A Modernidade e a Teologia: Questões Acerca da Revelação e da
Razão
Não refuto os ideais, apenas
calço luvas diante deles... Nitimur in
vetitum: neste signo vencerá um dia minha filosofia, pois até agora
o que se proibiu sempre, por princípio, foi somente a verdade.
(F.W. Nietzsche (2000b: Prólogo, §3)
Considerações
Preliminares
A
modernidade, segundo afirma alguns teóricos, data da chegada do europeu na
América. Isso se formos olhar do ponto de vista histórico, ao passo que para
alguns teóricos será inaugurada, dentro das ciências naturais, por Galileu e
sua teoria heliocêntrica, onde a Terra giraria em torno do sol. Em
contrapartida, do ponto de vista filosófico, ela é inaugurada pelo racionalismo
cartesiano. Como se percebe são vários marcos, antes mesmo de começar este
texto gostaria de me limitar ao ponto de vista filosófico.
Segundo Vergote (2002), a
palavra será utilizada, em um primeiro momento, já no século XII, com o
significado de recente (do latim modernus), ou seja, ela
exprimiria algo que chegaria como uma descoberta. Logo em seguida, já no século
XVI, será introduzida na língua francesa com uma utilização diferenciada, pero
no mucho; neste momento ela passa a significar “progresso do
saber”, além de uma ruptura com a tradição, no entanto, exprimindo um
progressismo otimista.
Dentro das ciências naturais
a palavra “moderno” surgirá com os experimentos de Francis Bacon, século XVI
(contemporâneo de Galileu Galilei), onde:
(...) concebe uma nova
filosofia do saber: a que deve substituir a lógica aristotélica pelo método de
indução sistemática; ele propõe assim as bases lógicas da ciência experimental.
(VERGOTE, 2002: p.40)
Como se percebe, a noção de
modernidade trará incutida em seu gérmen uma crítica à Grécia Clássica, e aos
preceitos fundadores dos valores ocidentais. Do ponto de vista teológico, é
neste momento que começa-se a questionar uma ética que tinha sido utilizada
pelos teóricos do cristianismo já em sua fundação (seria a metafísica
aristotélica). Os teóricos saem do campo da lógica aristotélica para inaugurar
uma filosofia experimental, onde o homem e não o divino ditariam as regras e
regeriam os valores.
Modernidade
Enquanto Distinção entre Fé e Razão
Neste sentido, a grande
“contribuição” da modernidade seria distinguir a fé da ciência, ou mesmo da
lógica racional. Anteriormente, no Medievo, Tomás de Aquino já havia feito esse
diferencial, mas ainda sob forte influência da lógica aristotélica.
Conforme Tomás de Aquino, fé
e razão caminhariam como iguais, contudo, em estradas diferentes, mas sempre
com um fim comum, a noção de revelação.
Uma vez que fora apresentada
a figura de Tomás de Aquino, nada mais justo que caracterizá-lo mais
pontualmente. A escolástica tomista se respalda na diferenciação entre
filosofia e teologia, a saber: “A favor dos escritos de Aristóteles e
com o olhar posto sobre a teologia da criação e da revelação...”
(Idem: p.53)
Ao mesmo tempo em que
reconhece a autonomia da razão, busca o monoteísmo bíblico para afirmar a ordem
natural daquilo que fora criado por Deus, sob os auspícios da revelação, logo,
mostrado pela fé. Com efeito, a escolástica tomista é uma filosofia orientada
pela revelação cristã e seus preceitos morais, ou noutras palavras, fica
bastante claro a distinção fé/razão, apesar da entrada constante da razão
aristotélica na estrutura cristã (porém, não podemos nos esquecer que o
cristianismo se utilizou da metafísica aristotélica, divisão alma/corpo, para
reforçar sua teologia formativa).
Apesar de não visualizarmos
imediatamente a possível convergência entre a razão autônoma e a fé, os
teólogos vêem neste momento a entrada da modernidade na Igreja, isto é, noções
de que o Medievo seria a Era das Trevas não vai muito de encontro a esta
afirmativa, quando afirmamos essa “pré-modernidade”. Talvez esta noção de Era
das Trevas não seja mais que uma construção, notadamente anti-clericalista, do
Iluminismo e sua ânsia latente de apagar uma “inteligência” vinculada ao
“Antigo Regime” (também uma construção ideológica para negar a tradição).
