureus (17,19) Registra todavia poucos
resultados. Dirige-se afinal a Corinto, demorando-se ai um ano e meio (18,11).
Esta estadia pode ser datada com precisão. Por um lado sabemos que lá encontra
dois judeus, Áquila e Priscila, que mantinham indústria de tecelagem,
trabalhando com eles. Ora, Áquila e Priscila acabavam de ser expulsos de Roma
por Cláudio. Suetônio menciona o edito, que é de 49. Por outro lado, o
procônsul da Acaia é Galião (18,12), de quem nos informa uma inscrição em
Delfos que exerceu o cargo em 52. É de lá que São Paulo escreve as duas
epístolas aos Tessalonicenses. Em seguida volta a Antioquia, passando por Éfeso
e Jerusalém.
Na primavera de 53, torna a partir para nova viagem. Atravessa de novo a
Galácia e a Frigia. Desta vez porém o objetivo da missão é Éfeso. Prega então
na sinagoga; mas também em uma escola para os pagãos (19,9). Permanece
aproximadamente três anos na cidade (54 a 57). É de lá que escreve a Epistola
aos Gálatas e a Primeira Epístola aos Coríntios. Seu projeto previa a volta a
Jerusalém, passando por Corinto e Roma (19,21). De fato porém pára na Macedônia
(I Cor: 16,5) e chega a Corinto no fim de 57 (20,2) depois que Tito se reuniu a
ele (2 Cor 7,6). Durante o inverno de 57-58, escreve a Epistola aos Romanos. Em
seguida chega a Filipos embarca para Tróade e aborda em Tiro por via marítima,
fazendo escala em Mileto. Encontra-se em Jerusalém por Pentecostes de 58
(20,16).
O balanço das missões de São Paulo é pois positivo. Entre 50 e 59, fundou as
igrejas da Macedônia (Filipos, Tessalônica) e da Acaia (Corinto). Mas o que os
Atos deixam apenas entrever e o que as Epístolas mostram de maneira patética é
a oposição crescente que durante este período não cessou de encontrar da parte
dos judeu-cristãos, suscitada contra ele pelo nacionalismo judeu, oposição que
o levará primeiro à prisão em Jerusalém no ano de 58, e depois ao martírio em
67. Como bem o indicaram Brandon e Reicke, todas as dificuldades que Paulo
encontra provêm desta única causa. Começam já no início de sua missão de 49.
Barnabé e Marcos recusam-se a partir com ele e embarcam para Chipre (15,39)` Se
nos lembrarmos que justamente um pouco antes Barnabé "por temor do pessoal
da circuncisão" já se havia dessolidarizado de Paulo (Gál 2,14), é claro que
foi a mesma razão que o levou a separar-se dele. Em Listra "por causa dos
judeus" ( 16,3), Paulo circuncida a Timóteo, o que é uma concessão. Em
Tessalônica, os judeus "por inveja" levantam o povo contra ele. Mas
há mais. A Igreja é perturbada por "gente desregrada", que não
trabalha e "se ocupa com coisas vãs" (2 Tess 3,11). São os membros da
comunidade. Anunciam uma vinda iminente do Dia do Senhor (2 Tess 2,2). É
difícil não ver aí uma agitação política de ordem messiânica, que faz lembrar o
que Josefo nos diz dos revoltosos judeus desta época. Contra a influência deles
é que São Paulo escreve suas duas cartas.
Em Éfeso é ele precedido por Apolo. É um judeu de Alexandria, instruído no
"caminho do Senhor", mas "só conhece o batismo de João" (At
18,25). Fundou uma comunidade (At 18,26). Parte para a Acaia em 54.
Reencontramo-lo em Corinto. Parece estar na origem das dificuldades de que nos
fala Paulo (I Cor 1,12). Ora, que é que ensina Apolo? Mostra em Cristo a
Sabedoria (sophia), descida para o mundo e ignorada pêlos arcontes (I Cor
26-11). São Paulo não condena tais especulações. Mas censura a Apolo de fazer
do cristianismo uma gnose. Ora o que é que representa neste momento para um
judeu a gnose senão a apocalíptica que dá a conhecer os segredos celestes; os nomes
dos anjos. Esta gnose se desenvolveu em particular nos meios essênios.
