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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

TEOLOGIA 18 - A MODERNIDADE E A TEOLOGIA: QUESTÕES ACERCA DA REVELAÇÃO E DA RAZÃO

A Modernidade e a Teologia: Questões Acerca da Revelação e da Razão

Não refuto os ideais, apenas calço luvas diante deles... Nitimur in vetitum: neste signo vencerá um dia minha filosofia, pois até agora o que se proibiu sempre, por princípio, foi somente a verdade.
(F.W. Nietzsche (2000b: Prólogo, §3)


 Considerações Preliminares

A modernidade, segundo afirma alguns teóricos, data da chegada do europeu na América. Isso se formos olhar do ponto de vista histórico, ao passo que para alguns teóricos será inaugurada, dentro das ciências naturais, por Galileu e sua teoria heliocêntrica, onde a Terra giraria em torno do sol. Em contrapartida, do ponto de vista filosófico, ela é inaugurada pelo racionalismo cartesiano. Como se percebe são vários marcos, antes mesmo de começar este texto gostaria de me limitar ao ponto de vista filosófico.
Segundo Vergote (2002), a palavra será utilizada, em um primeiro momento, já no século XII, com o significado de recente (do latim modernus), ou seja, ela exprimiria algo que chegaria como uma descoberta. Logo em seguida, já no século XVI, será introduzida na língua francesa com uma utilização diferenciada, pero no mucho; neste momento ela passa a significar “progresso do saber”, além de uma ruptura com a tradição, no entanto, exprimindo um progressismo otimista.
Dentro das ciências naturais a palavra “moderno” surgirá com os experimentos de Francis Bacon, século XVI (contemporâneo de Galileu Galilei), onde:
(...) concebe uma nova filosofia do saber: a que deve substituir a lógica aristotélica pelo método de indução sistemática; ele propõe assim as bases lógicas da ciência experimental. (VERGOTE, 2002: p.40)
Como se percebe, a noção de modernidade trará incutida em seu gérmen uma crítica à Grécia Clássica, e aos preceitos fundadores dos valores ocidentais. Do ponto de vista teológico, é neste momento que começa-se a questionar uma ética que tinha sido utilizada pelos teóricos do cristianismo já em sua fundação (seria a metafísica aristotélica). Os teóricos saem do campo da lógica aristotélica para inaugurar uma filosofia experimental, onde o homem e não o divino ditariam as regras e regeriam os valores.


 Modernidade Enquanto Distinção entre Fé e Razão

Neste sentido, a grande “contribuição” da modernidade seria distinguir a fé da ciência, ou mesmo da lógica racional. Anteriormente, no Medievo, Tomás de Aquino já havia feito esse diferencial, mas ainda sob forte influência da lógica aristotélica.
Conforme Tomás de Aquino, fé e razão caminhariam como iguais, contudo, em estradas diferentes, mas sempre com um fim comum, a noção de revelação.

Uma vez que fora apresentada a figura de Tomás de Aquino, nada mais justo que caracterizá-lo mais pontualmente. A escolástica tomista se respalda na diferenciação entre filosofia e teologia, a saber: “A favor dos escritos de Aristóteles e com o olhar posto sobre a teologia da criação e da revelação...” (Idem: p.53)
Ao mesmo tempo em que reconhece a autonomia da razão, busca o monoteísmo bíblico para afirmar a ordem natural daquilo que fora criado por Deus, sob os auspícios da revelação, logo, mostrado pela fé. Com efeito, a escolástica tomista é uma filosofia orientada pela revelação cristã e seus preceitos morais, ou noutras palavras, fica bastante claro a distinção fé/razão, apesar da entrada constante da razão aristotélica na estrutura cristã (porém, não podemos nos esquecer que o cristianismo se utilizou da metafísica aristotélica, divisão alma/corpo, para reforçar sua teologia formativa).
Apesar de não visualizarmos imediatamente a possível convergência entre a razão autônoma e a fé, os teólogos vêem neste momento a entrada da modernidade na Igreja, isto é, noções de que o Medievo seria a Era das Trevas não vai muito de encontro a esta afirmativa, quando afirmamos essa “pré-modernidade”. Talvez esta noção de Era das Trevas não seja mais que uma construção, notadamente anti-clericalista, do Iluminismo e sua ânsia latente de apagar uma “inteligência” vinculada ao “Antigo Regime” (também uma construção ideológica para negar a tradição).

