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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

APOSTILA 2 - TEOLOGIA REFORMADA

Aula nº 1

            Introdução
            Esta disciplina se propõe a ser uma introdução à tradição reformada, e não uma história das igrejas reformadas nem uma declaração abrangente da fé e prática reformada.
            Procuraremos compreender o desenvolvimento desta teologia e sua contribuição para a práxis pastoral da igreja.
           
            Origem do termo "Reforma"
            A tradição reformada não pode ser definida com precisão. Ela é entendida, de modo geral, como o padrão do cristianismo protestante que tem suas raízes na reforma do século XVI.
            A palavra "reformado" tem origem na ênfase que os reformadores suíços deram à reforma da Igreja segundo a Palavra de Deus. Durante o século XVI, o termo foi aplicado a todas as igrejas protestantes, como ocorreu com a palavra "evangélico".
            O desejo de reformar a vida toda, segundo a Palavra de Deus, foi um compromisso abrangente e o fundamento básico para aqueles que continuaram a desenvolver a tradição teológica reformada.

Ecclesia reformata reformanda est (“A igreja, tendo sido reformada, ainda precisa ser reformada).

            Filme: Lutero





Aula nº 2
           
O Surgimento Das Igrejas Reformadas
            Os reformadores protestantes nunca aceitaram a idéia de que estavam envolvidos em um novo empreendimento, isto é, para eles a história da Igreja começou com Adão. Eles se entendiam como participantes de uma reforma do povo de Deus, segundo a Palavra de Deus. Nenhum protestante dataria a origem da Igreja a partir do século XVI. A reforma protestante era uma reforma e não um começo. 
            A palavra protestante parece negativa aos ouvidos modernos, mas seu uso original foi positivo. A reforma foi acima de tudo uma proclamação positiva do evangelho cristão. Ela nunca dependeu negativamente de fazer uma oposição, pois foi, em primeiro lugar, uma declaração solene pela verdade da Palavra.
           
            A Reforma na Alemanha – Martinho Lutero
            A reforma luterana teve sua origem nos conflitos pessoais de Martinho Lutero, que vivia atormentado pela pergunta: como pode um ser humano pecador permanecer na presença de um Deus justo?
            As Noventa e Cinco Teses, de 31 de outubro de 1517, abordaram uma ampla variação de práticas corruptas da igreja, mas seu centro foi a proclamação do amor perdoador de Deus.
A descoberta da graça de Deus não foi exclusiva nem excêntrica. Ao contrário, iluminou multidões oprimidas pela predominante religião das boas-obras, que pregava a necessidade de conquistar o favor divino. Por causa das Noventa e Cinco Teses, debates, textos e pregações de Lutero houve um grande despertamento da fé cristã, que se transformou na reforma luterana.  Desta reforma nasceu a Igreja Luterana.
           
           
            A Reforma na Suíça – Zuínglio e Calvino
            A reforma na Suíça não dependeu diretamente do trabalho de Martinho Lutero, mas sofreu sua influência e teve seu desenvolvimento por ele modelado.
                       

  • Na cidade de Zurique - Ulrico Zuínglio
Zuínglio é reconhecido com justiça como o primeiro reformador suíço. Foi sua personalidade poderosa, sua habilidade como membro da igreja e pregador que precipitaram a Reforma, mas foi João Calvino que deu sustentabilidade a reforma por meio de sua teologia.
            A ênfase radical da reforma suíça em seguir a Palavra de Deus deu origem a designação "reformada". Zuínglio acreditava que a Igreja seria purificada e reformada pelo estudo e pregação das Escrituras. Para ele a Bíblia era a autoridade máxima na vida da Igreja.
            As controvérsias luteranas e reformadas no final do século XVI, especialmente sobre os sacramentos e o culto, deram ênfase ao caráter mais radical da reforma suíça e contribuíram, provavelmente, para a sua diferenciação.
                       
Na cidade de Genebra - Calvino
            Em Genebra, a reforma começou sob a liderança de um inflamado francês chamado Guilherme Farel (1489-1565). Entretanto, o grande trabalho de reforma de Genebra seria conduzido por outro francês João Calvino (1509-1564).
A autoridade da Bíblia teve especial importância na sua conversão ao protestantismo e ele procurou purificar a igreja fazendo-a retornar à sua fonte na revelação. Publicou a mais influente declaração da fé cristã, a Instituição da Religião Cristã, conhecida como "As Institutas". Reformou o culto, dando inicio e apoiando o desenvolvimento do Saltério de Genebra. Além disso, Calvino reorganizou a igreja. Sua visão a respeito da comunidade cristã e liderança na reforma da cidade de Genebra garantem-lhe um lugar na história política e social. Mas é nas suas cartas - onze volumes no Corpus Reformatorum - que se revela, em toda a sua amplitude, o homem pastoralmente preocupado com o movimento da reforma nos vários países europeus.

Na França
As igrejas reformadas francesas tiveram sua origem no humanismo cristão da primeira metade do século XVI. De 1540 em diante, o movimento foi dirigido, em grande medida, a partir de Genebra, que estava livre do controle político da França. Uma igreja protestante foi organizada em Paris no ano de 1555. Uma organização nacional foi criada em 1559, a qual incluía consistório (conselho), colóquio (presbitério), sínodo provincial e sínodo nacional. Pela primeira vez na história, o presbiterianismo estava organizado nacionalmente.

Na Holanda
A reforma na Holanda começou muito antes de Martinho Lutero, através de movimentos tais como o dos Irmãos da Vida Comum. Tais movimentos eram Agostinianos na teologia e davam ênfase aos estudos bíblicos e a vida devocional. No final da década de 50 o protestantismo já estava estabelecido na Holanda. Em 1561, Guy de Brês escreveu uma confissão “para os fiéis que estão espalhados por toda parte na Holanda”. Esta confissão, adotada por um sínodo em Antuérpia, formado em 1556, tornou-se conhecida como confissão Belga. Com algumas modificações, foi declarada como Confissão da Igreja Holandesa, juntamente com o Catecismo de Heidelberg e os Cânones de Dort.
A igreja da Holanda desenvolveu um trabalho teológico diligente e hábil, tornando-se um centro muito influente do pensamento reformado no final do século XVI e no século XVII. Também foi o cenário do mais conhecido debate teológico do início da história reformada. Armínio (1560-1609), que tinha raízes tanto na tradição holandesa quanto na teologia reformada de Genebra, procurou modificar a doutrina da predestinação de Calvino, especialmente em sua forma exagerada defendida por Gomaro, um homem holandês, e Teodoro Beza, o sucessor de Calvino em Genebra.
Armínio estava muito preocupado em refutar a doutrina da graça irresistível, embora ele mesmo sempre insistisse em dizer que ninguém se volta para Deus a não ser pela sua graça.
A amarga controvérsia que se seguiu foi decidida pelo Sínodo de Dort (Holanda), em 1619. Este adotou a linha média entre os hiper-calvinistas e os discípulos de Armínio. Contudo reafirmou as doutrinas da depravação total, da eleição incondicional, da expiação limitada, da graça irresistível e da perseverança dos santos. Esses nomes foram dados no calor da controvérsia, não sendo inteiramente adequados com o que o sínodo afirmou.





Aula nº 3

Conhecendo a Teologia Reformada

1. A Igreja na Teologia Reformada
Os fundadores do protestantismo não se propuseram somente a um reavivamento da piedade pessoal; também era seu objetivo reestruturar as formas corporativas de religião. Eles não buscaram converter indivíduos à fé protestante somente para deixá-los numa situação de isolamento solitário; trabalharam para reedificar a Igreja e sentiram-se profundamente chamados a serem agentes desta restauração. Sua crença inabalável era a de que a santa Igreja católica tinha sido instituída por Deus, para a nutrição e a comunhão das almas, e a de que fora dela não existe “nenhuma possibilidade normal de salvação”. Consequentemente, os teólogos da Reforma deram ênfase à natureza e à função da Igreja, tendo procurado entender e expor isso. A eclesiologia é uma parte proeminente e essencial de sua teologia.
Nas gerações recentes, tal ênfase foi perdida. Muitos ministros se contentam em servir às igrejas sem compreender a Igreja. Entretanto as últimas gerações tem sido chamada a repensar a Igreja e isso tornou-se nos últimos dias um interesse capital da inteligência cristã.
Não temos como pensar no que é a Igreja sem analisarmos o que a Teologia Reformada nos deixou de legado, pois desconsiderar o que nossos antepassados nos legaram é ignorar o que o Espírito de Deus fez pela Igreja no passado.
Diante as muitas heresias que surgiam a partir da reforma, as igrejas resolveram adotar alguns credos e confissões como “padrões da verdade”, criando desta forma doutrinas de fé que poderiam identificar a verdadeira Igreja de Cristo. Por exemplo: o Credo Apostólico - “Creio no Espírito Santo, na santa Igreja, Católica, na comunhão dos santos...”. A Confissão de Fé de Westminster (Inglaterra), Confissão de Augsburgo, Catecismo Maior, Catecismo Menor, etc.
Portanto vejamos algumas de suas afirmações de fé:

1.1  A Igreja é Una
“Creio na Igreja Una...” – “Creio na única Igreja de Jesus Cristo...”
Isso implica dizer duas coisas: Primeiro que a Igreja é indivisível e em segundo que existe somente uma Igreja verdadeira. Tal confissão é feita por crerem que todos os fiéis são unidos a Cristo pelo mesmo Espírito, pela mesma fé.
Diante disso eles tinham que responder a uma pergunta crucial para seus dias: Como poderia a Igreja indivisível estar se dividindo? Por que eles passaram a apoiar o cisma em relação à igreja Romana?
Os reformadores acreditavam na existência de duas igrejas: a visível e a invisível.
Visível – formado por todos os membros das igrejas locais e que são também membros da Igreja invisível se realmente convertidos (se verdadeiramente nasceram de novo). A Igreja visível era formada por cristãos nominais e professantes.