O
Espírito Tomista e a Revelação
Após tão longo parênteses,
faz-se soberano retomarmos nossa discussão a respeito do gérmen da modernidade.
Neste contexto, o espírito tomista em seu tempo, ao analisarmos do ponto de
vista do progressismo otimista, tem um pouco de moderno. Todavia, esta
“modernidade” advirá da tradição, uma vez que é neste momento que os escritos
de Aristóteles chegam à Europa. Surge então a diferenciação que Tomás de Aquino
faz entre fé e razão, entretanto, o mais patente nesta distinção é a noção de revelação,
mostrando que a fé, por advir desta revelação, se encontra acima da própria
razão.
Segundo o Dei
Verbum, a natureza da revelação advém do próprio Deus, uma vez que
aprouve dele “revelar-Se a Si mesmo”, com a intenção de fazer
a comunhão entre os homens e a Santa Sé. Seria esta revelação o cume da fé se
termos em mente a noção de que a mesma tenha vindo de Deus. Em face disso, de
acordo com Tomás de Aquino, nada pode estar acima da graça, eis o grande
diferencial que o pensador aponta (com relação à razão), a esta nova construção
filosófica que está varrendo toda a Europa, haja a vista a quantidade de
conventos e monastérios que estão surgindo, e ainda, isso também fica bastante
evidente quando vemos que as universidades, na sua maioria, estão nas mãos da
Igreja. Ademais, o maior testemunho desta revelação seriam as coisas criadas
por Deus, ou seja, um:
Permanente testemunho de Si
e, além disso, no intuito de abrir o caminho de uma salvação superior,
manifestou-Se a Si mesmo desde os primórdios a nossos primeiros pais. (s/d: §2)
Ainda, seguindo esta linha de
raciocínio, o Cristo encarnado se apresentaria como a plenitude da Revelação,
pois, desde os projetos do Antigo Testamento, tem-se anunciada a chegada do
Deus vivo e encarnado. No entanto, a crítica a esta noção é que traçará o
caminho dos modernos, como os Iluministas inspirados no racionalismo de
Descartes (apesar de Descartes considerar a noção da revelação, junto ao seu
cogito), pode-se dizer que a crítica deste último seria uma crítica à tradição,
tal como fora instituída no século XIV, não uma crítica à revelação.
Modernidade
e Secularização: Algumas Considerações
Retomando a discussão que
fora iniciada nos primeiros parágrafos deste texto, a modernidade, enquanto
crítica da tradição, tem no século XV uma crítica contumaz à religião. Neste
momento busco uma célebre frase de Pico de la Mirandola:
Ó Adão, não te demos um lugar
determinado, nem uma forma própria, dons determinados ..., de modo que podes
obtê-los de acordo com tua própria decisão, tua própria vontade. Tu
determinarás tua natureza segundo a tua vontade. Tu és o único ser não restrito
por nenhum limite a não ser o da tua vontade, que te dei. (apud
VERGOTE, 2002: p.40)
Como se percebe, um dos
pontos mais dogmáticos do cristianismo começa a ser questionado, é a noção de
livre-arbítrio, fervorosamente defendida por Agostinho e que se remete ao
chamado pecado original. Nem o próprio Descartes, anterior a Mirandola,
preceptor da modernidade do ponto de vista filosófico, foi tão contumaz quanto
ao cristianismo.
Com efeito, o que percebemos
em Descartes é uma crítica à razão, até então utilizada pelos reflexos do
Medievo, existe sim um alijamento da Igreja, embora não haja uma crítica mais
veemente, uma vez que o cogito cartesiano conseguiu
justificar a existência de Deus, por meio da inefabilidade. Apesar de haver um
distanciamento da religião, a religiosidade ainda prospera.
À luz destas considerações,
segundo alguns teólogos, este é o início da secularização, levando até a
Revolução Francesa o prenúncio de um golpe mais forte na religião, é o caso dos
enciclopedistas como Voltaire e Diderot; este último tem uma célebre frase,
para caracterizar a secularização: “Nenhum homem será livre enquanto o
imperador não for degolado com as tripas do último padre.” Um
exemplo significativo do anti-clericalismo Iluminista, arduamente utilizado por
Robespierre, Marat, Danton e outras personagens da Revolução Francesa. Contudo,
apesar de criticar o clericalismo, o próprio lema da Revolução é extremamente
cristão: Liberté, Egalité e Fraternité.