 O Espírito Tomista e a Revelação

Após tão longo parênteses, faz-se soberano retomarmos nossa discussão a respeito do gérmen da modernidade. Neste contexto, o espírito tomista em seu tempo, ao analisarmos do ponto de vista do progressismo otimista, tem um pouco de moderno. Todavia, esta “modernidade” advirá da tradição, uma vez que é neste momento que os escritos de Aristóteles chegam à Europa. Surge então a diferenciação que Tomás de Aquino faz entre fé e razão, entretanto, o mais patente nesta distinção é a noção de revelação, mostrando que a fé, por advir desta revelação, se encontra acima da própria razão.
Segundo o Dei Verbum, a natureza da revelação advém do próprio Deus, uma vez que aprouve dele “revelar-Se a Si mesmo”, com a intenção de fazer a comunhão entre os homens e a Santa Sé. Seria esta revelação o cume da fé se termos em mente a noção de que a mesma tenha vindo de Deus. Em face disso, de acordo com Tomás de Aquino, nada pode estar acima da graça, eis o grande diferencial que o pensador aponta (com relação à razão), a esta nova construção filosófica que está varrendo toda a Europa, haja a vista a quantidade de conventos e monastérios que estão surgindo, e ainda, isso também fica bastante evidente quando vemos que as universidades, na sua maioria, estão nas mãos da Igreja. Ademais, o maior testemunho desta revelação seriam as coisas criadas por Deus, ou seja, um:
Permanente testemunho de Si e, além disso, no intuito de abrir o caminho de uma salvação superior, manifestou-Se a Si mesmo desde os primórdios a nossos primeiros pais. (s/d: §2)
Ainda, seguindo esta linha de raciocínio, o Cristo encarnado se apresentaria como a plenitude da Revelação, pois, desde os projetos do Antigo Testamento, tem-se anunciada a chegada do Deus vivo e encarnado. No entanto, a crítica a esta noção é que traçará o caminho dos modernos, como os Iluministas inspirados no racionalismo de Descartes (apesar de Descartes considerar a noção da revelação, junto ao seu cogito), pode-se dizer que a crítica deste último seria uma crítica à tradição, tal como fora instituída no século XIV, não uma crítica à revelação.

 Modernidade e Secularização: Algumas Considerações

Retomando a discussão que fora iniciada nos primeiros parágrafos deste texto, a modernidade, enquanto crítica da tradição, tem no século XV uma crítica contumaz à religião. Neste momento busco uma célebre frase de Pico de la Mirandola:
Ó Adão, não te demos um lugar determinado, nem uma forma própria, dons determinados ..., de modo que podes obtê-los de acordo com tua própria decisão, tua própria vontade. Tu determinarás tua natureza segundo a tua vontade. Tu és o único ser não restrito por nenhum limite a não ser o da tua vontade, que te dei. (apud VERGOTE, 2002: p.40)
Como se percebe, um dos pontos mais dogmáticos do cristianismo começa a ser questionado, é a noção de livre-arbítrio, fervorosamente defendida por Agostinho e que se remete ao chamado pecado original. Nem o próprio Descartes, anterior a Mirandola, preceptor da modernidade do ponto de vista filosófico, foi tão contumaz quanto ao cristianismo.
Com efeito, o que percebemos em Descartes é uma crítica à razão, até então utilizada pelos reflexos do Medievo, existe sim um alijamento da Igreja, embora não haja uma crítica mais veemente, uma vez que o cogito cartesiano conseguiu justificar a existência de Deus, por meio da inefabilidade. Apesar de haver um distanciamento da religião, a religiosidade ainda prospera.
À luz destas considerações, segundo alguns teólogos, este é o início da secularização, levando até a Revolução Francesa o prenúncio de um golpe mais forte na religião, é o caso dos enciclopedistas como Voltaire e Diderot; este último tem uma célebre frase, para caracterizar a secularização: “Nenhum homem será livre enquanto o imperador não for degolado com as tripas do último padre.” Um exemplo significativo do anti-clericalismo Iluminista, arduamente utilizado por Robespierre, Marat, Danton e outras personagens da Revolução Francesa. Contudo, apesar de criticar o clericalismo, o próprio lema da Revolução é extremamente cristão: Liberté, Egalité e Fraternité. O que nos faz pensar o seguinte, até que ponto os revolucionários foram críticos da religiosidade?
Este exemplo serve, apenas, para afirmar o seguinte, somente no século XIX a religião sofre seu maior golpe, principalmente pelos idos de 1888, quando Nietzsche escreve O Anticristo, todavia deixemos esta discussão para um outro momento deste texto.
Quando Voltaire questionou a Igreja, o fez com o propósito de questionar tudo aquilo que ela representava, no caso, seria o absolutismo e o “poder divino dos reis”, isto é, criticava-se a Igreja “de tabela”, pois ao imaginá-la como corpo integrante do Antigo Regime, ela estaria tão condenada quanto a própria monarquia.

