A IGREJA DEIXA
JERUSALÉM
Até o momento concentramos nossa atenção sobre a
Igreja de Jerusalém. Foi lá que se originou o cristianismo. Mas é também quase
exclusivamente dela que fala nossa fonte principal, os Atos, em sua primeira parte.
Ora, durante os quinze primeiros anos de sua existência, os cristãos se haviam
espalhado muito; Eusébio exagera sem dúvida quando escreve que ainda sob o
reinado de Tibério, quer dizer antes de 37, na hora de aparecer Calígula,
"ecoava pela terra toda a voz dos evangelistas e Apóstolos" (H. E.
2,3,1). A afirmação é no entanto ao menos tão verdadeira quanto o que nos dizem
os Atos. A expansão do cristianismo no mundo judeu fora de Jerusalém mereceu
apenas uma indicação por parte deles. Talvez possam certos setores receber hoje
nova claridade.
Por outro lado, o estudo da igreja primitiva de
Jerusalém nos mostrou a complexidade do ambiente judeu, no qual a Igreja se
desenvolve, além das diversidades que tal contexto aí causa. Mencionamos os
fariseus, os saduceus, os essênios, os helenistas. Existem ainda os herodianos
e os zelotes. Mas Justino nomeia alem deles os "genistas, os meristas, os
galileus, os helênios, os batistas". Conhecemos também os samaritanos. Não
é fácil identificar todos esses grupos. Representam esses correntes diversas às
margens do judaismo oficial. Os samaritanos são uma delas. As seitas batistas
jordanianas são outra. Existem personagens mais inquietantes, os
"magos", Simão ou Teudas, quer dizer judeus influenciados pelo
dualismo iraniano. Reencontraremos o prolongamento destas correntes no
cristianismo ortodoxo ou heterodoxo.
Se afinal o cristianismo se desenvolve
principalmente e em primeiro lugar no meio judeu da Palestina e da Diáspora,
aborda no entanto desde logo os ambientes pagãos. Mas ainda aqui nossos
documentos, redigidos em grego e em favor dos gregos, estão sobretudo
interessados no desenvolvimento da Igreja no mundo pagão ocidental. Ora, a
missão cristã se desenvolveu igualmente no mundo pagão oriental, cuja língua
cultural era o aramaico: na Transjordânia, Arábia, Fenícia, Celessíria,
Adiabena, Osroena. Precedera-a a missão judia. Helena, rainha dos adiabênios,
convertera-se do zoroastrismo para o judaísmo pêlos anos de 30 P.C. O
cristianismo "sírio" assumiu importância considerável nos dois
primeiros séculos. Os Atos nos apresentam a missão como vinculada em primeiro
plano aos helenistas. Houve porém igualmente missão aramaica. Eusébio nos conta
que Tomé evangelizou os partas (3,1,2). Todo um ciclo de Tomé, Evangelho de Tomé,
Atos de Tomé, Salmos de Tomé constituem o eco desta missão.
Desta complexidade do judeu-cristianismo, que vai
dos anos 30 a
45, conseguimos fixar certos elementos. No que concerne a Palestina, a questão
da origem da igreja na Galiléia continua sendo um enigma. Os Atos atestam sua
existência (9,31). Três fatos merecem análise. E. Lohmeyer propõe que se
distinga nas fontes dos Evangelhos uma tradição galiléia, distinta da tradição
de Jerusalém que seria assim o eco da catequese galiléia. Em segundo lugar, as
inscrições judeu-cristãs arcaicas descobertas em Nazaré atesta evangelização
muito antiga. De fato, as relações entre a Galiléia e a Judéia poderiam
explicar por que os Atos não fazem menção da primeira. As relações de família
de diversos Apóstolos com a Galiléia tornariam improvável que ela não tivesse
sido desde logo evangelizada. Sobra-nos uma última questão. Entre as seitas
judias, mencionam Justino e Hegesipo os galileus. Os documentos de Wadi
Mouraba'at os conhecem igualmente. Tal grupo parece poder identificar-se com os
zelotes de Josefo. O movimento zelote fora fundado no ano G P. C. por Judas o
galileu.
