A Paixão segundo
Zacarias
Fixarão
os olhos naquele que traspassaram (Zc 12,10)
São três horas de sofrimentos, de mistério e
projeções. Zacarias parece postar-se, invisível, ao lado do evangelista João.
Ambos estão atentos aos menores detalhes, a fim de captar o sentido de tudo.
Começa a via dolorosa, do pretório de Pilatos até o Calvário. Lá vai Jesus carregando a
Sua cruz, acompanhado por uma multidão hostil de inimigos e curiosos.
Infiltrando-se cautelosamente por entre a turba, o vidente percebe um grupo de
piedosas mulheres que choram a morte do condenado. Por isso, ele havia anotado
em suas previsões: Ao que eles feriram de
morte, hão de chorar como se chora a perda de um filho único, e hão de sentir
por ele a dor que se sente pela morte de um primogênito" (Zc 12,10b). Será
que é por mera casualidade que Jesus é chamado de Filho único e Primogênito
(cf. Cl 1,15; Jo 3,16)?
Chegando ao
Calvário, o profeta-repórter assiste silencioso a todo o desenrolar do drama.
São três horas de sofrimentos indescritíveis; de mistério e projeções. Zacarias
parece postar-se, invisível, ao lado do evangelista João. Ambos estão atentos
aos menores detalhes, a fim de captar o sentido de tudo.
Após a morte de Jesus, por conta do grande dia da Páscoa, que deveria começar
com o pôr-do-sol e o surgir das três primeiras estrelas, os soldados
apressam-se em retirar os corpos das cruzes. Como os dois ladrões ainda estavam
vivos, quebraram-lhes as pernas para que morressem logo. Chegando, porém, a
Jesus, viram que já estava morto. Não precisaram quebrar-lhe osso algum.
Contudo, um dos soldados rasgou-lhe o peito com a lança, e imediatamente saiu sangue e água (Jo 19,34). Olhando atentamente
para o acontecido, João se lembra do que Zacarias já havia predito: Olharam para Aquele que traspassaram (Jo
19,37; Zc 12,10). E nesse olhar intuitivo o evangelista descobre a riqueza
imensa dos dois sacramentos mais importantes: o batismo (água) e a Eucaristia
(sangue). Descobrira-o antes o olhar penetrante de Zacarias: com a abertura
daquela chaga abria-se em Jerusalém uma fonte para lavar o pecado e a mancha (Zc
13,1). Por meio daquela fonte, Deus declara: Derramarei sobre Jerusalém e o mundo um Espírito de graça e de súplica;
e eles olharão para Mim (Zc 12,10a). Daquela fonte, naquele dia, sairá água viva de
Jerusalém para o mundo inteiro, metade para o mar oriental, metade para o mar
ocidental, no verão e no inverno (Zc 14,8).
Os olhos de águia dos dois profetas — João e Zacarias abarcam, numa grandiosa
visão de conjunto, toda a realidade misteriosa da redenção:
paixão-morte-ressurreição-Pentencostes!
O profeta, que antes havia observado o pranto das mulheres de Jerusalém,
acompanhando Jesus até ao Calvário, observa agora toda a multidão que havia acorrido para o espetáculo voltando, batendo
no peito, após ter visto o que havia acontecido (Lc 23,48). Tal pranto
comoveu-o profundamente, levando-o a recordar a lamentação de Adad-Remon, na planície de Meguido (Zc 12,11). E o
que teria acontecido em Meguido? Que lamentação teria sido essa?
Neste ponto,
Zacarias está olhando 300 anos para trás. Está evocando a geografia e a
história do seu povo. No tempo de Zacarias (como ainda hoje) Meguido era uma
das mais imponentes ruínas da Palestina. Trata-se de uma fortaleza, cuja
história remonta a 4 mil anos antes de Cristo. Por causa da sua posição
estratégica — dominando uma passagem estreita entre a cordilheira do Carmelo e
os montes da Samaria —, Salomão reconstruiu sobre a colina de Meguido uma
enorme cidadela, onde podia manter constantemente 400 cavalos e 150 carros de
guerra. Ainda hoje causa admiração a todos o engenhoso sistema hidráulico
criado pelos técnicos de Salomão para abastecer a fortaleza, que dominava a
passagem da famosa via maris (caminho
do mar), que unia o Egito à Mesopotâmia.
