Translate

terça-feira, 6 de outubro de 2015

ESTUDOS 83 - A INCULTURAÇÃO NO PRIMEIRO MILÊNIO

A inculturação no primeiro milênio

Bruno Luiselli, professor de literatura latina, explica em seu último livro como o cristianismo se difundiu nos primeiros séculos entre os iletrados e os pobres, falando na linguagem deles e por meio da sua cultura. Desde o início, a dinâmica da inculturação foi uma exigência óbvia, mesmo que não fosse teorizada. Entrevista com Paolo Mattei
O professor Bruno Luiselli chama “era romano-barbaresca” o período que vai do século V ao VIII d.C. na Europa Ocidental. Séculos de agitação, fronteiras violadas, migração maciça e violenta de populações nômades e pagãs para os territórios do ex-Império Romano. Séculos que a pressa faz identificar sempre com a imagem do pôr-do-sol, do declínio, tendo uma noite de silêncio cultural e humano como conseqüência natural. “Eu, no entanto, sempre estudei esse período com olhos voltados para o seu futuro, não para o passado. Não considero essa era numa ótica retrospectiva, mas prospectiva”, explica a 30Dias o professor de Literatura Latina da Universidade La Sapienza e docente do Instituto Patrístico “Augustianum” de Roma, Bruno Luiselli. A ótica “prospectiva” adotada pelo professor permite observar melhor a riqueza dos frutos que durante os séculos da era romano-barbaresca amadureceram na Europa Ocidental em termos de crescimento humano e cultural. Em seu último livro, La formazione della cultura europea occidentale (Roma, Herder, 2003), Luiselli refaz as etapas daquelas grandes transformações. E dá atenção particularmente ao processo de evangelização dos povos do Império e dos povos chamados bárbaros, utilizando categorias sociológicas cunhadas muito recentemente, como “inculturação” e “aculturação”. Fizemos a ele algumas perguntas.


Que sentido tem falar de inculturação nos primeiros séculos do cristianismo? BRUNO LUISELLI: O termo inculturação é uma conquista de hoje, sobretudo da época a partir do Concílio Ecumênico Vaticano II. É a dinâmica por meio da qual a mensagem evangélica e a doutrina cristã entram nas línguas e culturas locais, inculturam-se, para alcançar adequadamente os destinatários da própria mensagem, da própria doutrina. Há vários anos vem florescendo uma rica bibliografia sobre a inculturação. Há congressos sobre o tema e se produz muita teoria. Então, eu me perguntei: uma dinâmica desse tipo, não teorizada como hoje, estava ausente no cristianismo antigo, na Igreja antiga? Comecei a refletir e me dei conta de que muitos aspectos e dinâmicas do cristianismo dos primeiros séculos nada mais eram que inculturação. Não se teorizava sobre a inculturação, mas ela era uma exigência óbvia. E, assim, decidi escrever esta história da cristianização dentro do mundo romano e nas vertentes chamadas bárbaras, germânicas e célticas.


O senhor explica que uma das primeiras manifestações do conceito de inculturação pode ser encontrada no discurso de Paulo aos atenienses no Areópago.
LUISELLI: Sim, é o episódio que se lê nos Atos dos Apóstolos 17, 22-31. Paulo é o primeiro a enunciar que o cristianismo assumiu elementos da cultura pagã, como o altar ao deus desconhecido e o verso do poeta-filósofo grego Arato: “Somos da extirpe desse Deus”. O Apóstolo proclama que aquele altar que os pagãos dedicaram ao deus que não conhecem, eles inconscientemente o ergueram ao verdadeiro Deus. Paulo enuncia, portanto, ter assumido realidades pagãs para servirem aos fins do anúncio cristão. Mas eu gostaria de dizer que a inculturação na história do cristianismo se manifesta ainda antes do discurso no Areópago. Realiza-se pela primeiríssima vez na própria Encarnação, quando a Palavra com P maiúsculo, Deus, assume a natureza humana e se exprime por meio da palavra do homem, no tempo, no lugar e na cultura particulares em que Jesus viveu. “A Palavra se fez carne e veio habitar entre nós”, diz João.

Quem são os destinatários da inculturação cristã nos primeiros séculos?

LUISELLI: Antes de mais nada, os pobres. Em Mateus 11,5, lemos que “aos pobres é anunciada a boa nova”. E os destinatários da primeira das bem-aventuranças (Mt 5,3) são “os pobres de espírito” que, a meu ver, são os pobres realmente, aqueles que não possýem riquezas. É o que confirma a bem-aventurança paralela, de Lucas 6,20, na qual se diz apenas “bem-aventurados os pobres”. Aliás, a definição “de espírito” sublinha, a meu ver, a condição que não permite aos pobres a arrogância e a dogmaticidade típicas das classes economicamente hegemônicas.