O que nos faz pensar o seguinte, até que ponto os revolucionários foram
críticos da religiosidade?
Este exemplo serve, apenas,
para afirmar o seguinte, somente no século XIX a religião sofre seu maior
golpe, principalmente pelos idos de 1888, quando Nietzsche escreve O
Anticristo, todavia deixemos esta discussão para um outro momento
deste texto.
Quando Voltaire questionou a
Igreja, o fez com o propósito de questionar tudo aquilo que ela representava,
no caso, seria o absolutismo e o “poder divino dos reis”, isto é, criticava-se
a Igreja “de tabela”, pois ao imaginá-la como corpo integrante do Antigo
Regime, ela estaria tão condenada quanto a própria monarquia.
Partindo da premissa do
temor, Voltaire tenta descaracterizar a religião, dizendo que os homens a
seguem unicamente com o temor de perder o paraíso celeste, isso fica bastante
claro no seguinte fragmento:
Não se adora, não se crê
senão naquilo que se teme; todas as crianças olham para o céu com indiferença;
mas estruja o trovão e elas temerão, irão se esconder. (VOLTAIRE, 2002: p.444)
É patente a crítica de
Voltaire neste fragmento; seguindo sua linha de raciocínio, se a religião não
fosse pintada como o estrujar do trovão e Deus
não fosse “tão vingativo” como muitos ainda o encaram, não se tinha necessidade
de abolir a religião, ao contrário de Diderot que é mais contundente quanto ao
malefício da Igreja.
Numa palavra, ao questionar a
religião, devido seu caráter vingativo, ou mesmo dogmático, não estaria Voltaire
apresentando uma teologia do homem(se é que podemos usar o termo teologia para
caracterizar o homem)? Ou ainda, não estaria Voltaire querendo propor uma moral
que não sofresse nenhuma interferência de um patamar superior? Pelo que se
percebe em seu discurso, a partir do momento em que o homem não temer mais a
natureza, o mesmo se indisporia com qualquer força superior. Com efeito,
notamos o ponto de partida de vários outros pensadores para questionar a
religião, é o caso de Feuerbach no início do século XIX e, de forma mais
contundente, de Nietzsche com sua caracterização de Supra-Homem.
Enfim, a grande crítica de
Voltaire estaria direcionada, basicamente, ao dogma e à pretensa atitude da
Igreja, de ser a veladora da verdade. Ou, nas suas palavras:
(...) ela é a origem de todas
as tolices e de todas as perturbações imagináveis. Tem sido a mãe do fanatismo
e da discórdia civil. Se há uma inimiga declarada do gênero humano é ela.
Atentai para isso. (2002: p.451)
Retomando ao racionalismo
cartesiano, marco filosófico da modernidade, o homem passa a se utilizar do cogito
(dúvida) para melhor interpretar o mundo à sua volta; não que os medievalistas
não faziam tal uso, todavia delegavam à fé (revelação) o papel que Descartes
delega à razão. Eis o grande diferencial do pensamento moderno e o motivo dos
pesquisadores afirmarem que Descartes seria o marco da secularização.
Cogito,
Ergo Sum
Seguindo quatro passos que
não considero importante comentá-los aqui, uma vez que este texto fugiria ao
controle de meu “cogitare”, o método
cartesiano, para se chegar ao racionalismo moderno, desembocaria na seguinte
assertiva:
Como, porém, nessa época,
desejasse dedicar-me unicamente à pesquisa da verdade, achei melhor fazer
justamente o contrário e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que
pudesse imaginar a menor dúvida, com o objetivo de verificar se restaria,
depois, alguma coisa em minha crença que fosse inteiramente indubitável.
(DESCARTES, 2001: p.41)
Tentando elucidar melhor esta
afirmativa, imagino que todo o método cartesiano teria como ponto de partida a
dúvida. Somente através dela o filósofo poderia se dedicar à construção de uma
“verdade definitiva”, onde o espectro da crença e da falsidade não poderia mais
nos enganar.
Em contrapartida, mesmo afirmando
que seu método seria totalmente objetivo, e que o duvidar de tudo leva a isso,
ele tentará justificar a subjetivação de Deus, por intermédio do mesmo. É esta
discussão que pretendo desenvolver a partir deste ponto; a modernidade
cartesiana não nega a revelação, ao mesmo tempo em que se apresenta como
criadora de uma ciência sem dogmas. Sendo um pouquinho ousado: o cartesianismo
não foge, em definitivo, do tomismo medieval, é fato que ele parte de uma
premissa diferenciada, ou melhor, Tomás de Aquino parte da premissa do
empirismo, enquanto Descartes questiona este empirismo, demonstrando que a
existência de Deus pode ser comprovado posteriormente, não como uma observação
empírica.
