O CRISTÃO E A CULTURA (2 parte)
Série: Juntos
Podemos Mais
Estaremos dando
continuidade a nossa reflexão da manhã “O Cristão e a Cultura”. Hoje pela manhã
definimos o conceito de cultura e refletimos na relação do cristão com a
cultura.
Uma das
abordagens mais completas acerca desta temática foi feita por Helmut Richard
Niebuhr, no clássico Cristo e Cultura, escrito em 1951 e considerado “um dos
livros cristãos de maior influência do século 20”, e que ainda continua
produzindo impacto no ambiente da teologia.
No livro,
Niebuhr descreve como o cristianismo se relacionou com a cultura ao longo de
sua história. Ele descreve cinco pontos de vista da relação do cristão e a
cultura, que são eles:
·
Cristo contra a
cultura
·
Cristo da
Cultura
·
Cristo acima da
cultura
·
Cristo e a
cultura em paradoxo
·
Cristo o transformador
da Cultura
Quase tudo que se escreve hoje sobre a relação do cristão com a cultura é escrito a partir destes cinco pontos de Niebuhr. Nós vamos hoje olhar por cima cada um desses pontos, iremos resumir o conteúdo apresentado pelo autor, mas se você tiver interesse em estudar mais sobre estes pontos você pode baixar o livro gratuitamente pela internet.
Vejamos o
primeiro ponto de vista.
1 – CRISTO CONTRA A CULTURA[1]
Esse foi o
primeiro tipo de relacionamento que a igreja vivenciou com a cultura. Os
cristãos da igreja primitiva foram ensinados a obedecerem aos mandamentos de
Jesus Cristo e a rejeitarem todas as formas de prazeres oferecidas pelo mundo.
O cristão não deveria se apegar ao mundo e nem as coisas criadas e
estabelecidas pela sociedade humana. Eles não deveriam se amoldar, tomar a
mesma forma do mundo, conforme escreve o apóstolo Paulo (Rm 12.2).
12 Não se amoldem ao padrão deste mundo, mas
transformem-se pela renovação da sua mente, [...] (Romanos
12.2)
Pelo contrário,
os cristãos foram chamados para serem diferentes em suas condutas morais e
éticas. Eles foram desafiados a um abandono de sua forma de vida antes de
Cristo, através de uma renovação de suas mentes. Essa renovação é produzida no
cristão através do ensino da Palavra de Deus e pela ação santificadora e
regeneradora do Espírito Santo.
Penso que seja
relevante entendermos estas orientações dentro do contexto em que se encontrava
a igreja em seu início.
·
Contexto
Político – O
Estado na pessoa do imperador se declarava divino e sacerdote entre Deus e os
homens. Os cristãos reconheciam somente a Jesus como Senhor Soberano. O Estado passa
a perseguir os cristãos e estes eram exortados pelos apóstolos a não
abandonarem sua fé em troca de qualquer beneficio que poderiam obter do Estado.
Por exemplo: moradia e trabalho, ao invés de prisão, tortura e morte.
·
Contexto Moral – Os cristãos
eram ensinados a viverem de forma santa. Por exemplo: o homem era ensinado a ter
somente uma esposa e do sexo feminino; eles eram ensinados a terem uma vida
sexual ativa somente quando estivessem casados. Também eram ensinados a honrarem seus patrões,
os patrões a honrarem seus servos. Enquanto a sociedade romana ou a dos gregos,
como a dos coríntios eram imorais aos olhos de Deus. Homens se relacionavam sexualmente
com outros homens, mulheres se relacionavam com outras mulheres. Homens se
relacionavam com as sacerdotisas como forma de adoração. Os negócios comerciais
eram feitos muitas vezes com oferendas aos ídolos, etc.
A igreja ela
exigia uma nova vida de seus fiéis. Essa nova maneira de viver a vida os
colocava contra a cultura que já estava estabelecida há muitos anos. A fé
cristã não exigia e nem exige hoje uma postura contra o governo estabelecido ou
contra a cultura estabelecida, ela exige, sim, uma postura moral é ética em
conformidade com os valores e princípios do Reino de Deus. Não era o cristão
que se colocava contra a cultura política e social estabelecida, e sim a
cultura estabelecida que não aceitava o cristão com sua ética celestial.