Invisível – formada por todos os santos (crentes) de todas as épocas e lugares – a verdadeira Igreja de Cristo – e a única Igreja de Cristo.
A Igreja invisível é exclusiva dos eleitos que é conhecido unicamente por Deus.
Entretanto é bom nos lembrarmos que os reformadores sempre se posicionaram contra a existência de cismas nas igrejas. Estes só eram aceitos quando uma igreja não possuía as características da verdadeira Igreja.
Calvino – “Pois o Senhor estima tanto a comunhão de sua Igreja que ele considera como um traidor e apóstata da religião quem perversamente se retira de qualquer sociedade cristã que preserva o verdadeiro ministério da Palavra e os sacramentos” (Institutas, 4.1.10).
Eles aceitavam a saída de uma instituição na qual as obras internas e externas da verdadeira Igreja estivessem ausentes. Eles afirmavam que a Igreja universal não está confinada no que diz respeito ao lugar.
Portanto para os reformadores, deixar a igreja de Roma não é um ato de divisão, mas uma necessidade espiritual.

1.2  A Igreja é Santa
A verdadeira Igreja não é terrestre, mas espiritual – “a noiva sem mácula de Jesus Cristo” (Zuínglio).
A Igreja é santa, não por ser sem pecado, mas porque implantada em Cristo e dotada de perpétuo arrependimento e fé, nenhum pecado lhe é imputado. Ao contrário a santidade de Cristo lhe é imputada, e desta forma considerada a noiva sem manchas de Cristo.
Os reformadores reconheciam estes dois aspectos na vida da igreja.

1.3  A Igreja é Católica
“Creio na santa Igreja Católica...” – “Creio na santa Igreja Universal...” – que mais tarde se transformou na seguinte afirmação: “Creio na comunhão dos santos”.
O termo “católica” significa “universal”. Os reformadores acreditavam na existência da Igreja de Jesus Cristo espalhada através de todos os fiéis por todos os lugares e épocas. Eles acreditavam na universalidade da Igreja na sua existência tanto no céu como na terra. Uma Igreja que estende seus ramos por todos os lugares deste vasto mundo, em todos os tempos e épocas, compreendendo todos os fiéis do mundo. De uma maneira mais simples podemos afirmar que é acreditar na “comunhão dos santos”.

1.4  A Igreja é Apostólica
“Creio na Santa Igreja Apostólica...”.
A Igreja é apostólica por estar fundada sobre os fundamentos colocado pelos apóstolos.
Para os reformadores a sucessão apostólica é sucessão na doutrina apostólica. “O hábito não faz o monge nem os bispos fazem a Igreja”.

Outras afirmações da fé reformada que identificava a verdadeira Igreja:
1.5  A Igreja não é hierárquica é o povo
Zuínglio afirmava que a Igreja de Cristo era destacada por ser o povo cristão e não por uma hierarquia institucionalizada - “Os pontífices não são os senhores ou juízes da Igreja, mas são seus ministros”.

1.6  A Igreja zela pela “disciplina”
Os reformadores tinham grande zelo pela disciplina. Para Calvino, a disciplina era como os músculos ou ligamentos que unem os membros do corpo.
Calvino compreendia que a disciplina era necessária e em casos mais graves como o adultério, o furto, o roubo, a sedição e o perjúrio, os transgressores deveriam ser excomungados. Em primeiro lugar para evitar a profanação do sagrado ministério da Ceia do Senhor e o escândalo do reconhecimento do profano como membro da Igreja. Em segundo lugar, ela providencia um proteção contra a corrupção dos bons pela associação com os maus. Em terceiro lugar, seu objetivo em relação aos transgressores é o de que através da vergonha, eles possam ser conduzidos ao arrependimento (Institutas 4.12.5). Não podemos deixar de ressaltar que para Calvino todas as pessoas excomungadas devem ser tratadas como candidatas à restauração à comunhão (Institutas 4.12.10).

1.7  A Igreja se fundamenta somente na Palavra de Deus
Esta sem dúvida era uma das grandes marcas da reforma a volta á Palavra de Deus. Somente a: graça, fé e a Palavra (Escrituras).

1.8  A Igreja é a única detentora da salvação
Os reformadores, assim como os romanos (católicos), afirmavam que não existia salvação fora da Igreja. Para os reformadores somente dentro da Igreja o individuo poderia participar dos sacramentos ordenados por Jesus Cristo e somente por meio da Igreja (povo de Deus) receber as bênçãos de Deus. Os reformadores acreditavam que a salvação estava somente na pessoa de Jesus Cristo e somente através da pregação e da ministração dos sacramentos as pessoas teriam conhecimento da verdade de Deus.

1.9  A Igreja é perpétua até a volta de Cristo
Os reformadores acreditam firmemente que a esta igreja visível existiria no cenário do mundo perpetuamente. Ele não é um fenômeno transitório da história ou uma frágil instituição cuja continuidade depende de um ambiente político favorável. 


Duas marcas eram essências para a identificação da verdadeira igreja, segundo a teologia reformada:
  • Administração dos sacramentos (Batismo e Santa Ceia)
  • Proclamação (pregação) da Palavra de Deus



Aula nº 4

CONHECENDO A TEOLOGIA REFORMADA
Heber Carlos de Campos – Pr. Presbiteriano

            2. A Visão Política e Social
            Desde os primórdios do cristianismo tem existido diferentes atitudes com respeito ao governo e à política na vida da igreja, algumas delas opostas entre si.
·         Tertuliano “declarou que Jerusalém e Atenas (o ensino cristão e a cultura grega) não possuem nada em comum, e que os cristãos, portanto, deveriam participar da vida cultural o menos possível.
·         Agostinho, cerca de dois séculos depois, que também exerceu grande influência sobre outros círculos da igreja cristã. Agostinho norteou a vida da igreja por vários séculos através da sua obra A Cidade de Deus. Ali ele argumentou que o estado e a igreja são “duas espadas” debaixo do governo de Deus, ambas servindo aos propósitos divinos, mas independentes entre si.
·         Tomás de Aquino, séculos mais tarde, sustenta um outro posicionamento bem diferente. Ele cria que a autoridade temporal deveria estar sujeita à autoridade espiritual. A igreja deveria guiar o estado. Todos os aspectos da cultura estariam dependentes da igreja.
o   Durante muitos séculos a Igreja Católica Romana seguiu os princípios elaborados por Tomás de Aquino com respeito à política e à cultura.
o   De Aquino em diante houve o crescimento do escolaticismo, no qual a Igreja tomou todas as frentes nas suas mãos. Ao invés de implantar o Reino de Deus no mundo, por causa da deturpação de muitas coisas na ecclesia docens “igreja docente”, esta acabou manifestando a intenção de ser a senhora do mundo, e por vários séculos, foi exatamente o que ela foi.
           
            No tempo da Reforma Protestante houve diferentes entendimentos com respeito ao envolvimento político e social da igreja.
·         Os anabatistas[1] defendiam um certo distanciamento das atividades políticas.
·         Lutero, por outro lado, percebe-se claramente a importância da política e do envolvimento com os problemas sociais. Lutero fez distinção entre os dois reinos – Igreja e temporal – a autoridade da igreja e a autoridade temporal.
o   Combatendo o sistema político papal vigente na Idade Média, Lutero insurgiu-se contra a idéia de que o poder espiritual é superior ao temporal. Havia a distinção entre a hierarquia e o laicato. A primeira não podia ser disciplinada pela segunda. Portanto, o poder temporal não possuía força sobre o poder eclesial. No entanto, Lutero afirmava que os ímpios poderiam ser punidos pela autoridade temporal, inclusive os clérigos. Lutero procurou demolir os princípios medievais da monarquia e da hierarquia nas instituições eclesiásticas.
·         Calvino teve uma perspectiva relativamente diferente com respeito à política e ao envolvimento social. Ele teve muitas de suas idéias calcadas nos ensinos de Agostinho, inclusive as relacionadas com o pensamento político. Deus era o Senhor e a Escritura a única regra de fé para uma nação. João Calvino foi o mais político dos reformadores, porque sua visão de Reforma não era simplesmente a dos indivíduos, mas também da igreja e da sociedade.
o   Calvino estabeleceu o direito e o dever de resistência ao Estado. Em qualquer regime político, os cristãos devem opor-se com vigor às exigências do Estado cada vez que estas sejam contrárias à vontade de Deus. Para Calvino, este direito de resistência não está em contradição com o imperioso dever cristão de obediência às autoridades. Ao contrário, expressa o limite necessário desse dever. De fato, em todo o tempo e em qualquer circunstância, o cristão tem um só mestre, que é Jesus Cristo. A obediência parcial que se deve aos senhores humanos... é só uma obediência derivada, condicional e sempre subordinada à única autoridade absoluta: a de Jesus Cristo.


Puritanos
            Esse espírito da filosofia de Calvino atravessou o Canal da Mancha e entrou na Escócia de John Knox, que foi um dos inspiradores do puritanismo na Inglaterra. Knox, ao contrário de Lutero, não escudou-se na Escritura para ficar silencioso diante das injustiças da sua rainha. Ele desafiou-a publicamente com todo o vigor da sua fé calvinista. Ele cria que os governos eram uma instituição divina, mas também cria que havia um senso de justiça que tinha que ser implantado no seu país. E a justiça deveria começar com a rainha da Escócia. Por essa razão, na luta pela implantação dos princípios do reino de Deus, os discípulos de Knox, dentro do Parlamento, aprovavam a execução da soberana (a rainha) em nome do Soberano (Deus).
            O puritanismo, além de outras ênfases, tentou trazer para a Inglaterra um despertamento geral que envolvesse as autoridades do país.
            Os puritanos tentaram restaurar os padrões de culto e de política dos tempos bíblicos. Escorraçados por causa de sua fé e do seu pensamento político, alguns deles fugiram para a América do Norte, a partir de 1620. Aportaram ali e tentaram implantar uma sociedade nos moldes dos tempos do Antigo Testamento. Deus era o Senhor da terra e de todas as outras atividades. Procuraram basear a sua sociedade nos padrões de um regime teocrático. A lei de Deus era a lei do povo. Eles nunca entenderam que a vox populi era a vox Dei (voz popular era a voz de Deus).
·         De qualquer forma, os reformados (os de origem calvinistas, puritana) têm tido uma atitude diferente, pelo menos em teoria, da dos anabatistas e dos luteranos. Os cristãos, segundo os calvinistas, devem estar engajados na vida política do país.
·         De acordo com os princípios éticos da fé reformada, o cristão deve lutar para reestruturar a sociedade onde vive, moldando-se de acordo com os padrões estabelecidos na Palavra de Deus.


