Translate

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

ARTIGOS TEOLÓGICO 6 - A PAIXÃO SEGUNDO ZACARIAS

A Paixão segundo Zacarias

Fixarão os olhos naquele que traspassaram  (Zc 12,10)
 São três horas de sofrimentos, de mistério e projeções. Zacarias parece postar-se, invisível, ao lado do evangelista João. Ambos estão atentos aos menores detalhes, a fim de captar o sentido de tudo.

Começa a via dolorosa, do pretório de Pilatos até o Calvário. Lá vai Jesus carregando a Sua cruz, acompanhado por uma multidão hostil de inimigos e curiosos. Infiltrando-se cautelosamente por entre a turba, o vidente percebe um grupo de piedosas mulheres que choram a morte do condenado. Por isso, ele havia anotado em suas previsões: Ao que eles feriram de morte, hão de chorar como se chora a perda de um filho único, e hão de sentir por ele a dor que se sente pela morte de um primogênito" (Zc 12,10b). Será que é por mera casualidade que Jesus é chamado de Filho único e Primogênito (cf. Cl 1,15; Jo 3,16)?

Chegando ao Calvário, o profeta-repórter assiste silencioso a todo o desenrolar do drama. São três horas de sofrimentos indescritíveis; de mistério e projeções. Zacarias parece postar-se, invisível, ao lado do evangelista João. Ambos estão atentos aos menores detalhes, a fim de captar o sentido de tudo.

Após a morte de Jesus, por conta do grande dia da Páscoa, que deveria começar com o pôr-do-sol e o surgir das três primeiras estrelas, os soldados apressam-se em retirar os corpos das cruzes. Como os dois ladrões ainda estavam vivos, quebraram-lhes as pernas para que morressem logo. Chegando, porém, a Jesus, viram que já estava morto. Não precisaram quebrar-lhe osso algum. Contudo, um dos soldados rasgou-lhe o peito com a lança, e imediatamente saiu sangue e água (Jo 19,34). Olhando atentamente para o acontecido, João se lembra do que Zacarias já havia predito: Olharam para Aquele que traspassaram (Jo 19,37; Zc 12,10). E nesse olhar intuitivo o evangelista descobre a riqueza imensa dos dois sacramentos mais importantes: o batismo (água) e a Eucaristia (sangue). Descobrira-o antes o olhar penetrante de Zacarias: com a abertura daquela chaga abria-se em Jerusalém uma fonte para lavar o pecado e a mancha (Zc 13,1). Por meio daquela fonte, Deus declara: Derramarei sobre Jerusalém e o mundo um Espírito de graça e de súplica; e eles olharão para Mim (Zc 12,10a). Daquela fonte, naquele dia, sairá água viva de Jerusalém para o mundo inteiro, metade para o mar oriental, metade para o mar ocidental, no verão e no inverno (Zc 14,8).
Os olhos de águia dos dois profetas — João e Zacarias abarcam, numa grandiosa visão de conjunto, toda a realidade misteriosa da redenção: paixão-morte-ressurreição-Pentencostes!
O profeta, que antes havia observado o pranto das mulheres de Jerusalém, acompanhando Jesus até ao Calvário, observa agora toda a multidão que havia acorrido para o espetáculo voltando, batendo no peito, após ter visto o que havia acontecido (Lc 23,48). Tal pranto comoveu-o profundamente, levando-o a recordar a lamentação de Adad-Remon, na planície de Meguido (Zc 12,11). E o que teria acontecido em Meguido? Que lamentação teria sido essa?

Neste ponto, Zacarias está olhando 300 anos para trás. Está evocando a geografia e a história do seu povo. No tempo de Zacarias (como ainda hoje) Meguido era uma das mais imponentes ruínas da Palestina. Trata-se de uma fortaleza, cuja história remonta a 4 mil anos antes de Cristo. Por causa da sua posição estratégica — dominando uma passagem estreita entre a cordilheira do Carmelo e os montes da Samaria —, Salomão reconstruiu sobre a colina de Meguido uma enorme cidadela, onde podia manter constantemente 400 cavalos e 150 carros de guerra. Ainda hoje causa admiração a todos o engenhoso sistema hidráulico criado pelos técnicos de Salomão para abastecer a fortaleza, que dominava a passagem da famosa via maris (caminho do mar), que unia o Egito à Mesopotâmia.