Estabeleceram os primeiros cristãos contatos com os
zelotes? Cullmann supôs que diversos Apóstolos mantivessem tais contatos.
Simão, o zelote, em todo caso, saíra deste meio. Aos olhos dos judeus de
Jerusalém, saduceus e fariseus, os discípulos de Jesus podiam ter passado por
tais. O fato de serem em parte galileus contribuiria para tanto. Gamaliel
assimila o movimento que se liga a Jesus ao de Judas o galileu. Os trabalhos de
Brandon e de Reicke parecem demonstrar que, se a comunidade cristã não pode
prender-se ao movimento, os elementos vindos do zelotismo eram entre eles muito
ativos. Tentarão arrastar a comunidade cristã para a revolta contra a dominação
romana. Podemos perguntar-nos se este cristianismo zelote não foi o dos colonos
e pescadores galileus, que falavam o aramaico e se converteram ao cristianismo,
e se o fato de pertencerem a um mundo que deveria desaparecer por completo a
partir de 70 não explica o silencio dos escritos do Novo Testamento a respeito
deles.
As origens da igreja da Samaria, pelo contrário,
mereceram relato nos Atos. Relacionam-nas com a expulsão dos helenistas de
Jerusalém em 37. Um dos Sete, Filipe, desce a Samaria (8,4). Como o lembrou com
precisão Cullmann, os helenistas teriam sido bem acolhidos pêlos samaritanos,
pois com eles compartilhavam a hostilidade contra a teocracia do Templo e o
sacerdócio de Jerusalém. O meio samaritano apresentava por outro lado características
singulares que parecem ter levado a missão ao malogro. É este sem dúvida o
sentido do episódio de Simão. O personagem e apresentado pêlos Atos como
praticando a magia, fazendo-se passar pelo "Grande Poder" e exercendo
profunda influência (8,9-10). Justino. que também era samaritano, nos fornecerá
mais tarde outros pormenores (1 Apol 16,1-3). Mostra-nos ele Simão adorado por
quase todos os samaritanos como sendo seu Primeiro Deus; uma mulher, Helena,
lhe é associada neste culto, como o Primeiro Pensamento. Ireneu precisa que
Simão ensinava a criação do mundo pêlos anjos, o mau governo do mundo pêlos
mesmos, e a deposição deles pelo Primeiro Poder (Adv. Haer. 1,23,3).
É difícil extrair destas tradições as doutrinas que
remontam ao próprio Simão e a seus discípulos, simonianos ou helenistas. Temos
que ver, quem sabe, em Simão o representante dum messianismo samaritano,
análogo ao do "profeta", de quem Pilatos cerceou o movimento em 36.
Simão por sua vez era discípulo de Dosíteo, que aplicava a si o texto de Deut
18,1 o sobre 0 profeta anunciado por Moisés. Dosíteo e Simão parecem
representar uma corrente ascética e escatológica paralela à de Qumrân, com a
qual possuem pontos de contato. Misturam-se porém aí elementos mágicos e
sincretistas, característicos duma heterodoxia judaica. Tal heterodoxia não se
identifica com o gnosticismo. Mas é o meio em que, após 70, aparecera o
gnosticismo que será uma reinterpretação no sentido dum dualismo mais radical,
elaborado após 0 malogro da expectativa escatológica, como o observou bem
Grant, referindo-se a Simão. Neste sentido, Simão é mesmo o pai do gnosticismo,
não sendo ele embora um gnóstico.
Ora, Simão recebe o batismo da mão de Filipe (At
8,13) e procura mesmo associar-se ao poder dele pela ação de Pedro (8,18).
Ter-se-ia assim tornado uma espécie de Bispo dos samaritanos. Mas Pedro
desmascara-lhe a insinceridade e o afasta. Simão terá no entanto seus
discípulos. Justino nos diz que eram numerosos. É provável que tenham
representado boa parte da comunidade cristã de Samaria. Houve pois aqui muito
cedo uma heterodoxia cristã, que apresentou no início um caráter escatológico e
em seguida se transformará no gnosticismo. Tal heterodoxia revela desde aquele
momento traços sincretistas, característicos do meio samaritano. O dualismo ai
se desenvolverá só após o ano 70. De fato, Filipe se fixará em Cesaréia (At
2,8). S. Paulo encontra comunidades ortodoxas na Samaria, no ano de 49 (At
15,3).