Partindo da premissa do temor, Voltaire tenta descaracterizar a religião, dizendo que os homens a seguem unicamente com o temor de perder o paraíso celeste, isso fica bastante claro no seguinte fragmento:
Não se adora, não se crê senão naquilo que se teme; todas as crianças olham para o céu com indiferença; mas estruja o trovão e elas temerão, irão se esconder. (VOLTAIRE, 2002: p.444)
É patente a crítica de Voltaire neste fragmento; seguindo sua linha de raciocínio, se a religião não fosse pintada como o estrujar do trovão e Deus não fosse “tão vingativo” como muitos ainda o encaram, não se tinha necessidade de abolir a religião, ao contrário de Diderot que é mais contundente quanto ao malefício da Igreja.
Numa palavra, ao questionar a religião, devido seu caráter vingativo, ou mesmo dogmático, não estaria Voltaire apresentando uma teologia do homem(se é que podemos usar o termo teologia para caracterizar o homem)? Ou ainda, não estaria Voltaire querendo propor uma moral que não sofresse nenhuma interferência de um patamar superior? Pelo que se percebe em seu discurso, a partir do momento em que o homem não temer mais a natureza, o mesmo se indisporia com qualquer força superior. Com efeito, notamos o ponto de partida de vários outros pensadores para questionar a religião, é o caso de Feuerbach no início do século XIX e, de forma mais contundente, de Nietzsche com sua caracterização de Supra-Homem.

Enfim, a grande crítica de Voltaire estaria direcionada, basicamente, ao dogma e à pretensa atitude da Igreja, de ser a veladora da verdade. Ou, nas suas palavras:

(...) ela é a origem de todas as tolices e de todas as perturbações imagináveis. Tem sido a mãe do fanatismo e da discórdia civil. Se há uma inimiga declarada do gênero humano é ela. Atentai para isso. (2002: p.451)

Retomando ao racionalismo cartesiano, marco filosófico da modernidade, o homem passa a se utilizar do cogito (dúvida) para melhor interpretar o mundo à sua volta; não que os medievalistas não faziam tal uso, todavia delegavam à fé (revelação) o papel que Descartes delega à razão. Eis o grande diferencial do pensamento moderno e o motivo dos pesquisadores afirmarem que Descartes seria o marco da secularização.

 Cogito, Ergo Sum

Seguindo quatro passos que não considero importante comentá-los aqui, uma vez que este texto fugiria ao controle de meu “cogitare”, o método cartesiano, para se chegar ao racionalismo moderno, desembocaria na seguinte assertiva:

Como, porém, nessa época, desejasse dedicar-me unicamente à pesquisa da verdade, achei melhor fazer justamente o contrário e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, com o objetivo de verificar se restaria, depois, alguma coisa em minha crença que fosse inteiramente indubitável. (DESCARTES, 2001: p.41)

Tentando elucidar melhor esta afirmativa, imagino que todo o método cartesiano teria como ponto de partida a dúvida. Somente através dela o filósofo poderia se dedicar à construção de uma “verdade definitiva”, onde o espectro da crença e da falsidade não poderia mais nos enganar.