A POSIÇÃO ESCATOLÓGICA COMO FATOR DETERMINANTE DO ENVOLVIMENTO POLÍTICO E SOCIAL
            O envolvimento político e social do cristão, pelo menos na igreja contemporânea, pode estar diretamente vinculado à sua posição escatológica e mais especificamente á sua idéia do reino de Deus.
            Há três posições básicas com respeito ao envolvimento dos cristãos na política: acomodação, separação e transformação.
           
·         Amilenistas – São mais tendentes à acomodação (adaptação). O fato de crerem que o Reino de Deus já está presente e que já vivemos o milênio, uma vez, que para eles o milênio se manifesta espiritualmente e não literalmente, acabam se acomodando e vivendo apenas no aguardo da segunda vinda de Cristo para o juízo. Podemos dizer que os amilenistas se adaptam ao sistema político, seja qual for, embora não pactuem com suas impiedades. Entendem que devem lutar no que for possível por leis justas, por princípios que estejam de acordo com a Palavra de Deus, se envolvem politicamente e socialmente, contudo não são radicais como os pós-milenistas.
o   Essa crença favorece o pluralismo de idéias e a liberdade religiosa.
o   A Igreja age com tolerância as muitas idéias (devemos respeitar a liberdade religiosa e de idéias), contudo se posiciona com um pouco mais de veemência que os pré-milenistas.
o   Entendem que existe uma certa continuidade no Reino de Deus temporal (em nossas vidas) e no Reino de Deus que virá.

·         Pré-milenistas – São tendentes à separação. Crêem que Jesus Cristo reinará literalmente por mil anos após sua segunda vinda, o que os leva a compreender que este mundo não tem solução enquanto Cristo não voltar. Em geral sustentam uma descontinuidade entre o reino presente e o reino futuro que Cristo vai inaugurar.
o   Essa crença, assim como o amilenismo, favorece o pluralismo de idéias e a liberdade religiosa.
o   Governo Civil - Os pré-milenistas são totalmente favoráveis a um regime democrático que lhes permita a proclamação do Evangelho.
o   Ética civil - Não lutam para que os governos tenham leis cristãs, mas que apenas haja liberdade para pregarem o Evangelho e que as mesmas sejam justas para todos os cidadãos. (Podemos afirmar que buscam leis que sejam sustentadas pela revelação natural e não pela revelação especial).
o   A Igreja age com tolerância as muitas idéias (devemos respeitar a liberdade religiosa e de idéias).
o   Os anabatistas é os que defendiam a separação dos cristãos nos problemas da sociedade. O cristão tinha que se importar era com a salvação (alma/espírito) do pecador.
o   Acreditam na descontinuidade do Reino de Deus temporal e no Reino de Deus que virá.

·         Pós-milenistas – Em eles querem uma transformação da sociedade através da política. O Estado deve seguir as regras divinas, estabelecidas em linhas gerais na Escritura (são os herdeiros mais próximos dos puritanos). Sua fé em que o Reino de Deus já está presente, mas que o milênio acontecerá literalmente, através da ação da Igreja, os tornam agentes transformadores da sociedade. A Igreja vai implantar o milênio.
o   Não aceitam outras religiões, outras verdades. Não existe espaço para o pluralismo de idéias.
o   Os padrões morais políticos, as leis, a ética civil deve ser tudo baseado nas leis e padrões de Deus (da Bíblia).
o   Acreditam na continuidade do Reino de Deus atual.





Aula nº 5

DISCIPLINA NA IGREJA
Valdeci da Silva Santos – Pr. Presbiteriano

            Disciplina eclesiástica é um termo em risco de extinção no atual vocabulário cristão. Desde que os princípios do pós-modernismo encontraram lugar no seio da igreja, qualquer conceito que ameace o individualismo e a liberdade de escolha quanto ao estilo de vida, comportamento, etc., é logo taxado de arcaico. A dicotomia prática de muitos cristãos gera a ilusão de que a igreja não tem nada a ver com o procedimento “secular” de seus membros. Nessa “nova era” antropocêntrica, a igreja é vista como uma organização altamente dependente do individuo, e que precisa conservá-lo ao custo de várias exceções. O medo da impopularidade leva muitos líderes à cumplicidade e pecados são justificados em nome de uma atitude mais “humana”. Por outro lado, o que dizer daqueles que, em nome do zelo pela disciplina, cometeram injustiças e causaram mais males que bens? Em todo esse contexto, a disciplina tem uma vida curta e a tolerância consagra-se como a virtude da moda. Porém, o que acontece com uma igreja sem disciplina?
            O termo “disciplina”, em geral, é empregado em vários sentidos. Podemos usá-lo para referir-nos a uma área de ensino, ao exercício da ordem, ao exercício da piedade ou a medidas corretivas no seio da igreja.
            O objetivo deste artigo é delinear alguns fatores da importância da disciplina eclesiástica entre os membros do corpo de Cristo. Porém, o que motiva esta reflexão é a esperança de que a mesma seja útil para elucidar a muitos quanto ao aspecto bíblico-teológico da disciplina.

            1 – Errando o Alvo
            A igreja cristã tem sido acusada de ser o único exército que atira nos seus feridos. O grau de verdade dessa acusação é, muitas vezes, devido a mal-entendidos com relação à disciplina eclesiástica. Tais mal-entendidos estão presentes em pelo menos dois grupos: 1) os que aplicam a disciplina; 2) os que sofrem a aplicação da mesma. Como cada caso deve ser analisado individualmente, só nos cabe aqui listar os mal-entendidos mais comuns em relação à disciplina eclesiástica.

A.   Disciplina e Despotismo
            Com a subida ao poder do Partido Nacional na África do Sul, em 1948, a segregação foi legalizada em nome da disciplina. Como resultado foi sancionado o aprisionamento de negros sem nenhum julgamento formal. Isso não foi disciplina, mas despotismo.
            A História da Igreja Medieval apresenta uma vasta galeria de ilustrações da confusão entre o uso da disciplina e o exercício do despotismo. Seria isto apenas um fenômeno do passado? Infelizmente basta familiarizar-se com os círculos eclesiásticos para se descobrir que o espírito medieval ainda está vivo e ativo na mente e atitude de alguns líderes modernos.          


B.   Disciplina e Discriminação
            A confusa identificação entre disciplina e discriminação pode ser vista sob dois aspectos: 1) no abandono do disciplinado por parte da igreja; 2) na recusa do disciplinado em receber a disciplina. Para se evitar o primeiro erro é imprescindível que a família cristã não desista de um dos seus membros que caiu. Paulo exorta a igreja para que manifeste perdão, conforto e reafirmação de amor para com o arrependido, para que “o mesmo não seja consumido por excessiva tristeza” (2 Co 2.7-8). Outra razão para esta exortação é para que “Satanás não alcance vantagem” sobre a igreja, criando amargura, discórdia e dissensão (v.11).
            Há sempre a possibilidade de que o disciplinado não se submeta à disciplina, e acuse a igreja de discriminação. Tal atitude apenas manifesta ignorância e estupidez (Pv 12.1). Segundo as Escrituras, é o pecado e a determinação em segui-lo que gera discriminação, e não a disciplina (1 Co 5.5 e 1 Tm 1.20).

C.   Disciplina e Arbitrariedade
            “Com que direito fizeram isso?” Esta é a pergunta que constantemente se ouve em casos de disciplina. Essa pergunta revela um mal-entendido comum entre disciplina e arbitrariedade. Ou seja, é como se aqueles que aplicam a disciplina não tivessem nenhum direito de fazer tal coisa debaixo do sol. Alias, alguns argumentariam: “não somos todos pecadores?”
            Primeiramente, é preciso lembrar que toda atitude pecaminosa precisa ser corrigida, mas há algumas que requerem correção pública. Por exemplo, em Mateus 18.16-17 o evangelista fala daqueles que se recusam a abandonar o pecado mesmo diante de uma amorosa exortação pessoal.
            Na sua primeira Carta aos Coríntios 5.1-13, Paulo descreve as pessoas cujas práticas trazem escândalo à igreja, e na Primeira Carta a Timóteo 1.20, na Segunda Carta a Timóteo 2.17-18 e na Segunda Carta de João 9-11 são mencionados os que dissimulam ensinos contrários ao Evangelho. Por outro lado, na Carta aos Romanos 16.17 o apóstolo recomenda disciplina aos que causam divisões na igreja, e ao escrever a Segunda Carta aos Tessalonicenses 3.6-10 ele prescreve disciplina eclesiástica para aqueles que se deleitam na preguiça. Há um princípio claro: “Os pecados que foram explicitamente disciplinados no Novo Testamento eram conhecidos publicamente e externamente evidentes, e muitos deles haviam continuado por um período de tempo”.
            Com relação à autoridade, é importante lembrar que a autoridade na disciplina nunca vem daquele que a aplica, mas daquele que a ordenou, sou seja, o Cabeça e Senhor da Igreja (Ef 1.22-23). Além do mais a pergunta a ser feita deve ser: “Com que direito um membro da Igreja do Cordeiro profana o sangue da aliança e ultraja o Espírito da graça?” (Hb 10.29).