Entre os grupos situados a margem do judaismo
oficial, temos que assinalar um outro. Em diversas noticias sobre seitas
judias, no tempo das origens da Igreja, fala-se de seitas batistas. Hegesipo,
ao lado dos essênios, galileus, samaritanos, saduceus, fariseus, de quem já
falamos, menciona os masboteus (H. E. 4,22,7). Justino fala de batistas,
Epifânio, de sabeus. Sabeus e masboteus são sinônimos para batistas. Este grupo
compartilha com os judeus as crenças e as observâncias noáquicas. Seu rito
essencial aliás é o banho no Jordão, considerado rio sagrado . O grupo se
identifica com populações não judias, ribeirinhas do Jordão, aparentadas aos
judeus, mas estrangeiras em relação à comunidade de Israel: são os ancestrais
dos mandeus.
Os contatos do cristianismo primitivo com este
ambiente são complexos. Por um lado, houve certamente no espirito dos judeus do
tempo certa confusão a propósito dos cristãos e destas seitas batistas, pelo
fato de o batismo no Jordão ser adotado primeiro por João Batista e em seguida
pela Igreja cristã. Mas, como o demonstrou Rudolf, nada há de comum entre sabeus
e cristãos, a não ser a importância dada ao Jordão como rio sagrado. Outro dado
talvez tenha contribuído para tal confusão. O termo Nazareu, nazoraios, é
aplicado a Jesus no Evangelho (Mt 2,23). Ora, a palavra aparece como a mais
antiga designação dos mandeus. Aliás em Epifânio, sob a forma nasaraios
designa-se uma seita judia. São conhecidas as discussões levantadas em torno da
palavra. É certo que significa "observante". Por outro lado designava
os batistas. Por uma confusão intencionada pêlos batistas, foi ela aplicada a
Cristo e aos cristãos pêlos judeus (At 24,5), exatamente como o termo
samaritano. Mas graças ao jogo de palavras tão familiar aos semitas, o termo
transformou-se em titulo de glória para os cristãos e foi relacionado com
nezer, rebento, que é titulo messiânico.
Continua sendo fato curioso existir uma seita
cristã de nazareus e que ela se encontre precisamente na Transjordânia.
Epifânio lhe consagra uma notícia. São cristãos judaizantes. O centro deles se
encontra em Pela na Gaulanítida. Possuímos fragmentos de um Evangelho dos
nazareus, escrito em aramaico e lido por São Jerônimo na Transjordânia.
Epifânio identifica-os com os judeu-cristãos expulsos da Palestina após 70. Mas
é provável que tais judeu-cristãos se tenham filiado a uma comunidade já
existente. A comunidade porém trazia o nome de nazareus, que partilhava com os
demais grupos transjordânicos, sendo termo genérico para as seitas batistas
desta região. Apresentava outros traços ainda. A arqueologia nos revelou a
importância na Transjordânia de santuários consagrados aos santos não-judeus
Lot, Jó e Melquisedec. É alias o meio em que surgirá o ebionismo, hostil aos
sacrifícios, praticando o uso freqüente dos banhos de purificação, ligado aos
preceitos noáquicos.
Afinal é isso: sem deixar a Palestina, a missão
cristã iria topar um último meio, prestes a pô-la em presença de novos
problemas era o paganismo greco-romano. A Palestina compreendia efetivamente
cidades gregas, habitadas principalmente por pagãos. Situavam-se elas em sua
maioria à borda do Mediterrâneo. Ora, os Atos nos ensinam que o apostolado dos
helenistas se estendeu também a tal região. Filipe aparece em Cesaréia e em Jope. Perto de Gaza,
batiza ele um prosélito judeu de origem etíope (8,27). Convém notar que nestes
diversos setores, em Samaria primeiro, depois em Cesaréia, Gaza e Jope, Pedro
segue a Filipe. Fato que parece pôr em evidência o papel de controle sobre o
conjunto da Igreja de que os doze se consideram encarregados. O caráter
universal da missão de que foram investidos toca em particular a Pedro. Assim
se confirma o papel de árbitros que os Doze pareciam desempenhar em Jerusalém.