Em contrapartida, mesmo afirmando que seu método seria totalmente objetivo, e que o duvidar de tudo leva a isso, ele tentará justificar a subjetivação de Deus, por intermédio do mesmo. É esta discussão que pretendo desenvolver a partir deste ponto; a modernidade cartesiana não nega a revelação, ao mesmo tempo em que se apresenta como criadora de uma ciência sem dogmas. Sendo um pouquinho ousado: o cartesianismo não foge, em definitivo, do tomismo medieval, é fato que ele parte de uma premissa diferenciada, ou melhor, Tomás de Aquino parte da premissa do empirismo, enquanto Descartes questiona este empirismo, demonstrando que a existência de Deus pode ser comprovado posteriormente, não como uma observação empírica.
Como é perceptível na obra de Descartes, o mesmo não nega a revelação, pois é a partir dela que fundamentará a natureza inteligente e diferenciada de Deus. Para confirmar isso, ele parte da premissa de que o mundo inteligente, por ser assim, deveria ser uma criação de um Ser Supremo, dotado de inteligência perfeita e, destarte, sem o cogitare, ou melhor, que não tivesse em seu cognoscente divino a dúvida.
Neste sentido Deus seria uma natureza inteligente que se sublima, subordinando as demais, desta forma, não tem dúvidas de nada. Ora, se Descartes parte da dúvida para questionar o mundo, logo, ele não tem uma natureza distinta dos demais homens, sendo, com efeito, detentor da cognoscência do cogitare. Por outro lado, se Deus é a própria sublimação da inteligência, por intermédio da revelação, Ele se distingue dos homens, não demonstrando o cogito, ergo sum.
Como é a premissa da dúvida que caracteriza o racionalismo cartesiano, Deus não se adequa a esta premissa, vejamos:

A dúvida, a inconstância, a tristeza e coisas semelhantes não podiam existir em Deus, uma vez que eu próprio me sentiria feliz se pudesse estar isento delas. Além disso eu tinha idéias de muitas coisas sensíveis e corporais, pois mesmo supondo que sonhava e que tudo o que via ou imaginava era falso, nem por isso podia negar que as idéias a respeito existiam de fato no meu pensamento. Mas tendo observado em mim, com muita clareza, que a natureza inteligente é diversa do corporal, e considerando que toda composição é uma prova de dependência, sendo esta manifestante um sujeito, julguei que Deus não poderia ser perfeito se fosse composto dessas duas naturezas e, por conseguinte, não o era, e que, se no mundo havia corpos, inteligências ou outras naturezas que não eram inteiramente perfeitas, a sua existência devia depender do poder de Deus, de maneira que não pudessem subsistir um só momento sem ele. (2001: p.43)
Como se percebe, Descartes divide o mundo entre duas naturezas, a corporal: própria da dúvida e dos homens, e a inteligente: resposta à dúvida, logo, caracterizada por Deus. Ainda, dando uma opinião sobre esta diferenciação, a grande distinção que temos entre Descartes e Tomás de Aquino é a dúvida, afora, esta distinção entre duas naturezas tem fortes traços do tomismo, como vimos anteriormente.
Numa palavra, apesar de Descartes ser o marco da modernidade, não será ele quem impetrará críticas mais duras sobre a religião, os iluministas talvez seriam aqueles que iniciariam estas críticas, como pudemos ver em Diderot e Voltaire, entretanto, apenas para lembrar: ainda assim não é uma crítica tão contumaz, por mais que quisessem ter feito isso.
Em face disso, temos que esperar o século XIX e a virada para o XX (talvez por ser um momento em que a humanidade passa por um progresso científico muito acelerado), para que surja as críticas na forma de uma contracorrente filosófica.
Afora, este seria o momento em que o homem, por estar tão envolvido em sua crença racionalista, almejasse tomar o lugar de Deus, em um âmbito mais objetivo.
 Os Oitocentos e a Fé
Vergote (2002) não considera o conceito de pós-modernidade, o que não descaracteriza nossa denominação, uma vez que me utilizarei da mesma para definir aquilo que fora pensado posterior a Descartes, principalmente no século XIX. A começar por Feuerbach ao afirmar a necessidade de Deus através da limitação humana, dizendo que só precisamos dele quando sentimos necessidade de uma força maior. Em síntese, quando o homem se encontra com sua finitude ele aspira superar suas limitações, criando um Ser que seria o projeto de tudo que gostaria de ser. Assim, quanto menor o domínio que o mesmo tem com relação à natureza, mais ele se apega a um Ser transcendente, criando Deus à sua “imagem e semelhança”, ademais, quando não precisa mais de Deus, o mata.
À luz destas considerações, Feuerbach, enquanto exemplo de pensamento filosófico, inaugura a teologia da morte de Deus, até então, como pudemos ver, a Igreja, na qualidade de representação da fé, não tinha sido questionada tão veementemente como dogma. Os iluministas apenas abriram o caminho a esta crítica, todavia, somente no século XIX é que ela se solidifica, a começar por Feuerbach. A partir do momento em que, pretensamente, explica-se a necessidade de Deus, o faz para descaracterizá-lo, propondo então sua morte.
Além dele temos o materialismo histórico dialético que aprofunda esta situação, afirmando que Deus e religião (neste momento, de acordo com Marx, não se diferencia a noção de Igreja com a de Deus) são mera alienação humana. Criados unicamente para manter o homem em seu patamar acrítico, faz-se mister desalienar o homem, destruindo a religião.
Olhando de um ponto de vista histórico, esta necessidade da desconstrução da religião tem o fundamento de libertar o homem do jugo burguês, uma vez que a Igreja não oferecia respostas aos problemas de exploração e miséria do homem (ao contrário, ela simplesmente “desconhecia” estes problemas, evitando interferir nesta luta de classes, segundo o materialismo histórico dialético), a mesma não era vista com bons olhos, chegando até mesmo a contribuir com esta exploração, se aliando à ideologia dominante com o intento de reforçá-la; eis o caráter alienante da religião.
Ao criticar a religião exercia também a crítica à revelação, pois os problemas humanos eram terrenos, qual a necessidade, então, de se reforçar esta ideologia? Partindo dessa premissa que, em meados de 1880, Nietzsche começa a criticar ardorosamente o cristianismo.
Desta forma, a modernidade, ao trazer o homem para o centro das relações sociais, o trouxe também para o centro das relações intelectivas. Se se inaugura um período em que o homem havia matado Deus (ou mesmo a Igreja, ao passo que vários pensadores confundiram ambas coisas) fazia-se necessário apresentar algo para colocar no lugar. Talvez os modernos quisessem colocar a razão, mas por diversos motivos apenas inverteram o papel de Deus, a saber: é o caso do positivismo de Auguste Comte que, partindo do que ele chamara de metafísico, passando pelo empirismo e desembocando assim num estado positivo, conseguiria colocar o homem no centro da verdade, ademais, esta criação tinha pretensões claras de tornar-se uma religião, como de fato aconteceu com algumas escolas no Brasil, principalmente aquelas ligadas a caserna, como bem atesta Humberto de Campos (1954), ao fazer a crítica literária a um livro que saíra publicado em 1929 com o nome de Religiões Comparadas (a começar pelo título do livro se percebe a intenção do autor), escrito por Gustavo Macedo:
O positivismo, sabem-no todos, visa, ou visou, harmonizar o sentimento, a imaginação e o raciocínio, isto é, pôr [sic] a religião de acôrdo [sic] com a ciência ou, melhor, fazer da ciência uma religião. (1954: p.419)
Como o fragmento acima assevera, existia a intenção clara de substituir o Deus judáico-cristão por um outro menos “dogmático”, não importa a que custos. Talvez a escola positivista tenha sido a mais “moderna”, isso quando visualizamos esta pretensão bastante secular de entender o mundo e o homem. Mais o mundo, porque o positivismo via no homem apenas uma peça para o efetivar da razão.

Como se percebe, os primeiros modernos alijavam uma religião para colocar outra no lugar. A mentalidade religiosa ainda era a única estrutura mental que não conseguiam “jogar fora”, característica recorrente da modernidade. Esta estrutura mental era tão forte que, ulteriormente, o Concílio Vaticano II assimilará todas estas noções apenas como confirmação da graça, ou seja, apesar do caráter anti-religião dos modernos, sua religiosidade via-se impressa em cada uma das frases expressas nestes longos textos filosóficos.

Com efeito, em finais do século XIX, enfim, esta religiosidade cai por terra; a partir deste momento no texto me referirei a Nietzsche, especificamente em sua obra O Anticristo. Talvez o único que criticou, com conhecimento de causa, o dogma da revelação, haja vista que, ainda hoje, vários teólogos ainda não conseguiram achar as “pernas de cristal” de Nietzsche, ademais, vou mais longe: não seria o filósofo o primeiro teólogo da pós-modernidade? Apesar de Vergote (2002) não considerar este termo, afirmo que foi o único, naquele momento, que conseguiu se desvincular da modernidade, tão religiosa como se apresentava.