Vamos para o
segundo ponto de vista.
2 – CRISTO DA CULTURA
Em
oposição ao primeiro modelo o “Cristo da cultura” defende a acomodação dos
cristãos em relação à cultura vigente no mundo.
13 Por
causa do Senhor, sujeitem-se a toda autoridade constituída entre os homens;
seja ao rei, como autoridade suprema, 14 seja
aos governantes, como por ele enviados para punir os que praticam o mal e
honrar os que praticam o bem. (1 Pedro 2.13,14)
Essas
palavras do apóstolo Pedro nos mostra que o cristão precisa respeitar a cultura
governamental estabelecida. Ele precisa viver submisso a Deus, mas também
submisso ao governo dos homens. Há um engajamento do cristão com a estrutura
cultural governamental.
Ao
invés do cristão se colocar contra a cultura estabelecida, ele busca se
harmonizar a ela. Dentro do que lhe é possível, o cristão se adapta as
estruturas culturais onde está inserido. Assim toda e qualquer cultura é
incorporada a vida do crente. Contudo isso precisa ser feito com muito cuidado,
pois o perigo é grande como nos mostra a história.
O
primeiro movimento de adaptação do cristianismo a cultura vigente é encontrada
na Bíblia, no movimento dos judaizantes, que buscava adaptar a fé cristã aos
seus costumes e rituais religiosos. O apóstolo Paulo combateu intensamente este
movimento dos judaizantes.
Outro
movimento de adaptação do cristianismo a cultura vigente é encontrada na
sociedade helenística, grega. Os gnósticos cristãos buscaram adaptar os ensinos
cristãos a sua forma de compreensão da relação espírito e corpo.
Atualmente
o liberalismo cristão, também chamado de Protestantismo Cultural, busca adaptar
a fé cristã a cultura de nossos dias.
O
que estes movimentos têm em comum é que olham para Jesus como o Messias de suas
próprias culturas. Jesus é o herói de suas culturas. Eles buscam em Jesus
ensinos que correspondam aos valores e princípios que já estavam estabelecidos
em suas culturas. Jesus é usado para autenticar o modelo cultural já
estabelecido, ignorando os aspectos contrários a cultura estabelecida. Assim o
cristão se harmoniza a cultura do mundo.
A
teologia americana que nós brasileiros gostamos de nos apoiar é uma teologia
“Cristo da Cultura”. Os teólogos americanos aculturaram Jesus a sua cultura
econômica e social. Os frutos dessa teologia estão manifestados na subcultura
cristã, no mundo gospel. Hoje nós evangélicos cremos mais num Jesus cultural do
que em um Jesus pessoal e Senhor absoluto de nossas vidas.
Por
outro lado esta teologia despertou no cristão a realidade de que ele pode
participar da vida cultural e política da sociedade onde está inserido. O cristão
se tornou mais ativo e presente na vida social.
Vejamos
o terceiro ponto de vista.
3 – CRISTO ACIMA
DA CULTURA
O apóstolo
Paulo nos chama a caminharmos no mundo focados nas coisas do alto, nas coisas
celestiais. A vivermos aqui e agora a cultura do Reino dos Céus conforme Cl
3.1-3.
1 Portanto,
já que vocês ressuscitaram com Cristo, procurem as coisas que são do alto, onde
Cristo está assentado à direita de Deus. 2 Mantenham
o pensamento nas coisas do alto, e não nas coisas terrenas. 3 Pois
vocês morreram, e agora a sua vida está escondida com Cristo em Deus. (Colossenses 3.1-3)
Para este
grupo o problema não está em Cristo e o mundo ou em Cristo e a cultura, mas se
encontra na relação entre Deus e o homem. O cerne do problema está na
responsabilidade da Igreja e de seus membros na vida social.