Como é perceptível na obra de
Descartes, o mesmo não nega a revelação, pois é a partir dela que fundamentará
a natureza inteligente e diferenciada de Deus. Para confirmar isso, ele parte
da premissa de que o mundo inteligente, por ser assim, deveria ser uma criação
de um Ser Supremo, dotado de inteligência perfeita e, destarte, sem o cogitare,
ou melhor, que não tivesse em seu cognoscente divino a dúvida.
Neste sentido Deus seria uma
natureza inteligente que se sublima, subordinando as demais, desta forma, não
tem dúvidas de nada. Ora, se Descartes parte da dúvida para questionar o mundo,
logo, ele não tem uma natureza distinta dos demais homens, sendo, com efeito,
detentor da cognoscência do cogitare. Por outro lado,
se Deus é a própria sublimação da inteligência, por intermédio da revelação,
Ele se distingue dos homens, não demonstrando o cogito, ergo
sum.
Como é a premissa da dúvida
que caracteriza o racionalismo cartesiano, Deus não se adequa a esta premissa,
vejamos:
A dúvida, a inconstância, a
tristeza e coisas semelhantes não podiam existir em Deus, uma vez que eu próprio
me sentiria feliz se pudesse estar isento delas. Além disso eu tinha idéias de
muitas coisas sensíveis e corporais, pois mesmo supondo que sonhava e que tudo
o que via ou imaginava era falso, nem por isso podia negar que as idéias a
respeito existiam de fato no meu pensamento. Mas tendo observado em mim, com
muita clareza, que a natureza inteligente é diversa do corporal, e considerando
que toda composição é uma prova de dependência, sendo esta manifestante um
sujeito, julguei que Deus não poderia ser perfeito se fosse composto dessas
duas naturezas e, por conseguinte, não o era, e que, se no mundo havia corpos,
inteligências ou outras naturezas que não eram inteiramente perfeitas, a sua
existência devia depender do poder de Deus, de maneira que não pudessem
subsistir um só momento sem ele. (2001: p.43)
Como se percebe, Descartes
divide o mundo entre duas naturezas, a corporal: própria da dúvida e dos
homens, e a inteligente: resposta à dúvida, logo, caracterizada por Deus.
Ainda, dando uma opinião sobre esta diferenciação, a grande distinção que temos
entre Descartes e Tomás de Aquino é a dúvida, afora, esta distinção entre duas
naturezas tem fortes traços do tomismo, como vimos anteriormente.
Numa palavra, apesar de
Descartes ser o marco da modernidade, não será ele quem impetrará críticas mais
duras sobre a religião, os iluministas talvez seriam aqueles que iniciariam
estas críticas, como pudemos ver em Diderot e Voltaire, entretanto, apenas para
lembrar: ainda assim não é uma crítica tão contumaz, por mais que quisessem ter
feito isso.
Em face disso, temos que
esperar o século XIX e a virada para o XX (talvez por ser um momento em que a
humanidade passa por um progresso científico muito acelerado), para que surja
as críticas na forma de uma contracorrente filosófica.
Afora, este seria o momento
em que o homem, por estar tão envolvido em sua crença racionalista, almejasse
tomar o lugar de Deus, em um âmbito mais objetivo.
Os
Oitocentos e a Fé
Vergote (2002) não considera
o conceito de pós-modernidade, o que não descaracteriza nossa denominação, uma
vez que me utilizarei da mesma para definir aquilo que fora pensado posterior a
Descartes, principalmente no século XIX. A começar por Feuerbach ao afirmar a
necessidade de Deus através da limitação humana, dizendo que só precisamos dele
quando sentimos necessidade de uma força maior. Em síntese, quando o homem se
encontra com sua finitude ele aspira superar suas limitações, criando um Ser
que seria o projeto de tudo que gostaria de ser. Assim, quanto menor o domínio
que o mesmo tem com relação à natureza, mais ele se apega a um Ser
transcendente, criando Deus à sua “imagem e semelhança”, ademais, quando não
precisa mais de Deus, o mata.