 Nietzsche, Teólogo da Pós-Modernidade?

Com a intenção de criticar o cristianismo, a primeira coisa que Nietzsche solapa é a noção de livre-arbítrio e pecado original, atacando escancaradamente a estrutura que inaugura a noção de revelação. A saber: o Cristo encarnado seria a própria revelação, profetizada na Antigo Testamento, única criatura que é, também criador ao mesmo tempo, por conseguinte, único ser puro que não tinha, sequer, o pecado original, uma vez que fora concebido pelo Espírito Santo.
Neste sentido, imagino, concebe-se o dogma da revelação, em contrapartida Nietzsche atesta o seguinte:
Nós freqüentamos outras escolas, adotamos outro método. Tornamo-nos, em todos os aspectos, mais modestos. Já não fazemos descender o homem do “espírito”, da “divindade”, voltamos a colocá-lo entre os animais. Para nós, o homem é o animal mais forte, porque é o mais hábil; toda a sua espiritualidade é disso conseqüência. Repudiamos por outro lado uma vaidade que, a tal respeito, muito gostaria de novamente se fazer ouvir: considerar o homem como tendo sido o grande desígnio prévio da evolução animal. A verdade é que ele não é de modo algum a coroa da criação; cada ser encontra-se ao seu lado no mesmo grau de perfeição... Afirmá-lo é, ainda assim, vã pretensão, pois o homem é de todos os animais o mais imperfeito, o mais mórbido, o mais perigosamente desviado dos seus instintos - ainda que, com tudo isto, seja também o animal mais interessante! No que respeita aos outros animais, Descartes, foi o primeiro, com louvável ousadia, a considerá-lo como máquina: toda a nossa fisiologia esforça-se por comprovar este princípio. Por isso, logicamente, não colocamos o homem à parte, como fez Descartes; em tudo o que hoje se concebe do homem, nada há que não esteja integrado nesta concepção do homem como máquina. Noutros tempos concedia-se ao homem o “livre-arbítrio” como um dote de um mundo superior; hoje, até a vontade lhe retiramos, na medida em que não pode ser mais entendida no sentido de um atributo. O antigo termo “vontade” ou “arbítrio” só serve para designar uma resultante, uma espécie de reação individual que necessariamente se segue a um conjunto de excitações concordantes ou contraditórias - a vontade já não “age” nem “se move”... Outrora via-se na consciência do homem, no seu “espírito”, a prova da sua origem superior, da sua divindade; para aperfeiçoar o homem, aconselhavam-no, à semelhança da tartaruga, a recolher os seus sentidos em si mesmo, a suprimir as relações com o mundo terrestre, a desprender-se do seu “invólucro mortal”: então não ficaria dele senão o essencial, o “espírito puro”. Também aí alteraremos o pensamento: consideramos precisamente a consciência, o “espírito”, como sendo o sintoma de uma relativa imperfeição do organismo, como um ensaio, um tatear, uma imperícia, como que um trabalho em que se consome inutilmente muita energia nervosa - negamos que qualquer coisa possa ser feita com perfeição sempre que seja feita conscientemente. O “puro espírito” é uma pura estupidez: se retirarmos o sistema nervoso e os sentidos, o chamado “invólucro mortal”, o resto é um erro de cálculo - e isso é tudo!... (2000a: §14)
De uma forma explosiva (pois o próprio Nietzsche se considerava uma dinamite), o filósofo solapa o que o cristianismo tem de mais crucial, destarte, solapa a estrutura primeva do cristianismo e o ponto de partida de todo o dogma da revelação.