A evangelização do litoral ia pôr a comunidade
cristã em contato com o ambiente pagão, grego ou romano. Os Atos referem-nos o
caso do centurião Cornélio, da coorte itálica ( 10,1 ). É interessante, por
revelar-nos até que ponto os Apóstolos se sentiam incorporados na comunidade
religiosa judia. O texto observa realmente que é ilícito a um judeu ter contato
com um estrangeiro (10,28). Apesar disso, declara Pedro que não se lhe pode
recusar o batismo. Assim desde o inicio reconheceram os Apóstolos que a
comunidade cristã estava aberta aos pagãos. Veremos quais os problemas que dai
surgirão em breve, uma vez que os judeu-cristãos continuavam a sentir-se
ligados às observâncias judaicas.
O balanço final dos primeiros desenvolvimentos da
Igreja na Palestina, fora de Jerusalém, continua apesar de tudo muito magro.
Parece que a Galiléia, a Samaria e a Transjordânia se transformaram em centros
de grupos dissidentes, simonianos, zelotes ou ebionitas, todos eles reflexos de
formas marginais do judaismo. E esta sensibilidade para a heterodoxia judaica
ainda é uma das formas da estreita dependência do cristianismo primitivo em
relação ao mundo judeu. Na realidade, foi a Síria que se formou o grande foco
de irradiação do cristianismo, durante os primeiros quinze anos O primeiro
centro cristão, depois de Jerusalém, foi Antioquia. Mas o fato de Antioquia ter
sido posta em tanta evidência pêlos Atos dos Apóstolos, explica-se por
pertencer ela ao mundo helenístico e não ao aramaico. Existe, é verdade, uma
Síria aramaica, na Fenícia com Damasco, na Osroena com Edessa, Síria que
desempenha papel importante, embora os documentos canônicos apenas a mencionem.
Também aqui deveremos tentar restabelecer as perspectivas.
O primeiro centro que encontramos e Damasco. Os
Atos nos fornecem duas indicações. Quando Saulo se converteu, no ano de 38, já
existia uma comunidade cristã em Damasco, uma vez que para lá se dirigiu com o
fito de efetuar prisões. Por outro lado, os Atos 11, 1 9 relacionam a
evangelização da Fenícia, de que faz parte Damasco, com. os helenistas expulsos
de Jerusalém. A primeira comunidade de Damasco constituiu-se pois em 37. Os
cristãos de Damasco são judeus; em caso contrario, a jurisdição sobre eles não
caberia ao sumo-sacerdote de Jerusalém. Insiste-se aliás que a palavra foi
anunciada unicamente aos judeus (11,19). Os cristãos são chamados "os
homens deste caminho", o que equivale a uma designação propriamente
judaica para uma seita. Precisa-se ainda mais que São Paulo prega, após a
conversão, nas sinagogas (9,20). Um dos cristãos de Damasco, Ananias, é nomeado
(9,10): homem piedoso, "segundo a Lei", e estimado pêlos judeus (At 22,12).
Poderemos precisar ainda mais o que venha a ser a
comunidade de Damasco? Conviria anotar desde já que ela foi fundada pêlos
helenistas. A perseguição, de que São Paulo e instrumento, visa os helenistas.
Enquanto os cristãos de Damasco são helenistas é que Paulo irá prendê-los. Aí
está uma primeira indicação. Em parte ao menos a comunidade de Damasco se
compunha de helenistas. Ainda um segundo elemento: Possuímos, como é notório, a
regra da comunidade judia aparentada com a de Qumrân e que se fixara em Damasco. Ora ,
verificaram-se certos traços semelhantes entre a primeira comunidade cristã de
Damasco e a tal comunidade sadocita. O discurso de Santo Estêvão, que
representa a teologia dos helenistas, cita um verso de Amós 5,25-27, verso que
se reencontra no Documento de Damasco (essênio) (9,2). A catequese que Ananias
propõe a São Paulo e que aparece reproduzida nos Atos, 22,13-15, sugere
contatos impressionantes com os temas do Documento sadocita. É pois possível
que a primeira comunidade de Damasco tenha sido constituída em parte por
sadocitas convertidos.