Encontramo-la porém igualmente no Egito junto aos terapeutas que lhes são
aparentados. Seria este o meio de que procede Apolo? Convertido por Priscila e
Áquila guarda Ele no cristianismo esta mentalidade especulativa que
reencontramos nas obras judeu-cristãs por exemplo: na Ascensão de Isaías.
Esse fato nos esclarece algo sobre o cristianismo asiata. Por ocasião de sua
segunda viagem o Espirito Santo havia afastado Paulo da viagem à Ásia (At
16,6). Quando lá chega de 54 a 57 encontra judeu-cristãos da tendência de
Apolo. Choca-se com uma viva oposição da parte do meio judaizante (At 19 33).
Falará dos adversários que lá encontra (1 Cor 16,9). Parece assim que São Paulo
se tenha encontrado diante de uma comunidade judeu-cristã muito poderosa contra
a qual tentou fundar uma comunidade de pagano-cristãos. Será entregue aos
animais ( I Cor 15,32) em conseqüência da hostilidade manifestada contra ele
pêlos judeu-cristãos. Em 61 há de esbarrar ainda com judeu-cristãos em Éfeso (I
Tim 13) depois em 63 queixa-se que todos na Ásia o abandonaram (2 Tim 1 15).
Ao mesmo tempo que os Coríntios após os efésios se deixam influenciar por Apolo
promovem-se agitações na Galácia. Aqui a situação está ainda mais clara. Os
gálatas retornam as práticas judias; libertados por Cristo voltam à escravidão
(Gál 5 1). E esta servidão consiste na observância da Lei tornada obrigatória
para os pagano-cristãos (Gál 5 2). Emprestam importância toda especial aos dias
aos meses aos tempos e aos anos (Gál 4 10). Ora os estudos sobre o gênero
apocalíptico judeu desta época nos mostra a importância dada ao calendário como
expressão da determinação do tempo por Deus Esta insistência se liga a
expectativa do acontecimento escatológico Não se poderia dar idéia mais clara
do espirito que animava o zelotismo judeu. Compreendia ele dois elementos:
apego fanático às observâncias legais; exasperação da expectativa escatológica.
Tais são as tendências que perturbam os gálatas. Assistimos a uma judaização do
cristianismo.
Percebemos a situação dramática em que se encontra São Paulo. A Epístola aos
Romanos, do inverno de 57 será a sua expressão suprema. Uma corrente poderosa
de revolta contra Roma sacode o mundo judeu. Impressiona numerosos cristãos. O
conflito que os opõe a Paulo não é dogmático. Não se trata de dois
cristianismos. Mas da situação dos cristãos em relação à comunidade judia donde
eles procedem. Renegar a circuncisão parece-lhes traição política não
infidelidade religiosa. Trair a comunidade judia é colocar os cristãos de
origem judia em uma situação difícil é expô-los de novo às perseguições dos
judeus acuá-los ao desespero e à apostasia E ainda e sempre o problema
suscitado em Antioquia que se avoluma. Torna-se ainda mais agudo. Homens sábios
e eminentes Pedro Barnabé e ainda outros pensam que se devam fazer concessões
para salvaguardar um judeu-cristianismo que continua sendo a maioria numérica.
A ausência de Tito angustia Paulo. Aliás é ele perseguido também por pagãos em
Filipos e Éfeso além de escarnecido pêlos filósofos em Atenas. Chega a
perguntar-se se não se teria enganado. Está aliás disposto a concessões.
Aconselha os Coríntios a evitarem o escândalo de comerem os idolotitos (carnes
imoladas aos ídolos). Mas a certeza da voz que lhe falou impede-o de fraquejar.
O conflito culmina em 58 com uma crise dramática. Indo a Jerusalém sabia Paulo
a que se exporia (At 20, 22). É recebido por Tiago e pêlos anciãos. Estes lhe
fazem chegar ao ouvido as acusações que os judeus contra ele levantam: afastar
os judeus da circuncisão e das tradições (2 12 1 ). Aconselham-lhe a
submeter-se a um ato público de lealdade judaica. Paulo sobe pois ao Templo.
Mas há judeus da Ásia que o reconhecem e levantam contra ele uma sedição.