Como se exprime na evangelização do mundo romano essa preferência pelos pobres?
LUISELLI: As pessoas pobres, as massas iletradas, são o componente enormemente majoritário da sociedade antiga. Assim, a mensagem cristã se incultura entre a gente pobre, entre as massas iletradas, falando com a linguagem e a cultura delas. Eu mostro neste livro como o latim, a língua em que se exprime a mensagem cristã no momento em que é dirigida às massas do mundo romano, é um latim humilde, degradado. Por isso, os intelectuais pagãos torcem o nariz diante dele. Os apologistas cristãos respondem a suas críticas com uma magnífica tomada de posição antigramatical e antipurista. Como explica Arnóbio: “O que se diz será acaso menos verdadeiro se houver um erro de número ou de caso ou de preposição ou de particípio ou de conjugação?”. O próprio Agostinho mostra, no momento da sua pregação, o desejo de fazer-se entender pelos humildes destinatários de suas palavras: “Que importa a nós as pretensões dos gramáticos? É melhor que vós nos compreendais quando proferimos os barbarismos, do que sejais por nós abandonados quando falamos com eloqüência”; ou: “Ser redargüidos pelos mestres da gramática é preferível a não ser compreendidos pelo povo”.


Mas a mensagem cristã é, por natureza, dirigida a todos...

LUISELLI: Claro. As classes socialmente elevadas, a intelectualidade romana certamente não é excluída da redenção. Portanto, a mensagem cristã se exprime também por meio da cultura da intelectualidade aristocrática. A propósito disso, temos de levar em conta que o cristianismo, mesmo sendo e continuando a ser “religião da Tradição”, é também “religião do Livro”. Os apóstolos de Cristo e seus sucessores levaram ao mundo todo tanto a Tradição oral quanto o Livro, ou seja, o corpus de textos vétero e neoteýtamentário. Os intelectuais cristãos, para ler e entender o Livro por excelência, achavam cômodas e úteis as ferramentas de leitura que a tradição escolástica romana e helenista punha à sua disposição. A cultura profana greco-romana se encontrava, assim, com a cristã. A cultura profana era constituída por gramática, retórica e dialética e aritmética, geometria, música e astronomia, ou seja, os dois conjuntos de disciplinas, as artes liberales, que depois, sucessivamente, já a partir da antigüidade tardia e ao longo de toda a Idade Média, seriam chamados o “trívio” e o “quadrívio”. Esse é um outro tipo de inculturação, totalmente interno ao mundo romano. A mensagem cristã, quando se dirige à intelectualidade pagã, usa uma linguagem apropriada, servindo-se do arcabouço retórico tradicional, como se vê, por exemplo, na literatura de defesa do credo cristão dos ataques da própria intelectualidade. Muitos cristãos foram discípulos de mestres pagãos e se tornaram eles mesmos mestres de gramática e de retórica, com discípulos pagãos. Dessa forma, o cristianismo assimilou e preservou o mais prestigioso produto do paganismo: grande parte da cultura clássica e a escola. Em síntese, pode-se dizer que a inculturação da doutrina evangélica no mundo romano foi a atitude dos cristãos de assumirem e valorizarem duas diferentes culturas que eram expressões próprias daquele mesmo mundo: a cultura humilde das massas, às quais principalmente era dirigida a mensagem cristã, e a cultura elevada da aristocracia.


E o que aconteceu nas vertentes bárbaras do mundo ocidental?

LUISELLI: O cristianismo se difundia segundo a mesma dinâmica de inculturação também entre os povos germânicos e celtas, usando as línguas e as culturas locais quando se tratava de exprimir-se no nível das massas de pobres. Mas quando era preciso explicar o Livro por excelência, não era possível encontrar naquelas vertentes a tradição expressiva, culta, e a doutrina gramatical e retórica presentes no mundo romano. Então se tornou necessário introduzir nas vertentes extra-romanas as mesmas ferramentas de interpretação do texto das Escrituras. Ocorreu, então, naquelas vertentes não romanas a inculturação de segundo nível, de nível mais elevado, transformada em “aculturação”, em sentido romano. Portanto, a dinâmica da inculturação, utilizando as línguas e as culturas locais, legitimava e valorizava essas mesmas línguas e culturas, favorecendo o nascimento de literaturas nacionais em língua vulgar. Ao mesmo tempo, a dinâmica da aculturação em sentido romano criava a koiné intelectual de formação romana capaz de escrever e falar em latim.