Não que Damasco fosse o principal centro da
comunidade sadocita. O Documento sadocita fala do pais de Damasco (8,21;
20,12), o que parece mais conforme com os usos da seita, que pelas informações
de Filo não se fixava nas cidades, mas nas aldeias. Já se pensou em precisar
que se trate de Kokba, 15
quilômetros ao sudoeste de Damasco. Ora parece que
judeus-cristãos se encontram já em época muito remota, em Kokba. Harnack
lembra uma tradição que fixa Kokba, como lugar da conversão de São Paulo. As
distâncias tornam possível o fato. Mas podemos entrever ai também a
sobrevivência de uma relação entre Paulo e Kokba, que contaria com outra
origem: conta-se que, fugindo de Damasco, Paulo se refugiou na Arábia (Gál
1,17). Ora, Arábia designa nesta época o reino nabateu, que se estende de
Damasco a Petra. Possível, que a aldeia da Arábia para a qual se tenha retirado
Paulo seja Kokba. Notemos para tanto que os Atos (9,23) não supõem que Paulo
tenha deixado a região de Damasco.
Explicar-se-iam assim os traços sadocitas que lhe
perpassam o pensamento. A breve catequese de Ananias antes do batismo não
bastaria para justificá-los. Paulo é fariseu e assim, no momento da conversão,
estranho ao essenismo. Tudo se explica no entanto se Paulo passou os três anos,
que medeiam entre a conversão e a viagem. a Jerusalém (38-41), no ambiente de
sadocitas convertidos. Acrescentemos ainda, declara o próprio São Paulo, que
após a estadia na Arábia, voltou a Damasco (Gál 1,17). Não se havia pois
afastado da cidade. Somos assim levados a supor, em Damasco e em Kokba, a
existência de uma comunidade cristã, vinda do essenismo. O ambiente se
transformou sem dúvida no foco principal do cristianismo essenizante. A ele
relacionaríamos de bom grado os Testamentos dos XII Patriarcas, obra dum
sadocita convertido ao cristianismo. O trabalho apresenta contatos notáveis com
o Documento sadocita. Foi objeto de novos arranjos. Mas a primeira redação pode
ter sido muito arcaica.
O segundo centro - e o principal - da expansão da
Igreja na Síria é Antioquia. Cidade, politicamente importantíssima. Além de
capital da Província do Oriente, constituía ainda um foco de cultura grega. Sua
população na maioria síria, dava-se ares de cosmopolita; com muitos gregos e
judeus em seu meio. A evangelização remonta, como a de Damasco, a vinda dos
helenistas em 37. É promovida primeiro entre os judeus. Os Atos no entanto
precisam que determinados elementos dentre os helenistas, gente de Chipre e de
Cirene, provenientes de Jerusalém mas de língua grega, se dirigiram também aos
gregos, quer dizer aos pagãos ( 11,20). Converteu-se grande número. Antioquia
aparece assim como o primeiro centro de uma comunidade importante de pagãos
feitos cristãos Em 42, diante do desenvolvimento da comunidade, os Apóstolos
enviam-lhes Barnabé. O episódio se apresenta como um paralelo à missão de Pedro
na Samaria. Atesta a vontade dos Apóstolos de assegurarem a unidade das
comunidades sob a sua direção colegiada.