Jesus é
compreendido como Soberano sobre toda Sua criação e também o sustentador de
toda sua criação. Portanto o mundo não é todo mal e pode ser bom quando toda
criação se submete a vontade de Deus em Cristo.
Este é o
conceito católico, influenciado por Clemente de Alexandria (c.150–c.215) e Tomás
de Aquino (1225–1274), que busca uma unidade entre o cristão e a cultura, onde
toda a sociedade aparece hierarquizada sob o poder da Igreja.
Na Idade
Média o ensino eclesiástico alcançou quase todos os aspectos da sociedade. A
filosofia e a teologia coexistiam. A religião foi determinante para a formação
do nosso calendário. Os rituais religiosos, como o batismo, a bênção nupcial, a
extrema-unção e a missa se tornaram imprescindíveis para a sociedade.
Este é um
modelo sintetizador, que une todas as dimensões da vida ao domínio de Cristo, mais
precisamente ao domínio da igreja, contudo não lida de forma clara com o
pecado.
A igreja
e sua mensagem foram institucionalizadas e o que deveria ser condicionado à fé,
é culturalmente absolutizado. Neste terceiro modelo, o que é levado ao ser
humano não é o evangelho, mas uma cultura com sua linguagem, arte, ideologias e
crenças próprias.
Vejamos o
quarto ponto de vista.
4 – CRISTO E A
CULTURA EM PARADOXO
A Bíblia afirma
que não somos deste mundo, que somos peregrinos neste mundo. O apóstolo Paulo
afirma que nossa cidadania é celestial, conforme podemos ler em Fp 3.20.
20 A nossa cidadania, porém, está nos céus,
de onde esperamos ansiosamente um Salvador, o Senhor Jesus Cristo. (Filipenses 3.20)
Esse é o
paradoxo em que nos encontramos como cristãos. Somos cidadãos do mundo,
nascidos da carne, mas também somos cidadãos do Reino de Deus, nascidos do
Espírito. Nós cristãos possuímos uma dupla cidadania. Essa dupla cidadania
provoca constantes conflitos em nós e por isso, esse grupo de cristãos passaram
a ser chamados de dualistas.
Os dualistas vivem em conflito. As duas
cidadanias, a terrena e a espiritual, estão em constantes choques uma com a
outra. Eles vivem um dualismo interior uma vez que o velho homem e seus desejos
continuam pulsando, enquanto o novo homem deseja mortificar o velho homem e se sujeitar
a vontade de Cristo. O seu discurso é conflitante, pois se dizem pecadores, mas
também se dizem justos em Cristo. A sua conduta moral e ética é conflitante,
uma vez que buscam viver a lei, mas não se consideram sujeitos à lei e sim a
graça. Os dualistas se vêem diante um discurso paradoxal e de condutas
paradoxais.
Este grupo vive
em conflito porque não consegue distinguir claramente se ao agirem como
cidadãos terrenos ferem sua cidadania celestial. Por exemplo: Vamos considerar
um caso de feminicídio dentro da igreja. A mulher deve processar o marido cristão? Como
cristã, ela não deveria, pois o crente não deve levar outro crente ao tribunal
secular. Entretanto como cidadã brasileira, sim. Então, esta mulher cristã se
vê diante um conflito paradoxal.
Para os
dualistas, a questão fundamental não é a linha que deve ser traçada para
estabelecer separação entre os cristãos e o mundo pagão ou secular, mas a linha
com Deus. Eles não estão em conflito com a cultura estabelecida no mundo, mas com
Deus. Eles reconhecem o mundo caído, corrompido pelo pecado. Entretanto creem
que Deus faz uso deste mundo natural e de sua cultura para mostrar sua bondade.
O Estado e a lei
são esferas separadas da esfera espiritual, mas debaixo do domínio de Deus.
Nenhuma rege sobre a outra e nenhuma deve atacar a outra. São somente esferas distintas de atuação, com
propósitos diferentes. Neste aspecto o apóstolo Paulo era dualista. Lutero foi
considerado um dualista pelo autor.