Acusam-no injustamente de ter profanado o Templo introduzindo nele um pagão. E
preso pêlos soldados romanos tendo porém feito valer seu titulo de cidadão
romano não lhe infligem nenhum mau trato. Após uma discussão no sinédrio segue
novo tumulto. Um grupo de judeus forma o projeto de assassiná-lo. Envia-o então
o tribuno a Cesaréia ao procurador Félix que ocupou o cargo de 52 a 59. Félix
se dá conta da inocência de Paulo mas retém-no dois anos na prisão. Em 59 e
substituído por Festo (24 27). Os judeus exigem que se conduza Paulo a
Jerusalém. Ele então apela para César. Festo decide enviá-lo a Roma. Antes
ainda será interrogado por Agripa II e sua irmã Berenice que se convencerão de
sua inocência.
A partir deste ano de 60 os acontecimentos hão de precipitar-se. Em Roma São
Paulo permanece em liberdade vigiada de 61 a 63. Escreve então as Epístolas aos
Colossenses, aos Efésios, aos Filipenses, A Epístola aos Colossenses atesta a
atividade dos judeu-cristãos na Frígia: levantam-se ai questões de proibições
alimentares questões de calendário que perturbam a comunidade (2 16). Paulo não
condena tais observâncias como nocivas mas como pertencentes a uma ordem
ultrapassada. Ainda adverte os Colossenses contra as especulações sobre os
anjos aliás uma das características da apocalíptica judaica (2,18). Cristo
sobre a cruz desapossou os principados e as potestades (2,10). São Paulo
precisa que o assunto por ele exposto concerne também às cidades vizinhas de
Laodicéia e de Hierápolis. Veremos mais tarde como tais cidades eram feudos
judeu-cristãos. Paulo anuncia que enviará igualmente uma carta aos laodicenses
(4,16). Sem dúvida, não foi ela jamais escrita.
Libertado em 63, São Paulo retoma sua atividade missionaria. Estamos informados
sobre o último período pelas Epístolas a Timóteo e pela Epístola a Tito. O
conflito com os judeu-cristãos está se avolumando. São Paulo faz uma visita a
Creta. Pouco depois escreve a Tito que deixou anciãos para serem estabelecidos
em cada cidade (1,5). Põe de sobreaviso contra os judeu-cristãos (1,10) prestam
eles ouvidos às fábulas (mythoi) judaicas. Já observamos que era essa a
expressão técnica para designar os sonhos milenaristas. Insistem sobre as
prescrições alimentares (1,14-l5). Que Tito deixe de lado as disputas relativas
as genealogias, quer dizer as especulações sobre anjos e as relativas à Lei,
isto é, sobre as observâncias judaicas (3,9).
As duas Epístolas a Timóteo visam a situação de Éfeso. São Paulo fora para lá,
sem duvida, após a travessia por Creta. Está com ele Timóteo, a quem confia a
igreja de Éfeso, na hora de partir para a Macedônia. É daí que lhe envia
instruções: a primeira das duas Epístolas. Trata-se em primeiro lugar de
combater os que ensinam fábulas e genealogias (1,4); não fazem senão criar divisões.
Timóteo deve guardar o depósito e fugir de "uma ciência que de ciência nem
merece o nome (pseudonymos)" (6,21). O último termo designa as
especulações judeu-cristãs. Será novamente empregado por Ireneu para designar o
gnosticismo que é dele um ramo. Os judeu-cristãos aliás proscrevem o casamento
e o uso de certos alimentos (4,3). Timóteo deve ter-se deixado impressionar,
pois que São Paulo lhe recomenda que beba vinho (5,3). Encontramos ai novo
traço do judeu-cristianismo, o encratismo, que proscreve o casamento e proíbe o
vinho. O encratismo fez fortuna sobretudo no judeu-cristianismo da Palestina e
da Mesopotâmia. Dá prova em Éfeso da persistência da ação dos missionários
judeu-cristãos.
Ainda outro traço da Primeira Epistola a Timóteo é importante. São Paulo nos
transmite ai instruções sobre a organização da comunidade da Ásia, paralelas às
que havia dado a Tito para Creta. Existe um colégio de presbíteros. O Colégio
conta com um presidente, que é um dos componentes. A este atribuem em particular
o nome de bispo (episcopos) que indica antes a função do que a dignidade. Ao
lado deles, contam-se os diáconos, que dependem diretamente do bispo. Estamos
em presença de duas hierarquias paralelas, uma mais colegial, outra mais
monárquica, entre as quais o bispo e o vinculo, e que entrarão muitas vezes em
conflito. A insistência de São Paulo em suas Epístolas pastorais sobre a
hierarquia institucional fez com que se duvidasse da autenticidade delas.