Foi em Antioquia que pela vez primeira se atribuiu
o nome de "cristãos" aos membros da comunidade (11,26). Como o notou
bem E. Peterson, o termo encerra ressonância política. Desigua os
"partidários de Chrestos". Familiariza-nos com a idéia que se
formavam os meios romanos a respeito da comunidade cristã, como seita
messiânica. É o paralelo exato com a primeira menção que fará do cristianismo
um escritor latino pagão: "Judaei impulsore Chresto tumultuantes",
dirá Suetônio. O fato de o grupo dos cristãos recebe uma alcunha oficial atesta
que a comunidade apresentava assaz grande consistência para fazer sua aparição
no nível da vida oficial. Assim tal designação passa a ser o primeiro sinal da
existência da Igreja aos olhos do mundo romano. Poderíamos anotar ainda que a
qualificação foi dada aos cristãos de Antioquia, segundo o autor dos Atos, sob
o reinado de Cláudio (41-54), ou mais precisamente no começo do reinado. Será
igualmente sob Cláudio, que Suetônio fará menção dos cristãos.
Sobre a comunidade local de Antioquia os Atos de
nada mais nos informam. Interessam-se apenas por Antioquia, como ponto de
partida da missão na Ásia. A Epístola aos Gálatas nos permite porém
deslindar-lhe mais um traço. Afirmamos que a igreja de Antioquia foi a primeira
a apresentar uma comunidade importante de cristãos, convertidos do paganismo.
Mas Gálatas 2,12 nos revela a existência paralela de uma comunidade de
judeu-cristãos. Antioquia era a primeira cidade em que tal justaposição se
produzia. Na Epístola aos Gálatas transparece claramente que as duas
comunidades estavam separadas. Convertidos ao cristianismo, os judeus
continuavam submissos às observâncias e em particular a interdição de comerem
com os não-judeus, quer dizer também com os pagãos convertidos. Como a
eucaristia tinha lugar por ocasião de uma refeição, era impossível aos
judeu-cristãos e aos pagano-cristãos celebrarem-na juntos. Veremos adiante o
problema com que se enfrenta então São Pedro. Devia ele, como judeu, partilhar
da eucaristia com os pagano-cristãos? Ou, como Apóstolo, devia manter-se acima
de tais divisões e assistir a uma e a outra?
Assim Antioquia se transformou muito cedo, em
oposição a Jerusalém, num centro de expansão do cristianismo por sobre o meio
helenístico pagão. É a partir daí que a obra missionária garantira sua
continuidade. É igualmente a Antioquia que se prendem alguns dos documentos
mais antigos do cristianismo e que apresentam traços comuns. O Evangelho
segundo Mateus, embora a redação definitiva se tenha dado mais tarde, parece
transmitir o eco exato da catequese no meio antioqueno. O lugar que aí ocupa S.
Pedro leva a concluir neste sentido. Situa-se num meio em que as relações entre
a comunidade judia e a comunidade pagã são intensas. 0 mesmo se diga da
Didaquê. A origem síria é muito provável. Apresenta em sua parte catequética
uma tradição paralela àquela que encontra ressonância em Mateus. As alusões aos
profetas nos põem num contexto achegado àquele que já nos é conhecido pela
descrição dos Atos em
Antioquia. Em sua parte litúrgica, ouvimos o eco da liturgia
antioquena primitiva.
Devemos unir à evangelização de Antioquia também a
das regiões vizinhas. Na Epistola aos Gálatas, São Paulo nos conta que prega na
Síria e na Cilícia, sem duvida em 43-44, ano que passa em Antioquia com
Barnabé. A evangelização de Chipre é mais antiga. Os Atos (11,19) nos dizem que
os helenistas ai chegaram, depois de 37, ao mesmo tempo que para Antioquia.
Quando Paulo e Barnabé para lá se dirigirem em 45, encontrarão comunidades
constituídas. Em Chipre se encontrará Paulo com o procônsul Sérgio Paulo que
conhecemos através de uma inscrição. Achava-se ele sob a influência de um
profeta e mago judeu, Barjesus. Eis o primeiro testemunho da concorrência entre
o proselitismo judeu e o apostolado cristão, sobre a qual M. Simon chamou em
hora boa a atenção. Em Antioquia da Pisídia veremos, um pouco mais tarde, os
judeus ciosos das conversões operadas por Paulo e operosos em levantar contra
ele os prosélitos (At 13,50).