 

Dentro do Império havia, especialmente entre os pobres, aqueles que não conheciam o latim. Como era a dinâmica de inculturação nesse caso?

LUISELLI: Sim, também dentro do mundo romano havia muita resistência à romanização, portanto também uma resistência lingüística à latinização. Alguns bispos, sensíveis, se esforçavam por utilizar as línguas e culturas desses povos que hoje definimos “aloglotas”: grupos que faziam parte do mundo político-institucional romano mas não tinham ainda assimilado a cultura romana, tanto que não sabiam exprimir-se em latim. Um exemplo é o da África romana, sobre cuja evangelização é importante levar em conta o týstemunho de Agostinho. Para chegar a populações rurais, Agostinho achava oportuno que se pregasse em língua púnica, ou, como diríamos hoje, mais cientificamente, em língua “neopúnica”. Agostinho não estava em condições de pregar nessa língua, mesmo conhecendo alguns de seus elementos. Servia-se, então, de um de seus diáconos, Lucílio, que falava o púnico. Agostinho considerava tão importante a colaboração desse diácono que recusou-se a cedê-lo ao bispo de Sítifi, irmão carnal de Lucílio, que o requisitara. Agostinho desejava dirigir-se àquele humillimum vulgus, e ele mesmo nos testemunhou que, além das pregações, foram também compostos psalmi abecedários em língua púnica, destinados à instrução cristã.


Como se difundia o cristianismo entre os povos não romanos?

LUISELLI: A cristianização dos primeiros séculos não foi oficial, não era organizada do alto. Eram várias as oportunidades. Os prisioneiros, por exemplo. Os cristãos capturados durante as invasões bárbaras chamavam a atenção de seus senhores, que ficavam fascinados com sua humanidade boa e positiva. Essa dinâmica é documentada já na segunda metade do século III. Um poeta cristão muito interessante, Comodiano, fala dela claramente quando conta que Godos pagãos invasores davam alimento a cristãos prisioneiros. Outro canal eram os mercadores, protagonistas de contatos entre o mundo romano “intralimitâneo” - aquém das fronteiras do Império - e o mundo “extralimitâneo” - além das fronteiras do mundo romano. Tácito nos fala deles. Não se tratava de uma cristianização culta nem organizada. Eram mais encontros entre pessoas comuns, gente do povo. Portanto, para sintetizar: na vertente gótica, na vertente germânica - tanto para lá do Reno quando no âmbito britânico, ou seja, entre os anglo-saxões - e na vertente céltica, ou seja, no extremo Ocidente da Britânia e na Irlanda, pude constatar como as primeiras sementes de cristianismo foram difundidas justamente por essas pessoas humildes. Era assim que nasciam os primeiros fiéis. A Igreja oficial chegava sempre num segundo momento, ou seja, quando se dava conta dessa presença de fiéis no mundo não romano. Aí eram criados bispos ad hoc, enviados como pastores.
m seu livro, o senhor refaz a história da cristianização até o século IX. Em 813, acontece o Concílio de Tours, num certo sentido a “oficialização” da inculturação cristã...
LUISELLI: O Concílio de Tours representa uma guinada na história, um momento fundamental. No cânon 17, a comunidade dos padres conciliares estabelece que os textos da pregação herdados pela grande tradição cristã patrística anterior não fossem mais repetidos em latim, mas em “rusticam Romanam linguam aut Theodiscam, quo facilius cuncti possint intellegere quae dicuntur”, ou seja, na língua rústica “romana” ou na língua “alemã”, para que todos pudessem compreender mais facilmente o que era dito. Trata-se do reconhecimento dos dois grandes componentes geoculturais que constituíam o império de Carlos Magno: o mundo que fora romano, o mundo romance, de tradição latina, até a região do Reno; e o mundo germânico, da região do Reno em diante. No concílio de Tours, havia bispos de um ou de outro componente. Na vertente romance, a pregação passaria a ser, daquele momento em diante, feita em língua “romana”, mas “rústica”, ou seja, nos falares que descendiam do latim; no outro lado, nos falares germânicos. Essas duas grandes realidades geopolíticas - o romance ex-gálico, hoje francês, e o germânico - tornaram-se nações protagonistas da história da Europa e do mundo.


AUTOR DESCONHECIDO

Nenhum comentário:

Postar um comentário