            2 – O Ensino Bíblico
            A – A Necessidade da Disciplina
            Aquele que ordena a disciplina na igreja e o mesmo que estabelece o padrão a ser seguido no exercício da mesma. Esse padrão consiste primeiramente em amor paternal (Hb 12.4-13). É certo que o mundo vê a disciplina como expressão de ira e hostilidade, mas as Escrituras mostram que a disciplina de Deus é um exercício do seu amor por seus filhos. Amor e disciplina possuem conexão vital (Ap 3.19). Além do mais, disciplina envolve relacionamento familiar (Hb 12.7-9), e quando os cristãos recebem disciplina divina, o Pai celestial está apenas tratando-os como seus filhos. Deus não disciplina bastardos, ou seja, filhos ilegítimos (v.8). O padrão de disciplina divina revela também maravilhosos benefícios. A disciplina que vem do Senhor “é para o nosso bem (v.10)”. Ainda que seja inicialmente doloroso receber disciplina, a mesma produz paz e retidão (v.11). O v.13 ensina que o propósito de Deus em disciplinar não é o de incapacitar permanentemente o pecador, mas antes de restaurá-lo à saúde espiritual.
            Segundo as Escrituras, a disciplina na igreja está fundamentada não apenas no exercício do bom senso, mas principalmente nos imperativos do Senhor. O mandato bíblico referente à disciplina é encontrado especialmente no ensino de Jesus (Mt 18.15-17) e nos escritos de Paulo (1 Co 5.1-13). Também, há clara referência bíblica de que a igreja que negligência o exercício desse mandato compromete não apenas sua eficiência espiritual, mas sua própria existência. A igreja sem disciplina é uma igreja sem pureza (Ef 5.25-27) e sem poder (Js 7.11-12a). A igreja de Tiatira foi repreendida devido à sua flexibilidade moral (Ap 2.20-24).

            B – Formas De Disciplina[2]
            Quando nos referimos à disciplina na igreja, devemos pensar não somente na punição do erro. A Disciplina bíblica na igreja se inicia com atitudes de prevenção e, por conseguinte, inclui tanto a disciplina formativa como a reformativa.
            A primeira envolve todo o processo que resulta em prevenir os crentes de caírem no pecado (batismo, sermões, comunhão, dizimar, etc.).
            A disciplina reformativa, assim como nos sugere o termo, se preocupa com o aprimoramento de um crente que se beneficia pouco da disciplina formativa, um crente que erra em sua jornada cristã.

            C – Os Passos da Disciplina
            Biblicamente, a disciplina na igreja tem um triplo objetivo: 1) restabelecer o pecador (Mt 18.15; 1 Co 5.5 e Gl 6.1); 2) manter a pureza da igreja (1 Co 5.6-8); 3) dissuadir outros (1 Tm 5.20). É este triplo propósito que aponta para os passos a serem seguidos em uma aplicação correta da disciplina eclesiástica. Esses passos são especialmente mencionados em Mateus 18.15-17.

            1 – Abordagem individual
            O v.15 (“Se teu irmão pecar vai argüi-lo entre ti e ele só...”) ensina que a confrontação é uma tarefa cristã. Uma das melhores coisas a fazer por um irmão em pecado é confrontá-lo em amor (Pv 27.5-6). Mas é sempre arriscado confrontar alguém, pois nunca se pode prever a reação do mesmo. Jesus, todavia, dirige nossa atenção para a alegre possibilidade de que tal irmão nos ouça.

            2 – Admoestação privada
            No caso de o ofensor não atender à confrontação individual, Jesus ordena que haja admoestação privada (v.16). Nesse caso, um número maior de pessoas é envolvido. A principio, pode parecer que o objetivo desse passo é intimidar o ofensor. Uma atenção maior, porém, leva-nos a entender que o propósito do mesmo pode ser o de conscientizar o ofensor quanto aos prejuízos de sua atitude para com a comunidade do corpo de Cristo. Em outras palavras, nosso pecado traz conseqüências pessoais e coletivas. Além do mais, Jesus afirma que as outras pessoas envolvidas nesse processo serão testemunhas. Isto é uma referência à prática vetero-testamentária de não se condenar alguém com base em uma opinião pessoal (Nm 35.30, Dt 17.6). Com isso, a objetividade do caso é preservada, o que diminui as chances de injustiça, e o ofensor é beneficiado.

            3 – Pronunciamento público (v.17)
            Tal proceder nunca é violação de segredos, pois o ofensor deliberadamente recusou os caminhos prévios do arrependimento. Diante de tal pronunciamento cada membro do corpo de Cristo deve orar pelo pecador, evitar comentários desnecessários (2 Ts 3.14-15) e vigiar a si próprio (1 Co 10.12). Tal oficialização pública da disciplina traz implicações temporárias em relação aos sacramentos (1 Co 11.27).

            4 – Exclusão pública
            O último recurso da disciplina é o da excomunhão (do latim ex, “fora”, e communicare, “comunicar”), na qual o ofensor é privado de todos os benefícios da comunhão. Nesse caso, o ofensor é tido como gentio (a quem não era permitido entrar nos átrios sagrados do Senhor) e publicano (que eram considerados traidores e apóstatas: Lc 19.2-10). Com estes não há mais comunhão cristã, pois deliberadamente recusam os princípios da vida cristã (1 Co 5.11). Se o seu pecado é heresia, ou seja, o desvio doutrinário das verdades fundamentais ensinadas nas Escrituras, eles não devem nem mesmo ser recebidos em casa (2 Jo 10-11).

            A disciplina eclesiástica “não é uma atividade a ser realizada facilmente, mas algo a ser conduzido na presença do Senhor”.


            3 – Implicações Teológicas
            Sem a intenção de limitar, mas tão somente de elucidar, ofereceremos três tópicos teológicos que estão vitalmente ligados ao processo da disciplina eclesiástica.

            A – Disciplina e a Adoração Cristã
            A verdadeira adoração “é a mais nobre atividade de que o homem, pela graça de Deus, é capaz” (John R. W. Stott). A exclusiva adoração a Deus é um mandato divino (Mt 4.10 e Ap 19.10), é uma marca da fé salvadora (Fp 3.3), e deve seguir os princípios revelados por Deus em sua Palavra.Um princípio essencial da adoração cristã é o zelo pela santidade do nome do Senhor (Êx 20.7 e Mt 6.9).
            Uma igreja adoradora e ao mesmo tempo tolerante para com o pecado no seu seio é uma contradição de termos e recebe a repreensão do Senhor (Ap 2.18-29).

            B – Disciplina e as Marcas da Igreja
            A Reforma Protestante do século XVI considerou importantíssima para a teologia cristã a seguinte questão: Como distinguir entre a igreja verdadeira e a falsa? Em outras palavras, quais são as marcas da verdadeira igreja cristã? Para o reformador João Calvino, tais marcas consistem da proclamação da Palavra, da administração dos sacramentos e do exercício da disciplina eclesiástica. Segundo, ele, “aqueles que pensam que a igreja pode sobreviver por longo tempo sem disciplina estão enganados; a menos que pensemos que podemos omitir um recurso que o Senhor considerou necessário para nós”. Nesse sentido, “a disciplina é tão necessária quanto os ligamentos do corpo humano, ou como a disciplina em família”.
            Sendo que Cristo deseja sua igreja “sem mácula, sem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito” (Ef 5.27), a disciplina eclesiástica é altamente relevante, pois é um meio instituído por Deus para manter pura a sua igreja.

            C – Disciplina e Evangelismo
            A disciplina evidencia o amor cristão pelo pecador, ainda que esse pecador seja um dos membros da igreja. Esse amor pelo pecador cristão também reflete o amor da mesma pelo pecador incrédulo. A disciplina eclesiástica ressalta a seriedade do pecado. Sem a visão dessa seriedade, a igreja não é corretamente motivada a buscar a redenção do pecador. Há uma relação entre disciplina eclesiástica e evangelismo.
            Uma igreja sem disciplina torna-se um impecilho para o avanço do evangelho. Essa relação vital entre evangelismo e disciplina é clara à luz de 1 Co 5.12-13. O evangelismo é dirigido aos que estão fora dos portões da igreja e que estão escravizados pelo pecado. A disciplina é dirigida àqueles que estão dentro dos portões da igreja e que estão se sujeitando ao domínio do pecado. Assim, ambos (evangelismo e disciplina) almejam a liberdade do pecador e a concretização do triunfo histórico da graça sobre o pecado na vida do mesmo (Rm 6.1-23).

            “Há pouca vantagem em uma igreja que tenta vencer o mundo se ela já tem se rendido ao mundo” (Peter Barnes).

            Conclusão
            Uma séria reflexão bíblica sobre a disciplina eclesiástica evidencia dois princípios básicos. Primeiro, que a disciplina na igreja não é uma opção, mas sim uma ordenança e, consequentemente, uma bênção divina (Hb 12.5-7). Segundo, que a disciplina requer profundo amor por parte da igreja que a aplica e semelhante humildade e quebrantamento por parte daquele que é disciplinado (2 Co 2.5-11).






Aula nº 6

LEI E GRAÇA: UMA VISÃO REFORMADA
Mauro Fernando Meister – Pr. Presbiteriano e Mestre em Teologia Exegética do A.T.

            É quase um paradigma para os cristãos modernos associar o Antigo Testamento à Lei e o Novo Testamento à Graça. Em várias oportunidades propus a estudantes de seminário e na escola dominical estabelecer o relacionamento entre os termos e, invariavelmente, a resposta tem sido a seguinte relação:
                                  
                                  

LEI
-
Antigo Testamento
GRAÇA
-
Novo Testamento





            1 – Estamos Sob a Lei ou Sob a Graça?
            Esse questionamento reflete um entendimento confuso do ensino bíblico acerca da lei e da graça de Deus. Muitos associam a lei como um elemento pertencente exclusivamente ao período do Antigo Testamento e a graça como um elemento neotestamentário. Isso é muitas vezes o fruto do estudo apressado de textos como:

            ...sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei, e sim mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois, por obras da lei, ninguém será justificado (Gálatas 2.16).

            Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da lei, e sim da graça (Romanos 6.14).