É um fato, que temos as melhores informações sobre
a evangelização das regiões chamadas da Ásia, Macedônia e Acaia. Dois homens
desempenharam aqui um papel decisivo: Paulo e Barnabé. Voltemos a falar sobre o
primeiro. É o personagem do cristianismo apostólico que melhor conhecemos,
graças aos Atos, escritos aliás por um de seus companheiros, e graças as suas
próprias Epístolas. Perseguidor dos helenistas em 36, convertido em 38, passou
três anos em ambiente sadocita cristão perto de Damasco. Dirige-se a Jerusalém
no ano de 41; lá se encontra com Pedro e Tiago, o irmão do Senhor (Gál 1,18; At
9, 27). Choca-se com os helenistas judeus (At 9,29) e volta a Tarso sua pátria
(At 9,30). É aí que Barnabé irá procurá-lo em 48. Barnabé o havia conhecido em
Jerusalém no ano de 41 e o havia apresentado aos Apóstolos. Leva-o consigo para
Antioquia onde passam juntos um ano (42-43).
Temos que precisar bem sua posição em relação a
igreja de Antioquia. Os Atos nos informam que neste momento existiam na igreja
de Antioquia "profetas e doutores" (At 13,1). Estes são enumerados:
Barnabé, Simeão chamado Niger, Lúcio 0 Cireneu, Manaém, irmão de leite de
Herodes, O tetrarca, e Saulo. Tal grupo não parece pertencer a comunidade local
de Antioquia de que acima falamos, mas há de identificar-se antes com os
missionários helenistas. É o caso de Barnabé. Entre os missionários vindos a
Antioquia se encontrava gente de Cirene (At 11,20). Ora, Lúcio é cireneu.
Manaén; pertence ao meio herodiano. O grupo toma Saulo como sócio, situando sua
atividade em plano superior. Antioquia não passa de porto de encontro. De fato,
a missão prolongará a dos Doze. É por isso que estão em contato permanente com
eles. Barnabé lhes apresenta Paulo em 41. Em 44, se dirige novamente a
Jerusalém na companhia de Paulo (At 11,30; 12,25). Na volta, trazem João Marcos
consigo (At 12,25). Antes disso, os Apóstolos lhes haviam enviado um grupo de
profetas; entre os quais figurava Ágabo (At 11,27).
Temos a sensação de estarmos diante de homens,
diretamente associados a obra dos Doze; é sem dúvida assim que temos de no-los
representar. Os Atos designam-nos sob o nome de profetas e de doutores (At
13,1). Os dois títulos reaparecem em
I Cor 12,28, imediatamente após os Apóstolos. Parece
impossível ver aí unicamente a expressão de dons carismáticos. Profetas e
doutores voltarão a figurar na Didaquê (15,1 e 2). Parece mesmo tratar-se de
ministros eclesiásticos. Em oposição aos presbíteros, que constituem as
hierarquias locais, dão-nos a impressão de exprimirem os ministérios
missionários. A Didaquê estabelece um paralelismo entre os dois (15,1).
Apresentam caráter universal como os Apóstolos, que lhes delegam todos os
poderes ou parte deles, assim como procediam em relação as hierarquias locais.
Acontece aliás que de um grupo passem ao outro. Os Sete, no início membros da
jerarquia local de Jerusalém, tornam-se missionários quando expulsos.
Também é verdade que no grupo missionário com
residência em Antioquia, Barnabé e Paulo constituem dois casos particulares.
Barnabé é nomeado por primeiro. Desempenha o papel de chefe. O que parece supor
que dispõe de delegação mais completa por parte dos Apóstolos. Representa ele
em relação aos demais missionários o que Tiago representa em relação aos
presbíteros de Jerusalém. Possui tudo o que é comunicável no apostolado.
Identifica-se com os andres ellogimoi, de que fala a Epistola de Clemente
(44,1-3) e que são os únicos a possuir autoridade para estabelecerem ministros,
quer dizer, para conferirem ordens. O caso de Paulo é diferente. Afirma ser
Apóstolo no sentido pleno da palavra, quer dizer, que recebeu os poderes
diretamente do Senhor, em vista de uma missão particular. Tal reivindicação
talvez explique sua ruptura com Barnabé.