À luz destas considerações,
Feuerbach, enquanto exemplo de pensamento filosófico, inaugura a teologia da
morte de Deus, até então, como pudemos ver, a Igreja, na qualidade de
representação da fé, não tinha sido questionada tão veementemente como dogma.
Os iluministas apenas abriram o caminho a esta crítica, todavia, somente no século
XIX é que ela se solidifica, a começar por Feuerbach. A partir do momento em
que, pretensamente, explica-se a necessidade de Deus, o faz para
descaracterizá-lo, propondo então sua morte.
Além dele temos o
materialismo histórico dialético que aprofunda esta situação, afirmando que
Deus e religião (neste momento, de acordo com Marx, não se diferencia a noção
de Igreja com a de Deus) são mera alienação humana. Criados unicamente para
manter o homem em seu patamar acrítico, faz-se mister desalienar o homem, destruindo
a religião.
Olhando de um ponto de vista
histórico, esta necessidade da desconstrução da religião tem o fundamento de
libertar o homem do jugo burguês, uma vez que a Igreja não oferecia respostas
aos problemas de exploração e miséria do homem (ao contrário, ela simplesmente
“desconhecia” estes problemas, evitando interferir nesta luta de classes,
segundo o materialismo histórico dialético), a mesma não era vista com bons
olhos, chegando até mesmo a contribuir com esta exploração, se aliando à ideologia
dominante com o intento de reforçá-la; eis o caráter alienante da religião.
Ao criticar a religião
exercia também a crítica à revelação, pois os problemas humanos eram terrenos,
qual a necessidade, então, de se reforçar esta ideologia? Partindo dessa
premissa que, em meados de 1880, Nietzsche começa a criticar ardorosamente o
cristianismo.
Desta forma, a modernidade,
ao trazer o homem para o centro das relações sociais, o trouxe também para o
centro das relações intelectivas. Se se inaugura um período em que o homem
havia matado Deus (ou mesmo a Igreja, ao passo que vários pensadores
confundiram ambas coisas) fazia-se necessário apresentar algo para colocar no
lugar. Talvez os modernos quisessem colocar a razão, mas por diversos motivos
apenas inverteram o papel de Deus, a saber: é o caso do positivismo de Auguste
Comte que, partindo do que ele chamara de metafísico, passando pelo empirismo e
desembocando assim num estado positivo, conseguiria colocar o homem no centro
da verdade, ademais, esta criação tinha pretensões claras de tornar-se uma
religião, como de fato aconteceu com algumas escolas no Brasil, principalmente
aquelas ligadas a caserna, como bem atesta Humberto de Campos (1954), ao fazer
a crítica literária a um livro que saíra publicado em 1929 com o nome de Religiões
Comparadas (a começar pelo título do livro se percebe a intenção do
autor), escrito por Gustavo Macedo:
O positivismo, sabem-no
todos, visa, ou visou, harmonizar o sentimento, a imaginação e o raciocínio,
isto é, pôr [sic] a religião de acôrdo [sic] com a ciência ou, melhor, fazer da
ciência uma religião. (1954: p.419)
Como o fragmento acima
assevera, existia a intenção clara de substituir o Deus judáico-cristão por um
outro menos “dogmático”, não importa a que custos. Talvez a escola positivista
tenha sido a mais “moderna”, isso quando visualizamos esta pretensão bastante
secular de entender o mundo e o homem. Mais o mundo, porque o positivismo via
no homem apenas uma peça para o efetivar da razão.
Como se percebe, os primeiros
modernos alijavam uma religião para colocar outra no lugar. A mentalidade
religiosa ainda era a única estrutura mental que não conseguiam “jogar fora”,
característica recorrente da modernidade. Esta estrutura mental era tão forte
que, ulteriormente, o Concílio Vaticano II assimilará todas estas noções apenas
como confirmação da graça, ou seja, apesar do caráter anti-religião dos
modernos, sua religiosidade via-se impressa em cada uma das frases expressas
nestes longos textos filosóficos.
Com efeito, em finais do
século XIX, enfim, esta religiosidade cai por terra; a partir deste momento no
texto me referirei a Nietzsche, especificamente em sua obra O
Anticristo. Talvez o único que criticou, com conhecimento de causa,
o dogma da revelação, haja vista que, ainda hoje, vários teólogos ainda não
conseguiram achar as “pernas de cristal” de Nietzsche, ademais, vou mais longe:
não seria o filósofo o primeiro teólogo da pós-modernidade? Apesar de Vergote
(2002) não considerar este termo, afirmo que foi o único, naquele momento, que
conseguiu se desvincular da modernidade, tão religiosa como se apresentava.