            E, de fato, uma leitura isolada dos textos acima pode levar o leitor a entender lei e graça como um binômio de oposição. Lei e graça parecem opostos, sem reconciliação – o cristão está debaixo da graça e consequentemente não tem qualquer relação com a lei. No entanto, essa leitura e falaciosa. O entendimento isolado desses versos leva a uma antiga heresia chamada antinomismo, a negação da lei em função da graça. Nessa visão, a lei não tem qualquer papel a exercer sobre a vida do cristão. O coração do cristão torna-se o seu guia e a lei se torna dispensável. O oposto dessa posição é o legalismo ou moralismo, que é a tendência de enfatizar a lei em detrimento da graça (neonomismo). Nesse caso, a obediência não é um fruto da graça de Deus, uma evidência da fé, mas uma tentativa de agradar a Deus e de se adquirir mérito diante Dele. Exatamente contra essa idéia é que a Reforma Protestante lutou, apresentando como uma de suas principais ênfases a sola gratia.
            No século XVI, os católicos acusavam os reformadores de antinomistas, de serem contrários a lei de Deus. Até mesmo o grande reformador Martinho Lutero expressou preocupação quanto a alguns de seus seguidores que, em zelo de proclamar a graça por tanto tempo desprezada pela Igreja, acabavam por desprezar a Lei. Desde a reforma têm aparecido movimentos enfatizando um ou outro desses aspectos, lei ou graça, sempre de forma excludente.
            As implicações da forma como entendemos a relação entre lei e graça vão muito além do aspecto puramente intelectual. Esse entendimento vai, na verdade, determinar toda a forma como alguém enxerga a vida cristã e que tipo de ética esse cristão irá assumir em sua caminhada.
            John Hesselink, um estudioso sobre a relação entre lei e graça, exemplifica que, na década de 1960, os cristãos proponentes da ética situacionista se levantaram contra leis, regras e princípios gerais, propondo uma nova moralidade. Esse movimento propõe que a ética das Escrituras não é absoluta, mas depende do contexto. Nem mesmo a lei moral de Deus é absoluta; ela depende da situação. Essa proposta surgiu e se desenvolveu dentro do cristianismo tradicional, alcançando seguidores de todas as bandeiras denominacionais, praticamente sem restrições. A lei não tem mais qualquer papel determinante na ética cristã; o que determina a ética cristã é o “principio do amor”, conclui o movimento. A conseqüência dessa conclusão é que a graça suplanta a lei.
            As decisões éticas devem ser tomadas levando em consideração o principio do amor. Tome-se por exemplo a questão do aborto no caso do estupro. Aprová-lo nessas circunstâncias é um ato de amor, baseado no principio do amor à mãe que foi estrupada. Ou mesmo a questão da pena de morte. Ela não se encaixa no principio do amor ao próximo, e, portanto, não pode ser uma prática cristã. Até mesmo situações como o divórcio passam a ser aceitáveis pelo principio do amor. A separação de casais passa a ser aceitável pelo mesmo principio. O mesmo acontece com o homossexualismo. Aceitar o homossexualismo passa a ser um ato de amor, e portanto, essa prática não pode ser considerada como pecado, ou, se assim considerada, é um pecado aceitável.
            Mas seria essa a verdadeira conclusão do cristianismo e o verdadeiro ensino das Escrituras sobre a lei? É isso que o estudo das Escrituras e o cristianismo histórico nos ensinam? Nas páginas a seguir avaliaremos o pensamento de Calvino a respeito dessa questão e a aplicação calvinista refletida na Confissão de Fé de Westminster.


            2 – O Uso da Lei
            Para entendermos bem o uso da lei precisamos entender o que são o pacto das obras e o pacto da graça. Assim, é prudente começarmos por esclarecer o que são esses pactos e qual o conceito de lei que está envolvido na questão.
            Pacto das Obras e Pacto da Graça é a terminologia usada pela Confissão de Fé de Westminster para explicar a forma de relacionamento adotada por Deus para com as suas criaturas, os seres humanos. Mais do que isso, essa terminologia reflete o sistema teológico adotado pelos reformadores, conhecido como teologia federal. De forma bem resumida, podemos dizer que o pacto das obras é o pacto operante antes da queda e do pecado. Adão e Eva viveram originalmente debaixo desse pacto e sua vida dependia da sua obediência à lei dada por Deus de forma direta em Gênesis 2.17 – não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. Adão e Eva descumpriram a sua obrigação, desobedeceram a lei e incorreram na maldição do pacto da obras, a morte.
            O pacto da graça é a manifestação graciosa e misericordiosa de Deus, aplicando a maldição do pacto das obras à pessoa de seu Filho, Jesus Cristo, fazendo com que parte de sua criação, primeiramente representada em Adão, e agora representada por Cristo, pudesse ser redimida. Porém, a lei antes da queda não se resume à ordem de não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. A lei não deve ser reduzida a um aspecto somente. Existem outras leis, implícitas e explícitas, no texto bíblico. Por exemplo, a descrição das bênçãos em Gênesis 1.28 aparece nos imperativos sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e dominai. Esses imperativos foram ordens claras do Criador a Adão e sua esposa e, por conseguinte, eram leis. O relacionamento de Adão com o Criador estava vinculado à obediência, a qual ele era capaz de exercer e assim cumprir o papel para o qual fora criado. No entanto, o relacionamento de Adão com Deus não se limitava à obediência. Esse relacionamento, acompanhado da obediência, deveria expandir-se de maneira que nele o Deus criador fosse glorificado e o ser humano pudesse ter plena alegria em servi-lo. A Confissão de Fé não fala da lei de Deus gravada no coração do homem. Essa lei gravada no coração do ser humano reflete o tipo de intimidade reservada por Deus para as suas criaturas.
            Nesse contexto podemos perceber que a lei tinha um papel orientador para o ser humano. Para que o seu relacionamento com o Criador se mantivesse, o homem deveria ser obediente e assim cumprir o seu papel. A obediência estava associada à manutenção da bênção pactual. A não obediência estava associada a retirada da bênção e à aplicação da maldição. A lei, portanto, tinha uma função orientadora. O ser humano, desde o principio, conheceu os propósitos de Deus através da lei. Tendo quebrado a lei; ele tornou-se réu da mesma e recebeu a clara condenação proclamada pelo Criador: a morte.
            O que acontece com essa lei depois da queda e da desobediência? Ela tem o mesmo papel? Ela possui diferentes categorias? Por que Deus continuou a revelar a sua lei ao ser humano caído?

            3 – De Que Lei Estamos Falando?
            A revelação da lei de Deus, como expressão objetiva da sua vontade, encontra-se registrada nas Escrituras. Esse registro, que começou nos tempos de Moisés, fala-nos da lei que Deus deu a Adão e também aos seus descendentes. Essa lei foi revelada ao longo do tempo. Dependendo das circunstâncias e da ocasião em que foi dada, possui diferentes aspectos, qualidades ou áreas sobre as quais legisla. Assim, é importante observar o contexto em que cada lei é dada, a quem é dada e qual o seu objetivo manifesto. Só assim poderemos saber a que nos estamos referindo quando falamos de Lei.
            A Confissão de Fé, no capítulo 18, divide esses aspectos em lei moral, civil e cerimonial. Cada uma tem um papel e um tempo para sua aplicação.
(A) Lei Civil ou Judicial – representa a legislação dada à sociedade israelita ou à nação de Israel; por exemplo, define os crimes contra a propriedade e suas respectivas punições.
(B) Lei Religiosa ou Cerimonial – representa a legislação levítica do Velho Testamento; por exemplo, prescreve os sacrifícios e todo o simbolismo cerimonial.
(C) Lei Moral – representa a vontade de Deus par ao ser humano, no que diz respeito ao seu comportamento e ao seus principais deveres.

            3.1 – Toda a Lei é aplicável aos nossos dias?
            Quanto à aplicação da Lei, devemos exercitar a seguinte compreensão:
            Lei Civil tinha a finalidade de regular a sociedade civil do estado teocrático de Israel. Como tal, não é aplicável normativamente em nossa sociedade. Os sabatistas erram ao querer aplicar parte dela, sendo incoerentes, pois não conseguem aplicá-la, nem impingi-la, em sua totalidade.
            Lei Religiosa tinha a finalidade de imprimir nos homens a santidade de Deus e apontar para o Messias, Cristo, fora do qual não há esperança. Como tal, foi cumprida com sua vinda. Os sabatistas erram a querer aplicar parte da mesma nos dias de hoje e ao mesclá-la com a Lei Civil.
            Lei Moral tem a finalidade de deixar bem claro ao homem os seus deveres, revelando suas carências e auxiliando-o a discernir entre o bem e o mal. Como tal, é aplicável em todas as épocas e ocasiões. Os sabatistas acertam ao considerá-la válida, porém erram ao confundi-la e ao mesclá-la com as outras duas, prescrevendo uma aplicação confusa e desconexa.
            Assim sendo, é fundamental que, ao ler o texto bíblico, saibamos identificar a que tipo de lei o texto se refere e conhecer, então, a aplicabilidade dessa lei ao nosso contexto. As leis civis e cerimoniais de Israel não têm um caráter normativo par ao povo de Deus em nossos dias, ainda que possam ter outra função como, por exemplo, ensinar-nos princípios gerais sobre a justiça de Deus. Portanto, a lei que permanece “vigente” em nossas e em todas as épocas é a lei moral de Deus. Ela valeu para Adão assim como vale para nós hoje. Isto implica que estamos, hoje, debaixo da lei?