Opuseram ,a situação que elas descrevem à que encontramos nas Epístolas aos
Coríntios. No entanto, a descrição parece corresponder exatamente a seu momento
histórico. Verificamos apenas a substituição de uma hierarquia local ordinária
a uma hierarquia missionária. Na mesma época encontramos na Síria a mesma evolução,
indicada pela Didaquê.
Dois anos mais tarde, quando São Paulo envia a Timóteo uma segunda carta, a
situação ainda se agravou mais. O Apóstolo está sombrio. Os homens já não
suportam a doutrina sadia: abrem os ouvidos para fábulas (mythoi) (4,3-4). Os
falsos apóstolos se insinuam nas famílias, fascinam as mulheres (3,3). O papel
desempenhado pelas mulheres é uma característica das seitas judeu-cristãs.
Reencontrar-se-á no gnosticismo. Parecem-se com Janes e Jambres, que se
opuseram a Moisés e Aarão na tradição judaica (3,8). Em particular Himeneu e
Fileto ensinam que a ressurreição já se deu (2,18). Tornaremos a encontrar mais
tarde tal afirmação em Cerinto. É a prova da exasperação na expectativa
apocalíptica. Todo o mundo abandona Paulo na Ásia (1,15). Jamais o
judeu-cristianismo pareceu tão triunfante quanto nesta hora. Está no entanto em
vésperas de seu malogro.
Em Roma durante este tempo o drama explodiu. Julho de 64 marca a data do
incêndio de Roma. Nero está no governo desde 54. Lança a responsabilidade do
incêndio sobre os cristãos. A acusação pode visar a agitação messiânica de
certos meios judeu-cristãos. Prende-se pois sempre ao mesmo clima. Pedro parece
bem ter sido uma das vítimas da perseguição. A totalidade dos historiadores admite-o
hoje. É possível que sejam judeu-cristãos os que o denunciaram, como parece
indicá-lo um texto da I Epistola de S. Clemente (5,2) e mais ainda a própria
narração de Tácito que fala de uma denúncia, pêlos primeiros cristãos presos,
contra seus correligionários. São Paulo se encontra novamente preso em Roma.
Tudo leva a crer que seja nas mesmas condições que da primeira vez. Escreve
então a Segunda Epístola a Timóteo. Podemos fixar a data de sua morte para 67,
sem duvida também ele depois de ter sido denunciado pêlos judeu-cristãos às
autoridades romanas como fautor de perturbações (2 Tim 4,16; 1 Clem 5,4).
Durante este tempo, os acontecimentos se haviam agravado também na Palestina.
Em 62, Tiago, bispo de Jerusalém, foi lapidado. A data encontra apoio em
Josefo, que narra o acontecimento em duas ocasiões e lhe indica a data do ano
em que o procurador Festo foi substituído por Albino. Coincide com o início do
sumo pontificado de um membro da família de Anás, Anás o jovem. Hegesipo
transmite-nos uma relação mais pormenorizada do martírio de Tiago, relação
reproduzida por Eusébio (H. E. 2,23,1-25). Conforme ele, teriam sido os
fariseus, que temiam a influência de Tiago sobre o povo. Recolheríamos desta
forma uma prova da animosidade crescente contra os cristãos, sem duvida por
causa da recusa, mesmo por parte dos judeu-cristãos, de se empenharem num
messianismo anti-romano.
Em 66, tal nacionalismo atinge o paroxismo. Começa a guerra judaica. A
comunidade cristã então se retira a Pela, na Transjordânia, o que equivalia aos
olhos dela a dessolidarizar-se do destino nacional de Israel (H.E. 3,5,3).
Estava à frente dela Simeão, primo de Jesus, que sucedera a Tiago (H.E. 3,2).
Este gesto, mais que qualquer outro, marca a ruptura definitiva da Igreja com o
judaismo. A comunidade de Jerusalém havia tentado ate ao extremo manter contato
com os judeus e trabalhar em sua conversão para Cristo. Apesar disso, fora
perseguida por eles. Deixará Israel andar daqui por diante o seu destino. Em
70, Tito toma Jerusalém, massacra a população judia e arrasa o Templo.
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