Nietzsche,
Teólogo da Pós-Modernidade?
Com a intenção de criticar o
cristianismo, a primeira coisa que Nietzsche solapa é a noção de livre-arbítrio
e pecado original, atacando escancaradamente a estrutura que inaugura a noção
de revelação. A saber: o Cristo encarnado seria a própria revelação,
profetizada na Antigo Testamento, única criatura que é, também criador ao mesmo
tempo, por conseguinte, único ser puro que não tinha, sequer, o pecado
original, uma vez que fora concebido pelo Espírito Santo.
Neste sentido, imagino,
concebe-se o dogma da revelação, em contrapartida Nietzsche atesta o seguinte:
Nós freqüentamos outras
escolas, adotamos outro método. Tornamo-nos, em todos os aspectos, mais
modestos. Já não fazemos descender o homem do “espírito”, da “divindade”,
voltamos a colocá-lo entre os animais. Para nós, o homem é o animal mais forte,
porque é o mais hábil; toda a sua espiritualidade é disso conseqüência. Repudiamos
por outro lado uma vaidade que, a tal respeito, muito gostaria de novamente se
fazer ouvir: considerar o homem como tendo sido o grande desígnio prévio da
evolução animal. A verdade é que ele não é de modo algum a coroa da criação;
cada ser encontra-se ao seu lado no mesmo grau de perfeição... Afirmá-lo é,
ainda assim, vã pretensão, pois o homem é de todos os animais o mais
imperfeito, o mais mórbido, o mais perigosamente desviado dos seus instintos -
ainda que, com tudo isto, seja também o animal mais
interessante! No que respeita aos outros animais, Descartes, foi o
primeiro, com louvável ousadia, a considerá-lo como máquina:
toda a nossa fisiologia esforça-se por comprovar este princípio. Por isso,
logicamente, não colocamos o homem à parte, como fez Descartes; em tudo o que
hoje se concebe do homem, nada há que não esteja integrado nesta concepção do
homem como máquina. Noutros tempos concedia-se ao homem o “livre-arbítrio” como
um dote de um mundo superior; hoje, até a vontade lhe retiramos, na medida em
que não pode ser mais entendida no sentido de um atributo. O antigo termo
“vontade” ou “arbítrio” só serve para designar uma resultante, uma espécie de
reação individual que necessariamente se segue a um conjunto de excitações
concordantes ou contraditórias - a vontade já não “age” nem “se move”...
Outrora via-se na consciência do homem, no seu “espírito”, a prova da sua
origem superior, da sua divindade; para aperfeiçoar o homem, aconselhavam-no, à
semelhança da tartaruga, a recolher os seus sentidos em si mesmo, a suprimir as
relações com o mundo terrestre, a desprender-se do seu “invólucro mortal”:
então não ficaria dele senão o essencial, o “espírito puro”. Também aí
alteraremos o pensamento: consideramos precisamente a consciência, o “espírito”,
como sendo o sintoma de uma relativa imperfeição do organismo, como um ensaio,
um tatear, uma imperícia, como que um trabalho em que se consome inutilmente
muita energia nervosa - negamos que qualquer coisa possa ser feita com
perfeição sempre que seja feita conscientemente. O “puro espírito” é uma pura
estupidez: se retirarmos o sistema nervoso e os sentidos, o chamado “invólucro
mortal”, o resto é um erro de cálculo - e isso é
tudo!... (2000a: §14)
De uma forma explosiva (pois
o próprio Nietzsche se considerava uma dinamite), o filósofo solapa o que o
cristianismo tem de mais crucial, destarte, solapa a estrutura primeva do
cristianismo e o ponto de partida de todo o dogma da revelação.
Ponto de partida de toda
crítica: a própria vontade, sendo o cristianismo a negação da vontade, em
detrimento do meta-físico, como seria possível encarar o livre-arbítrio, se a
vontade fora excomungada logo na “abertura” do mesmo? Antes mesmo do homem se
“vestir” do livre-arbítrio, coibiu-lhe uma possibilidade de adentrá-lo. Como
bom filólogo que é, Nietzsche busca a etimologia de arbítrio e tem uma
surpresa: vontade é sinonímica de arbítrio, por conseguinte, como pode haver
este “livre” que antecede a palavra se, na sua origem, já encarcerou a vontade
do homem?