Ponto de partida de toda crítica: a própria vontade, sendo o cristianismo a negação da vontade, em detrimento do meta-físico, como seria possível encarar o livre-arbítrio, se a vontade fora excomungada logo na “abertura” do mesmo? Antes mesmo do homem se “vestir” do livre-arbítrio, coibiu-lhe uma possibilidade de adentrá-lo. Como bom filólogo que é, Nietzsche busca a etimologia de arbítrio e tem uma surpresa: vontade é sinonímica de arbítrio, por conseguinte, como pode haver este “livre” que antecede a palavra se, na sua origem, já encarcerou a vontade do homem?
Numa palavra, se a revelação interliga-se ao pecado original e ao livre-arbítrio, como é possível então a livre-vontade agir, pois, a mesma fora alijada antes mesmo de existir? Revelação pressupõe fé e graça, logo, patamares que o espírito precisa atingir, entretanto, negamos a vontade e nosso espírito criador; como então é possível vislumbrar uma sublimação do homem se, anteriormente, foi expulso de seu cerne os instrumentos necessários para se atingir esta superação?
Como nos apresenta Nietzsche, esta estrutura é contraditória na própria etimologia, porque a sublimação deveria surgir do arbítrio; se arbítrio é vontade, e se a vontade fora alijada, quando é que chegaremos a esta sublimação; no além?
Nas palavras do filósofo, cria-se uma estrutura concreta amparada em “um comércio entre seres imaginários...” (2000a: §15) Como a revelação pode mostrar a verdade se parte de premissas cognoscentes imaginárias e niilistas?
Enfim, as críticas impetradas por Nietzsche, com seu ardoroso discurso, solaparam as bases do cristianismo, talvez tenha sido na pós-modernidade o momento crucial para a encruzilhada da fé. Pode-se dizer que a revelação, tendo como respaldo Nietzsche, tem visto seus paradigmas ruírem. Ao negar a criatura, nega-se também a sublimação e, por conseguinte, o criador. Não se cria verdades a partir de dogmas nem de seres imaginários, a verdade só pode ser criada a partir de conhecimento, reflexão e uma grande “ruminação” sobre qualquer obra ou qualquer outro conhecimento. O conhecimento surge do ato reflexivo do cognoscente sobre outro conhecimento já estruturado filosoficamente.

 Considerações Finais
Desde sua criação efetiva, a mais ou menos 2000 anos, o cristianismo tem passado por vários cismas, mas nunca havia sofrido um golpe tão forte como aquele impetrado por Nietzsche.
Suas considerações, além de pertinentes, nos são apresentadas em um período de grandes transformações da humanidade, haja visto os prenúncios de uma guerra mundial (início do século XX) e o acelerado desenvolvimento das estruturas de comunicação e de transporte. O próprio Nietzsche afirmava que sua teoria era extemporânea, e junto com sua teoria várias outras surgiram, é neste momento que o mundo almeja entrar no progresso e no desenvolvimentismo.
Com efeito, tentando entender o mundo secular, além de afirmar sua fé, a Igreja também passa por estas transformações. Ela se moderniza, porém sempre reafirmando a tradição. Até mesmo sua modernização vem para afirmar a tradição, seria contraditório se não entendermos este processo, como não é neste texto que conseguiria apresentá-lo, apenas aponto para ser desenvolvido em um outro momento, mesmo porque a nossa pretensão já fora, aqui, muito bem exposta.

Numa palavra, o momento atual vem para solapar várias estruturas mentais reinantes e, pode-se dizer que Nietzsche fora o primeiro a encarar de frente esta estrutura, resta saber, após este longo percurso, o que fazer. Imagino que temos os mecanismos necessários, precisa-se agora utilizá-los... 



Bibliografia Utilizada
CAMPOS, Humberto de (1954). Crítica: segunda série. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson inc.

COMTE, Auguste (1997). Catecismo Positivista. São Paulo: Nova Cultural (Coleção os Pensadores).

CONCÍLIO Vaticano II (s/d). Dei Verbum (Constituição Dogmática Sobre a Revelação Divina). São Paulo: Edições Paulinas.

DESCARTES, Renê (2001). Discurso do Método. São Paulo: Martin Claret.

NIETZSCHE, Friedrich (1999). Obras Incompletas. São Paulo: Nova Cultural (Coleção os Pensadores).

___________________ (2000a). O Anticristo. São Paulo: Martin Claret.

___________________ (2000b). Ecce Homo. São Paulo: Martin Claret.

__________________ (2002). Fragmentos Finais. Brasília/São Paulo: EdUNB/Imprensa Oficial de São Paulo.

VERGOTE, Antoine (2002). Modernidade e Cristianismo: interrogações e críticas recíprocas. São Paulo: Edições Loyola.

VOLTAIRE (2002). Dicionário Filosófico. São Paulo: Martin Claret.

AUTOR DESCONHECIDO
(não me responsabilizo pela posição e/ou leitura teológica do autor)

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