No ano 609 a.C., o Faraó Necao, do Egito, resolveu marchar contra a Assíria.
Para tanto, teria que passar forçosamente por Meguido. Josias, rei de Judá,
talvez pensando em tirar algum proveito daquela conjuntura política, resolveu
embargar a marcha do Faraó (uma formiga tentando barrar um elefante!). Este o
alertou a tempo: Que tenho a ver contigo,
rei de Judá? Não é a ti que vou atacar hoje, mas é com outra dinastia que estou
em guerra (2Cro 35,21)! Josias não lhe deu ouvidos... Terminou pagando
muito caro pela independência: foi morto no campo de batalha. Com ele morreram
a independência e as esperanças políticas do povo judeu. A partir do desastre
de Meguido, as catástrofes se seguiram em cascata, até a destruição de
Jerusalém por Nabucodonosor e o exílio para Babilônia.
Josias era ainda
bastante moço: 36 anos (por coincidência, a mesma idade com que Cristo morreu,
conforme recentes pesquisas históricas)! Ele é apontado pelo Eclesiástico
(49,5) como um dos três reis bons de toda a monarquia judaica, ao lado de Davi
e Ezequias. Estava levando à frente uma grandiosa reforma religiosa e social em
todo o país. Porém, com a sua morte, o sonho acabou. A tragédia doeu tanto que
até o profeta Jeremias compôs uma
lamentação sobre Josias, que todos os cantores e cantoras recitam ainda hoje
(2Cro 35,25).
A morte de Josias
em Meguido representou para Israel a mesma coisa que a de D. Sebastião, em
Alcácer Quibir, representou para Portugal: o começo do fim! Perdeu a
independência política, passando a fazer parte da coroa espanhola por 60 longos
anos. Foi tão duro para os portugueses acreditar que D. Sebastião, com apenas
24 anos de idade, tivesse morrido, que se criou a lenda do
"sebastianismo": "ele deve estar vivo em algum lugar e deverá
voltar em algum momento!" Lenda esta que varou séculos e cruzou mares,
alcançando até o nosso Nordeste brasileiro. A monumental obra de Ariano
Suassuna, "A Pedra do Reino",
tem por núcleo um fato histórico acontecido no município de Serra Talhada
(Pernambuco) em 1835, decorrente da crença na volta de D. Sebastião.
Por aí podemos aquilatar o que tenha sido o pranto de Meguido. Zacarias ousou
compará-lo com o do Calvário. Idênticos na inten-sidade, porém diametralmente
opostos na causalidade: o Calvário não será o começo do fim, mas o começo do começo! Dos escombros da velha
Aliança nascerá uma Nova. As espessas
trevas, que por um momento envolveram o Calvário, deverão dar lugar, naquela
mesma tarde, a um novo dia, luminoso e eterno, início de uma nova era: À tarde haverá luz! Haverá um único dia —
Javé o conhece —, sem dia e sem noite (Zc 14,7). Zacarias pressente,
inclusive, a aproximação da parusia futura em termos bem concretos: E Javé, meu Deus, virá, e todos os santos
com Ele (Zc 14,5). Tal qual o mesmo Jesus haveria de anunciar, séculos
depois: Pois o Filho do Homem há de vir
na glória do Seu Pai, com os seus anjos (Mt 16,27).
Bem podemos aplicar a Zacarias as palavras com que o velho profeta Balaão se
autodefine:
Oráculo do homem
de visão penetrante,
Oráculo daquele que ouve a palavra de Deus,
daquele que conhece a ciência do Altíssimo.
Ele vê aquilo que Shaddai faz ver,
alcança a resposta divina e os seus olhos se abrem
(Nm 24,15-16).
AUTOR DESCONHECIDO
(Não nos responsabilizamos pelo conteúdo teológico deste material)
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