Numa palavra, se a revelação
interliga-se ao pecado original e ao livre-arbítrio, como é possível então a
livre-vontade agir, pois, a mesma fora alijada antes mesmo de existir?
Revelação pressupõe fé e graça, logo, patamares que o espírito precisa atingir,
entretanto, negamos a vontade e nosso espírito criador; como então é possível
vislumbrar uma sublimação do homem se, anteriormente, foi expulso de seu cerne
os instrumentos necessários para se atingir esta superação?
Como nos apresenta Nietzsche,
esta estrutura é contraditória na própria etimologia, porque a sublimação
deveria surgir do arbítrio; se arbítrio é vontade, e se a vontade fora alijada,
quando é que chegaremos a esta sublimação; no além?
Nas palavras do filósofo,
cria-se uma estrutura concreta amparada em “um comércio entre seres
imaginários...” (2000a: §15) Como a revelação pode mostrar
a verdade se parte de premissas cognoscentes imaginárias e niilistas?
Enfim, as críticas impetradas
por Nietzsche, com seu ardoroso discurso, solaparam as bases do cristianismo,
talvez tenha sido na pós-modernidade o momento crucial para a encruzilhada da
fé. Pode-se dizer que a revelação, tendo como respaldo Nietzsche, tem visto
seus paradigmas ruírem. Ao negar a criatura, nega-se também a sublimação e, por
conseguinte, o criador. Não se cria verdades a partir de dogmas nem de seres
imaginários, a verdade só pode ser criada a partir de conhecimento,
reflexão e uma grande “ruminação” sobre qualquer obra ou qualquer outro
conhecimento. O conhecimento surge do ato reflexivo do cognoscente sobre outro
conhecimento já estruturado filosoficamente.
Considerações
Finais
Desde sua criação efetiva, a
mais ou menos 2000 anos, o cristianismo tem passado por vários cismas, mas
nunca havia sofrido um golpe tão forte como aquele impetrado por Nietzsche.
Suas considerações, além de
pertinentes, nos são apresentadas em um período de grandes transformações da
humanidade, haja visto os prenúncios de uma guerra mundial (início do século
XX) e o acelerado desenvolvimento das estruturas de comunicação e de
transporte. O próprio Nietzsche afirmava que sua teoria era extemporânea, e
junto com sua teoria várias outras surgiram, é neste momento que o mundo almeja
entrar no progresso e no desenvolvimentismo.
Com efeito, tentando entender
o mundo secular, além de afirmar sua fé, a Igreja também passa por estas
transformações. Ela se moderniza, porém sempre reafirmando a tradição. Até
mesmo sua modernização vem para afirmar a tradição, seria contraditório se não
entendermos este processo, como não é neste texto que conseguiria apresentá-lo,
apenas aponto para ser desenvolvido em um outro momento, mesmo porque a nossa
pretensão já fora, aqui, muito bem exposta.
Numa palavra, o momento atual
vem para solapar várias estruturas mentais reinantes e, pode-se dizer que
Nietzsche fora o primeiro a encarar de frente esta estrutura, resta saber, após
este longo percurso, o que fazer. Imagino que temos os mecanismos necessários,
precisa-se agora utilizá-los...
Bibliografia Utilizada
CAMPOS, Humberto de (1954). Crítica: segunda série.
Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson inc.
COMTE, Auguste (1997). Catecismo Positivista. São
Paulo: Nova Cultural (Coleção os Pensadores).
CONCÍLIO Vaticano II (s/d). Dei Verbum (Constituição
Dogmática Sobre a Revelação Divina). São Paulo: Edições Paulinas.
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NIETZSCHE, Friedrich (1999). Obras Incompletas. São
Paulo: Nova Cultural (Coleção os Pensadores).
___________________ (2000a). O Anticristo. São Paulo:
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___________________ (2000b). Ecce Homo. São Paulo:
Martin Claret.
__________________ (2002). Fragmentos Finais.
Brasília/São Paulo: EdUNB/Imprensa Oficial de São Paulo.
VERGOTE, Antoine (2002). Modernidade e Cristianismo:
interrogações e críticas recíprocas. São Paulo: Edições Loyola.
VOLTAIRE (2002). Dicionário Filosófico. São
Paulo: Martin Claret.
(não me responsabilizo pela posição e/ou leitura teológica do autor)
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