No ano 609 a.C., o Faraó Necao, do Egito, resolveu marchar contra a Assíria. Para tanto, teria que passar forçosamente por Meguido. Josias, rei de Judá, talvez pensando em tirar algum proveito daquela conjuntura política, resolveu embargar a marcha do Faraó (uma formiga tentando barrar um elefante!). Este o alertou a tempo: Que tenho a ver contigo, rei de Judá? Não é a ti que vou atacar hoje, mas é com outra dinastia que estou em guerra (2Cro 35,21)! Josias não lhe deu ouvidos... Terminou pagando muito caro pela independência: foi morto no campo de batalha. Com ele morreram a independência e as esperanças políticas do povo judeu. A partir do desastre de Meguido, as catástrofes se seguiram em cascata, até a destruição de Jerusalém por Nabucodonosor e o exílio para Babilônia.
Josias era ainda bastante moço: 36 anos (por coincidência, a mesma idade com que Cristo morreu, conforme recentes pesquisas históricas)! Ele é apontado pelo Eclesiástico (49,5) como um dos três reis bons de toda a monarquia judaica, ao lado de Davi e Ezequias. Estava levando à frente uma grandiosa reforma religiosa e social em todo o país. Porém, com a sua morte, o sonho acabou. A tragédia doeu tanto que até o profeta Jeremias compôs uma lamentação sobre Josias, que todos os cantores e cantoras recitam ainda hoje (2Cro 35,25).
A morte de Josias em Meguido representou para Israel a mesma coisa que a de D. Sebastião, em Alcácer Quibir, representou para Portugal: o começo do fim! Perdeu a independência política, passando a fazer parte da coroa espanhola por 60 longos anos. Foi tão duro para os portugueses acreditar que D. Sebastião, com apenas 24 anos de idade, tivesse morrido, que se criou a lenda do "sebastianismo": "ele deve estar vivo em algum lugar e deverá voltar em algum momento!" Lenda esta que varou séculos e cruzou mares, alcançando até o nosso Nordeste brasileiro. A monumental obra de Ariano Suassuna, "A Pedra do Reino", tem por núcleo um fato histórico acontecido no município de Serra Talhada (Pernambuco) em 1835, decorrente da crença na volta de D. Sebastião.

Por aí podemos aquilatar o que tenha sido o pranto de Meguido. Zacarias ousou compará-lo com o do Calvário. Idênticos na inten-sidade, porém diametralmente opostos na causalidade: o Calvário não será o começo do fim, mas o começo do começo! Dos escombros da velha Aliança nascerá uma Nova. As espessas trevas, que por um momento envolveram o Calvário, deverão dar lugar, naquela mesma tarde, a um novo dia, luminoso e eterno, início de uma nova era: À tarde haverá luz! Haverá um único dia — Javé o conhece —, sem dia e sem noite (Zc 14,7). Zacarias pressente, inclusive, a aproximação da parusia futura em termos bem concretos: E Javé, meu Deus, virá, e todos os santos com Ele (Zc 14,5). Tal qual o mesmo Jesus haveria de anunciar, séculos depois: Pois o Filho do Homem há de vir na glória do Seu Pai, com os seus anjos (Mt 16,27).
Bem podemos aplicar a Zacarias as palavras com que o velho profeta Balaão se autodefine:

  

Oráculo do homem de visão penetrante,

Oráculo daquele que ouve a palavra de Deus,
daquele que conhece a ciência do Altíssimo.
Ele vê aquilo que Shaddai faz ver,
alcança a resposta divina e os seus olhos se abrem
(Nm 24,15-16).

AUTOR DESCONHECIDO
(Não nos responsabilizamos pelo conteúdo teológico deste material)

Nenhum comentário:

Postar um comentário