            3.2 – Estamos sob a Lei ou sob a Graça de Deus?
            Muitas interpretações erradas podem resultar de um entendimento falho das declarações bíblicas de que “não estamos debaixo da lei, e sim da graça” (Romanos 6.14). Se considerarmos que os três aspectos da lei de Deus apresentados acima são distinções bíblicas, podemos afirmar:
            Não estamos sob a Lei Civil de Israel, mas sob o período da graça de Deus, em que o evangelho atinge todos os povos, raças, tribos e nações.
            Não estamos sob a Lei Religiosa de Israel, que apontava para o Messias. Esta foi cumprida em Cristo, e não nos prende sob nenhuma de suas ordenanças cerimoniais, uma vez que estamos sob a graça do evangelho de Cristo, com acesso direto ao trono, pelo seu Santo Espírito, sem a intermediação dos sacerdotes.
            Não estamos sob a condenação da Lei Moral de Deus, se fomos resgatados pelo seu sangue, e nos achamos cobertos por sua graça. Não estamos portanto, sob a lei, mas sob a graça de Deus, nesses sentidos.
            Entretanto...
            Estamos sob a Lei Moral de Deus, no sentido de que ela continua representando a soma de nossas deveres e obrigações para com Deus e para com o nosso semelhante.
            Estamos sob a Lei Moral de Deus, no sentido de que ela, resumida nos Dez Mandamentos, representa o caminho traçado por Deus no processo de santificação efetivado pelo Espírito Santo em nossa pessoa (João 14.15). Nos dois últimos aspectos, a própria Lei Moral de Deus é uma expressão de sua graça, representando a revelação objetiva e proposicional de sua vontade.

            4 – Os Três Usos da Lei
            Para esclarecer a função da lei de Deus dada por intermédio de Moisés nas diferentes épocas da revelação, Calvino usou a seguinte terminologia:

            4.1 - Primeiro uso da Lei: Usus theologics
            É a função da lei que revela e torna ainda maior o pecado humano. Segue o ensino de Paulo em Romanos 3.20 e 5.20:

            ...visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado.

            Sobreveio a lei para que avultasse a ofensa; mas onde abundou o pecado, superabundou a graça.

            Calvino aponta para esse papel da lei diante da realidade do homem caído. Sendo o pecado abundante, vivemos no tempo em que a lei exerce o “ministério da morte” (2 Co 3.7) e, por conseguinte, “opera a ira” (Rm 4.15).
            Cabe aqui uma nota sobre a terminologia dos reformadores (especialmente Calvino) a respeito da lei. A palavra lei é usada em pelo menos dois sentidos distintos, que devem ser entendidos a partir do contexto. Em alguns casos o termo lei é usado como um sinônimo de Antigo Testamento, da mesma forma como Evangelho é usado como um sinônimo do Novo Testamento. Em outros contextos o termo lei é usado como uma categoria especial referente ao seu uso como categoria de comando, um mandamento direto expressando a vontade absoluta de Deus sobre alguma coisa, sem promessa. É dessa forma que Calvino interpreta a lei em 2 Co 3.7, Rm 4.15 e 8.15. Nesse sentido, o binômio que se confirma é o binômio Lei e Evangelho. O mandamento que não traz salvação versus a graça salvadora de Deus. Porém, não podemos esquecer que é o próprio Antigo Testamento que nos apresenta a promessa da salvação de Deus, a sua graça operante sobre os crentes da antiga dispensação.
            Em Romanos, Paulo aponta para a perfeição da lei, que, se obedecida, seria suficiente para a salvação. Porém, nossa natureza carnal confronta-se com a perfeição da lei, e essa, dada para a vida, torna-se em ocasião de morte. Uma vez que todos são comprovadamente transgressores da lei, ela cumpre a função de revelar a nossa iniqüidade.

            4.2 - O segundo uso da Lei: Usus Civilis
            É a função da lei que restringe o pecado humano, ameaçando com punição as faltas contra ela mesma. É certo que essa função da lei não opera nenhuma mudança interior no coração humano, fazendo-o justo ou reto ao obedecê-la. A lei opera assim como um freio, refreando “as mãos de uma ação extrema”.  Portanto, pela lei somente o homem não se torna submisso, mas é coagido pela força da lei que se faz presente na sociedade comum. É exatamente isto que permite aos seres humanos uma convivência social. Vivemos em sociedade, e a lei serve para nos proteger uns dos outros. Com o tempo, o homem pode aprender a viver com tranqüilidade por causa da lei de Deus que nos restringe do mal.

            ...tendo em vista que não se promulga lei para quem é justo, mas para transgressores e rebeldes, irreverentes e pecadores, ímpios e profanos, parricidas e matricidas, homicidas, impuros, sodomitas, raptores de homens, mentirosos, perjuros e para tudo quanto se opõe à sã doutrina...

            Assim, a lei exerce o papel de coerção para esses transgressores e evita que esse tipo de mal se alastre ainda mais amplamente no seio da sociedade humana. Essa ação inibidora da lei cumpre ainda um outro papel importante no caso dos eleitos não regenerados. Ela serve como um aio, um condutor a Cristo, como diz Paulo em Gálatas 3.24 _ “...de maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé”. Dessa forma ela serviu a sociedade judia e serve à sociedade humana como um todo ainda hoje.

            4.3 - O terceiro uso da Lei
            Esse uso da lei é válido para os cristãos – ensina-os, a cada dia, qual a vontade de Deus. Segundo o texto de Jeremias 31.33, a lei de Deus seria escrita na mente e no coração dos crentes.

            Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o SENHOR: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo.

            Se a lei de Deus está impressa na mente e escrita no coração dos crentes, qual a função da lei escrita por Moisés? Ela é realmente necessária? Não basta um coração convertido, amoroso e cheio de compaixão para conhecer a vontade de Deus? A “lei do amor” e a consciência do cristão orientado pelo Espírito Santo não bastam? Não seria suficiente apenas termos a paz de Cristo como árbitro de nossos corações? (Cl 3.15).
            Creio que não é bem assim. A lei, assim como no Éden, tem ainda um papel orientador para os cristãos. Embora eles sejam guiados pelo Espírito de Deus, vivendo e dependendo tão somente da sua maravilhosa graça, a “lei é o melhor instrumento mediante o qual aprendem a cada dia qual seja a vontade de Deus, e, que melhor lhes ajuda a compreensão dessa vontade”. A paz de Cristo como o árbitro dos corações só é clara quando conhecemos com clareza a vontade de Deus expressa na sua lei. Deus expressa sua vontade na sua lei e essa se torna um prazer para o crente, não uma obrigação.
            A lei também serve como exortação par ao crente. Ainda que convertidos ao Senhor, resta em nós a fraqueza da carne, que pode ser, no linguajar de Calvino, chicoteada pela lei, não permitindo que estejamos à mercê da inércia da mesma.   

            5 – Cristo e a Lei
            Precisamos entender que Cristo satisfez e cumpriu a lei de forma plena e completa. Ele não veio revogar a lei. Façamos uma breve análise de Mateus 5.17-19.

            Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus.

            Alguns pontos interessantes são demonstrados por Jesus nessa passagem:
·         Ele veio cumprir a lei e não revogá-la.
·         A lei seria cumprida totalmente, em todas as suas exigências e em todas as suas modalidades (moral, cerimonial e civil) enquanto houvesse sentido em fazê-lo.
·         Aquele que viola a lei pode chegar ao Reino dos Céus! (aquele que violar... será considerado mínimo no reino dos céus). O sermão do monte é um sermão para crentes e o texto pode ser entendido dessa forma.
·         Aquele que cumpre a lei será considerado grande no Reino dos Céus.

            Como entender essas conclusões de Jesus com respeito a si mesmo e a Lei?
·         Ele veio cumprir a lei e de fato a cumpriu em todas as suas dimensões: cerimonial, civil e moral. Não houve qualquer aspecto da lei para qual Cristo não pudesse atentar e cumprir. Cristo cumpriu a lei de forma perfeita, sendo obediente até a própria morte. Ele tomou sobre si a maldição da lei. Ele se torna o fundamento da justificação para o eleito.
o   O cumprimento total da lei por Cristo, pois fim a Lei Cerimonial (sacrifícios de sangue, o guardar dias especiais, abstenção alimentos, etc.).
·         Ele não só cumpriu a lei perfeitamente, mas também interpretou a lei de forma perfeita, permitindo aos que comprou na cruz, entendê-la de forma mais completa, mais abrangente.
·         Os que nele crêem agora também podem cumprir os aspectos necessários da lei para uma vida santa. No entanto, esses que por ele são salvos não são mais dependentes da lei para sua salvação. Por isso há uma diferença clara entre os que chegam ao Reino dos Céus: alguns serão considerados maiores do que outros.
·         Cristo ao cumprir a lei, ab-roga a maldição da lei, mas não a sua magisterialidade. A lei continua com o seu papel de ensinar ao ser humano a vontade de Deus. A ab-rogação da maldição da lei é aquilo a que Paulo se refere em textos como Rm 6.14 e Gl 2.16 – estamos debaixo da graça! A lei continua no seu papel de nos ensinar, pela obra do Espírito Santo. Não somos mais condenados pela lei nem servos da mesma. A lei, por expressar a vontade de Deus, se torna um prazer.

            Portanto, nossa obediência à lei não acontece e não pode acontecer sem Cristo. Tentar viver debaixo da lei, sem Cristo, é submeter-se à escravidão. Porém, obedecer à lei com Cristo é prazer e vida. Também, nesse sentido, Cristo é o fim da lei!




O Pacto da graça é frequentemente apresentado nas Escrituras pelo nome de Testamento, em referência à morte de Cristo, o testador, e à perdurável herança, com tudo o que lhe pertence, legada neste pacto.