É deste grupo que na primavera de 45 há de partir
uma missão para a Ásia; a ela o autor dos Atos empresta uma importância particular,
porque marca o início do ministério de São Paulo. Os Atos nos descrevem as
circunstancias da partida. Durante uma assembléia eucarística, Barnabé e Paulo
foram colocados à parte e os demais lhes impuseram as mãos. Não pode tratar-se
de uma ordenação Barnabé e Paulo já estavam investidos dos poderes apostólicos.
Trata-se de um rito missionário. Barnabé e Paulo embarcam em Seleucia porto de
Antioquia. A partir deste momento, a narração de Lucas repousa sobre os
documentos que lhe provêm de São Paulo apresentando indicações históricas e
geográficas notáveis, que fazem com que a evangelização da Ásia nos seja muito
mais conhecida do que a de qualquer região que tenhamos percorrido até aqui.
No entanto tal missão permanece geograficamente
limitada. As cidades evangelizadas serão Perge e Átala na Panfília, Antioquia
na Pisídia, Icônio, Listra e Derbe na Licaônia. O apostolado de Paulo e Barnabé
se exerce primeiro nos meios judeus. Pregam nas sinagogas (At 13,5; 13,14;
14,1) em dia de sábado. Apresentam-se pois como pertencendo a uma seita judia.
Alhures no entanto se dirigem igualmente aos pagãos; em Antioquia, da Pisídia,
os pagãos vêm escuta-los um sábado na sinagoga (At 1 3,44); o mesmo se dá
também em Icônio (14,1). Em Listra, Paulo e Barnabé realizaram um milagre e a
população os toma como Zeus e Hermes, querendo sacrificar-lhes um boi
ornamentado com grinaldas (14,11-12).
Nestas duas regiões, Paulo e Barnabé realizam
conversões tanto entre judeus, prosélitos (13,43; 14,1), como também entre
pagãos (13,43; 14,1). Estabelecem comunidades locais; para o governo, ordenam
"presbíteros" pela imposição das mãos (14,23), como se fazia em
Jerusalém e Antioquia. Encontram porém em toda parte violenta hostilidade dos
meios judeus (13 45). Estes excitam contra eles as populações pagãs. Em
Antioquia da Pisídia, são as autoridades da cidade que se vêem sublevadas pêlos
judeus (13,50). Em Icônio e Listra é a população (14,2; 14,19). De fato a
acolhida junto aos pagãos é mais favorável do que junto aos judeus. Esta averiguação
é nova. E decisiva para São Paulo. A partir deste momento, começa ele a
elaborar sua teologia da rejeição dos judeus e da conversão dos pagãos
(13,46-47). Vemos aparecer nesta hora novo tipo de querigma, que já não apela
para o cumprimento das profecias, mas para a aliança de Noé (14,15- 17) . O
traço marcante das comunidades licaônicas e pisidianas há de ser o da
importância do elemento provindo do paganismo. São Paulo não havia buscado tal
resultado. Há de suscitar-lhe mesmo graves problemas.
A missão de Paulo, é ela a única em direção ao
Ocidente? Os Atos nos informam, que em 43, após a morte de Tiago, Pedro deixa
Jerusalém, indo "para um outro lugar" (At 12,17). Não se falará mais
dele antes de 49, quando o encontraremos no concílio de Jerusalém. Nenhum texto
canônico nos diz alguma coisa sobre sua atividade missionária durante este
tempo. Mas Eusébio escreve que foi a Roma, no início do reinado de Cláudio pelo
ano de 44. (H.E. 2,14,6). Parece certo por outro lado que Roma e evangelizada
durante o período que vai de 43
a 49. Suetônio conta que Cláudio expulsa os judeus em
49, porque agitavam "sob o incentivo de Chrestos". Isso atesta a
existência de discussões entre judeus e judeu-cristãos, provocando conflitos
que chegam aos ouvidos do imperador. Exatamente em 51, Paulo encontra em
Corinto judeus convertidos expulsos de Roma por Cláudio. São Áquila e Priscila.
Em 57, São Paulo se dirigira à comunidade de Roma já considerada importante. Em
60, encontrará ele em Puteoli e em Roma comunidades constituídas.
AUTOR DESCONHECIDO
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