Niebuhr afirma
que para os dualistas a lei, o Estado e outras instituições são “como freios e
diques contra o pecado, impedidores da anarquia, e não como agências positivas
através das quais os homens em união social prestam serviço aos próximos,
avançando rumo à vida verdadeira”. A lei, o Estado e outras instituições embora
usadas por Deus não podem produzir salvação para o ser humano. Para os dualistas,
tais instituições pertencem inteiramente ao mundo temporal e passageiro.
Vejamos o quinto ponto de vista.
5 – CRISTO O TRANSFORMADOR DA CULTURA
Temos aqui a
categoria do tipo conversionista, em que a cultura deve ser levada cativa ao
senhorio de Cristo, sem desconsiderar a queda do homem e as consequências do
pecado, mas dando ênfase na redenção oferecida na cruz.
Os cristãos
transformacionais não querem simplesmente criar uma cultura paralela à cultura
secular, mas transformar o mundo e sua cultura tornando-o melhor.
18 Tudo isso provém de Deus, que nos
reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da
reconciliação, 19 ou seja, que Deus em Cristo estava reconciliando
consigo o mundo, não lançando em conta os pecados dos homens, e nos confiou a
mensagem da reconciliação. (2 Coríntios 5.18,19)
O que distingue
os conversionistas, dos dualistas é a sua atitude mais positiva e esperançosa
para com a cultura. Por mais
iníquas que sejam certas instituições, elas não estão fora do alcance da
soberania de Deus. Ou seja, mesmo sabendo da queda, os cristãos não abandonam a
cultura, mas buscam redimi-la, levando-a aos pés de Cristo.
Agostinho (354-430), João Calvino
(1509-1564), John Wesley (1703-1791) e Abraham Kuyper (1837-1920) são alguns
dos que entenderam que nós cristãos somos agentes de transformação da cultura. Por
isso a Igreja Reformada onde plantava uma igreja, plantava também uma escola e um
hospital.
REFLEXÃO FINAL
Quero concluir
afirmando que todos estes cinco pontos de vista da relação do cristão com a
cultura podem ser defendidos como vimos através de textos bíblicos. Isso nos
mostra que ao lidarmos com a cultura precisamos ser cautelosos e sábios.
Toda cultura é
uma mistura de coisas boas e más. As coisas boas são decorrentes da imagem de
Deus em nós seres humanos e da graça comum de Deus manifesta a todos os homens.
As coisas más e pecaminosas são resultantes da queda do homem no Éden, que passou
a ter um coração corrompido e depravado.
Portanto, por
mais civilizada que seja uma cultura, ela certamente possuí valores
pecaminosos, crenças equivocadas, práticas iníquas que se refletem na arte,
música, literatura, cinema, religiões, costumes e tudo mais que a compõe. Da
mesma forma, por mais barbará que seja uma cultura, ela certamente apresenta
valores bons que se refletem em sua música, literatura, religiões, costumes e
tudo mais.
Nem tudo que
envolve a cultura do mundo é pecaminoso e mal, da mesma forma nem tudo que
envolve a cultura gospel é bom e puro.
Diante tudo que
falamos hoje temos basicamente três opções diante a cultura:
·
Rejeitá-la
completamente;
·
Amoldarmo-nos
a ela;
·
Trabalharmos
para redimi-la.
Como servos de
Deus nós precisamos orar por discernimento para julgarmos cada aspecto da
cultura que nos envolve e orientados pelo Espírito Santo de Deus, rejeitarmos
completamente o que precisa ser rejeitado, nos amoldarmos ao que pode ser
amoldado e trabalharmos arduamente para redimirmos os aspectos da cultura que
podem ser redimidas.
Deus nos abençoe
hoje e sempre!
Pr. Cornélio Póvoa de Oliveira
13/06/2021 (noite)
[1]
Esta posição Cristo contra a
cultura foi afirmada no Didaquê (70 d.C.), na Primeira Epístola de Clemente, e
nos escritos de Tertuliano (c.160–c.225) e dos anabatistas do século XVI, como
Michael Sattler (c.1490–1527).
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