PACTO DA GRAÇA APRESENTADO
MANIFESTADA ATRAVÉS
ADMINISTRADO POR MEIO
Velho Testamento
Lei – justifica na obediência.
Promessas, profecias, sacrifícios, circuncisão, e outras ordenanças
Novo Testamento
Evangelho – obediência como conseqüência.
Pregação da Palavra e sacramentos (batismo e ceia)







Aula nº 7

O LAICATO NA TEOLOGIA E ENSINO DOS REFORMADORES
Antonio José do Nascimento Filho – Ministro Presbiteriano, mestre em teologia (Th.M) e doutor em Missiologia (D.Miss) pelo Reformed Theological Seminary

            Introdução
            Antes de analisar o ensino dos reformadores sobre o laicato, um retrospecto geral mostrará a posição da Igreja Católica Romana com respeito ao assunto no período da Reforma.
            Na época em que o cristianismo tornou-se a religião aceita do Império Romano, o sistema hierárquico de autoridade estava plenamente estabelecido na igreja. Os leigos ficavam naturalmente na camada mais baixa. Vários níveis de posição separavam-nos dos bispos colocados no topo. Enquanto a igreja estava cada vez mais institucionalizada, os cristãos comuns pareciam tornar-se cada vez menos essenciais nas atividades da igreja. Mais e mais o seu papel foi se tornando o de receber e seguir obedientemente o que descia do alto da escala hierárquica.
            A assim chamada Idade das Trevas manteve a tendência já mencionada. Enquanto a igreja e o estado continuavam a disputar a sujeição da massa popular, o cristão comum não se sentia estimulado a ir muito além de seguir as regras e regulamentos impostos pela igreja.
            A tradição da Igreja Católica Romana fez uma nítida diferenciação entre leigos e religiosos. Estes eram os que assumiram as ordens, compreendendo dois grupos, os sacerdotes e os monges. A ordenação era a designação para um determinado ofício, feita por um bispo, incluindo autorização e responsabilidade para realizar os deveres do ofício atribuído. A distinção entre o clero e o laicato foi mantida e aceita como divinamente estabelecida.
            Na teologia e ensino católico, o sacerdócio consagrado pelo sacramento da ordem era visto como comissionado para cumprir a tríplice função do ofício sacerdotal: ensino, administração e santificação. Assim, o sacerdote, como membro da hierarquia, cumpria a missão da igreja divinamente estabelecida como autoridade de ensino e agente sacramental, tornando disponíveis ao laicato os meios de graça através dos sacramentos.
            A distinção entre o laicato e o clero na tradição católica romana era correspondente à distinção entre igreja e o mundo. A igreja era concebida como societas perfecta (sociedade perfeita), porém inequalis (desigual), com os status clericalis e laicalis, tendo cada grupo seus respectivos direitos e responsabilidades.
            O clero, com o direito e a responsabilidade de administrar os sacramentos, era ordenado para uma vocação sagrada. O laicato, que precisava receber os sacramentos e o ensino, devia procurar o seu trabalho no mundo, o ambiente profano. Eclesiasticamente, a igreja, o ambiente sagrado, tinha prioridade sobre o profano. Implícita nessa distinção estava a valorização do ofício do clérigo. Os monásticos, que renunciavam à participação eclesiástica no mundo (isto é, o profano) por assumirem os votos de celibato, pobreza e obediência, eram designados para a atividade religiosa.
           
            Uma abordagem significativamente diferente da condição e papel do laicato ficou evidente na Reforma Protestante do século XVI. É geralmente aceito que a história moderna iniciou-se no período da Reforma liderada por Martinho Lutero, João Calvino, Ulrico Zuínglio e outros líderes. A Renascença estava proporcionando educação a um número cada vez maior de pessoas não pertencentes ao clero. Tudo isto levou os leigos a desempenharem um papel mais positivo na igreja e na sociedade. Foi o movimento da Reforma, juntamente com o Renascimento, que encaminhou os leigos em direção a uma nova liberdade e nova responsabilidade.
            Martinho Lutero (1843-1546), em sua obra Apelo à Nobreza Cristã da Nação Germânica, rejeitou a estrutura hierárquica da Igreja Católica Romana, bem como a distinção entre clero e laicato. O princípio do sacerdócio universal de todos os crentes, visto como um ensino essencial da Palavra de Deus, forneceu uma base para a insistência na primazia do laicato nas igrejas protestantes. A vocação do ministério, visto como necessário para a vida e prática da igreja, era responsabilidade delegada a pessoas da comunidade dos crentes, que eram comissionadas pela congregação para ensinar, pregar e participar do culto e da adoração. Assim, aqueles que eram comissionados para serem ministros tornaram-se oficiantes para as ocasiões ritualísticas.
            João Calvino (1509-1564) enfatizou a importância de todos os membros da igreja, que eram coletivamente o laicato, viverem de tal modo a realidade de sua condição de eleitos de Deus que ficasse evidente em sua atividade no mundo a manifestação da glória de Deus e a realização diligente desse mandamento. Embora o princípio teológico do sacerdócio universal de todos os crentes tenha sido fundamental ao protestantismo, na prática o ministério ordenado era tido como prioridade na manutenção de seu ensino, pregação e responsabilidades litúrgicas, para o que eram necessários treinamento e educação teológica.

            1 – A IGREJA NA TEOLOGIA DOS REFORMADORES
            A teologia da Reforma é amplamente dominada por duas perguntas: Como posso ter um Deus gracioso? E Onde posso encontrar a verdadeira igreja? A unidade desse dois problemas fundamentais – a busca de um Deus gracioso e da verdadeira igreja – pode ser vista com surpreendente clareza nas teologias de Martinho Lutero e João Calvino. Para Lutero, por exemplo, a resposta a ambas as indagações era dada com radical simplicidade no evangelho do livre perdão, da justificação pela graça imerecida de Deus recebida somente por meio da fé.

A.   O Centro Cristológico em Lutero e Calvino
            Na ênfase de Lutero, o impulso eclesiológico inicial da Reforma é evangélico e cristológico. Isto quer dizer que a natureza e essência da igreja é compreendida pelo reformador à luz de seu profundo embasamento nos evangelhos e na realidade da pessoa e obra de Jesus Cristo.
            Os primeiros reformadores, particularmente Lutero, não estavam preocupados em definir a circunferência da igreja, mas com a proclamação de seu centro cristológico.
            Para Lutero e todos os demais reformadores, e evangelho constituía o centro cristológico da Reforma. Esse foi o impulso inicial da eclesiologia da Reforma. A igreja foi criada pela presença viva de Cristo através de sua Palavra, o evangelho. Onde o evangelho é encontrado, Cristo está presente. Como Lutero citou em seu grande catecismo: “Onde Cristo não é pregado, não há Espírito Santo para criar, chamar e reunir a igreja cristã”. Essa convicção repousa na raiz de toda a luta travada pela Reforma e foi compartilhada pelos reformadores luteranos e reformados. Os reformadores foram intransigentes e indivisos quanto a esse principio; ele forneceu o distinto conceito reformista da igreja, informando e inspirando não somente a doutrina das marcas da verdadeira igreja, mas também o ensino dos reformadores acerca do ministério e seu conceito de missão.
            (...)
            A doutrina da igreja não podia ser deixada como Lutero a tinha definido; outros reformadores tentaram desenvolver uma doutrina mais abrangente e praticável. A linha defendida por Calvino, Martin Bucer e os primeiros puritanos acentuava o conceito do povo reunido. Para Calvino, por exemplo, o que constitui a igreja é, externamente, à aliança entre Deus e seu povo e, interna e substancialmente, a união com Cristo por meio do Espírito Santo.
            Calvino enfatizou a verdade inegável de que a verdadeira igreja está fundamentada sobre Jesus Cristo (centro cristológico). A triologia “sacerdote, profeta e rei” está presente na Escritura no ministério de reis, profetas e sacerdotes do Velho Testamento. Em um contexto neotestamentario, a trilogia foi usada nos escritos dos pais da igreja, para explicar o relacionamento existente entre as unções de reis, profetas e sacerdotes no Velho Testamento, a unção messiânica de Jesus e a justa nobreza do título que lhe foi dado de Cristo, o Ungido.
            Calvino via Jesus como o complemento auspicioso dos profetas do Velho Testamento, “como o rei que foi vitorioso sobre seus inimigos e como o sacerdote que mediou com o Pai em favor de seu povo”. Ele ensinou que “os ofícios recebidos por Cristo por meio de sua unção com o Espírito Santo e as bênçãos desse Espírito transbordaram para os seguidores de Jesus”.
            Calvino apresenta uma doutrina mais externa e formal da igreja do que Lutero. Ele inclui a disciplina ao lado da Palavra e dos sacramentos como marcas essenciais da verdadeira igreja.
            (...)
            A igreja, a Palavra e o ministério estão inseparavelmente relacionados no pensamento de Calvino, como se vê, por exemplo, em seus comentários sobre 1 Timóteo 3.15.
            (...)
Nas Institutas, Calvino afirma: “Pois Cristo é o Cabeça da igreja, e seu Espírito opera dentro dela, distribuindo dons variados individualmente, e preeminentemente os dons de amar, unificar e santificar seus membros”.

            2 – AS CONFISSÕES REFORMADAS E A IGREJA
            O desenvolvimento da doutrina da igreja nas igrejas reformadas no período imediatamente posterior à Reforma pode ser melhor ilustrado com base em algumas das confissões e outros documentos das igrejas entre a metade do século XVI e a metade do século XVII.
            A Confissão de Fé Francesa (1559) foi publicada pelo sínodo nacional da Igreja Reformada da França. Seu principal autor foi Calvino. Os artigos XXV a XXVIII tratam da igreja e seus ministros. Essa confissão de fé afirma notavelmente que a igreja como povo de Deus é compreendida por aqueles que seguem obedientemente a Palavra de Deus.
            A Confissão de Fé Escocesa (1560) foi principalmente obra de John Knox, tendo sido ratificada pelo Parlamento Escocês em 1567. Esta afirma que a igreja verdadeira é caracterizada pela autêntica pregação, pela administração dos sacramentos e por sua universalidade, reunindo os crentes de todas as nações e línguas.
            A Confissão de Fé Helvética (1566) foi adotada por todas as igrejas reformadas suíças e permaneceu em vigor até meados do século XIX. Esta também enfatiza que a igreja é uma assembléia dos fiéis chamados ou reunidos do mundo; uma comunhão de todos os santos, que pela fé participam dos benefícios oferecidos por meio de Cristo. (...) Estabelece que o ofício do ministro é uma prerrogativa e uma providência do próprio Deus para o estabelecimento, governo e preservação da igreja. No Novo Testamento, os ministros foram chamados de apóstolos, profetas, evangelistas, bispos (supervisores), anciãos, pastores e mestres (Ef 4.11).
            A Confissão fala de bispos (definidos como supervisores e vigias da igreja, que administram o alimento e as necessidades da vida da igreja), anciãos, pastores e mestres, como sendo suficientes para aqueles dias. Dá ênfase aos ministros da igreja como servos.
            A Confissão de Fé de Westminster (1647) também aborda o assunto. Durante a Guerra Civil na Inglaterra, o Parlamento instalou a Assembléia de Westminster para fazer recomendações para a reforma da igreja na Inglaterra. Embora a assembléia incluísse alguns episcopais e independentes, a maioria de seus membros era composta de calvinistas, o que permitiu uma forma presbiteriana de governo.
           
            Conclusão: O conceito dos reformadores acerca da igreja, bem como o conceito das confissões de fé reformadas dos séculos XVI e XVII, salientam a igreja de Jesus Cristo composta de todos os crentes espalhados pelo mundo, os quais professam a fé cristã com seus filhos. As metáforas de esposa, corpo e família são usadas para a igreja, o povo de Deus. Portanto, o entendimento cristão da igreja advogado pelos reformadores e pelas confissões de fé mencionadas acima não favorece a distinção entre o clero e o laicato nem identifica a igreja com a estrutura hierárquica reconhecida na Igreja Católica Romana.

            3 – A DOUTRINA DO SACERDÓCIO DE TODOS OS CRENTES
            De todas as ênfases da Reforma Protestante na área eclesiológica, talvez nenhuma tenha conseqüências tão amplas para a vida e missão da igreja como a ênfase no sacerdócio de todos os crentes. Os reformadores insistiram no sacerdócio universal dos crentes em oposição ao clericalismo daquela época. Eles afirmaram o princípio bíblico de que todo cristão é ministro de Deus, de que cada pessoa é um sacerdote. O significado mais pleno da expressão é que todos os cristãos são sacerdotes uns dos outros, pois o sacerdócio refere-se ao ministério mútuo de todos os crentes. (...).

           
            A – O Sacerdócio de Cristo e a Igreja
            Todos os crentes,ordenados e não ordenados, derivam o seu sacerdócio daquele único, santo e eterno sacerdócio de Cristo.
            A boa-nova do Novo Testamento é que não mais existem o sacerdócio da classe clerical do Velho Testamento e o laicato não sacerdotal.

            B – O Ensino dos Reformadores Sobre o Sacerdócio de Todos os Crentes
            Desde a Reforma Protestante, o ofício dos crentes tem sido comumente caracterizado como o sacerdócio de todos os crentes, e os vários direitos e deveres do laicato muitas vezes têm sido baseados no fato desse sacerdócio.
            (...)
           
            1 – Martinho Lutero
            A doutrina do sacerdócio universal de todo os crentes estava no coração da reforma de Lutero. Sua afirmação do sacerdócio universal deriva diretamente de seu conceito fundamental da igreja. O evangelho é o verdadeiro tesouro da igreja e a fonte de sua vida; ele é expresso e incorporado na palavra pregada e nos sacramentos (palavras visíveis); o evangelho é a possessão de todo crente. Assim, todos os cristãos são constituídos sacerdotes pelo evangelho em sua dupla forma de palavra e sacramentos, pois todos são participantes dos mesmos[3].

            2 – João Calvino
            A idéia do sacerdócio de todos os crentes amadurecida na mente de Calvino estava ligada à sua convicção de que o crente não requeria a mediação de um sacerdócio humano em sua aproximação a Deus. Para Calvino, o sacerdócio universal é entendido como algo que expressa a relação entre o crente e seu Deus.
            (...).
            Calvino não negou a validade do sacerdócio e ministério dos líderes ordenados, mas apôs-se violentamente aos abusos do clericalismo, que negava as pessoas leigas seus plenos direitos e responsabilidades como servos de Deus redimidos e restaurados.
           
            C – Os Magistrados (governantes seculares) nas Igrejas da Reforma
            Além disso, deve-se acentuar o papel decisivo dos magistrados nas igrejas da Reforma como um dos princípios fundamentais da teologia protestante. A Reforma tinha sido uma tentativa de afastar a dominação clerical e de dar ao laicato uma participação significativa no governo da igreja. Em 1520, Lutero havia apelado aos nobres alemães, como membros do sacerdócio universal, para assumirem a reforma da igreja.
            Há, certamente, uma diferença de natureza entre igreja e estado, exatamente como há entre cristão e cidadão, mas não precisa ser uma diferença de pessoa; o mesmo indivíduo pode ser tanto cristão quanto cidadão. Na mente de Lutero, a autoridade espiritual da igreja é exercida somente sobre a alma. Essa autoridade é persuasiva e não coercitiva. (...).
            A autoridade temporal do magistrado (governante), por outro lado, é entendida como uma autoridade sobre os corpos e bens dos homens, não sobre as suas almas. È coercitiva em vez de persuasiva. Entretanto, embora o magistrado, sendo leigo, não possa decidir sobre doutrina, deve esforçar-se para que ela seja mantida. O seu primeiro dever é a prosperidade da glória de Deus.
            Neste ponto, as fórmulas luteranas parecem aproximar-se da visão calvinista do magistrado como executivo da igreja. Ainda que, em certo sentido, os dois domínios devam manter-se separados, em outro sentido o magistrado é, ele próprio, um membro da igreja e participante do sacerdócio universal.
            Para Calvino, esses eram domínios distintos que não deveriam misturar-se. Entretanto ambos deviam sujeitar-se a lei de Deus. (...). Contudo, Calvino nunca daria ao magistrado autoridade para decidir questões de doutrina ou iniciar atos de jurisdição eclesiástica. Não cabe aos magistrados usurpar a autoridade dos ministros ou impor-se à igreja acerca de seus próprios assuntos internos.

            4 – OS FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS DO MINISTÉRIO LEIGO
           
            A – A Igreja Como o Laós (povo) de Deus
            Ao longo do Velho Testamento, Israel é constantemente mencionado como o povo de Deus – Êxodo 19.4-7; Deuteronômio 7.6-12; outros. Embora Israel como um todo tenha deixado de reconhecê-la, havia uma vocação missionária estreitamente ligada à sua eleição como povo de Deus.
            O termo hebraico para “povo” (´am) em muitos casos é traduzido na Septuaginta (tradução grega do Velho Testamento) pela palavra grega “Laos”.
            Os termos leigo e laicato têm a sua origem no ensino do Novo Testamento de que os cristãos, como herdeiros da bênção do povo de Deus do Velho Testamento, constituem o laos Theou (povo de Deus), conforme Atos 15.14, Hebreus 4.9, 1 Pe 2.10. (...) Hoje entretanto, os termos leigo e laicato são frequentemente usados para distinguir nitidamente entre ministros ordenados e membros comuns da igreja, com a conotação de que laicato compreende os cristãos de classe inferior. O termo “laos” nunca é usado no Novo Testamento para fazer uma distinção entre a comunidade cristã dos que crêem e os seus líderes.

            B – O Ministério do Laicato na Igreja Primitiva
            A palavra grega para ministério é diakonia, sendo significativo que no tempo do Novo Testamento esse termo era, como ainda é, o meio mais adequado para designar de modo abrangente os obreiros da igreja e ao seu trabalho. Quando Paulo apresenta os relatos de várias funções realizadas por indivíduos (leigo) na igreja primitiva (1 Coríntios 12.4-30; Ef 4.7-12), ele fala da variedade dos ministérios. Refere-se a si mesmo e a outros obreiros como ministros, e ao seu trabalho como ministérios de reconciliação (2 Coríntios 3.6; 11.23; 2 Coríntios 5.18-21,25).
            Na carta aos Efésios, ao resumir o significado dos apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres, Paulo usa a mesma palavra: o trabalho do ministério. Em Atos, o próprio apostolado é descrito em termos de diakonia (At 1.17; Efésios 4.11,12). A palavra ministério, quer em grego ou em português, significa simplesmente serviço; e embora ela tenha rapidamente passado a designar um ofício eclesiástico especifico, o ofício do diácono, o seu sentido original mais amplo nunca foi completamente perdido.
            (...).
            Nesse contexto, o ministro pastoral (diakonos) ocupa o seu lugar, não acima, mas ao lado de todos os membros do corpo, cada um dos quais tem a sua própria diakonia (serviço, ministério) para realizar. (...).

            C – O Laicato e a Comunicação do Evangelho nos Primeiros Dias da Igreja
            O livro de Atos dos Apóstolos e as cartas de Paulo mencionam muitas pessoas que foram essenciais à vida da igreja em seu nascedouro e na disseminação do evangelho. Muito mais que uma responsabilidade, a proclamação das boas novas em Cristo era um estilo de vida para a comunidade neotestamentária. O evangelismo era então responsabilidade de todos os crentes. (...).
            Texto de referência: At 6.7; 8.1,4; 9.31,42; 11.21,25.

            5 – O CONCEITO DE LUTERO E CALVINO SOBRE A COMUNICAÇÃO LEIGA DA FÉ CRISTÃ
            Nos dias dos reformadores o termo descrente aplicava-se a muitos que Roma considerava fiéis. Para os reformadores, descrentes eram todos os que, por qualquer razão, não confessavam ou viviam a fé revelada no evangelho. A verdadeira Reforma da igreja requeria a aceitação do evangelho por aqueles que tinham sido mantidos na ignorância do seu poder. A tarefa de difundir esse conhecimento verdadeiro de fé e vida exposto na Escritura Sagrada foi entregue aos membros comuns da igreja.
            Lutero fundamenta na doutrina do sacerdócio de todos os crentes a sua admoestação no sentido de que todos devem anunciar a Palavra de Deus. (...).
            Entre os reformadores, nenhum falou com mais clareza do que João Calvino a respeito da questão da comunicação leiga da fé cristã. Calvino apela repetidas vezes aos crentes no sentido de demonstrarem interesse por seu próximo descrente. No contexto da época (século XVI), descrentes eram as pessoas comuns do rebanho católico ou aqueles que se livraram da dominação romana, mas não aderiram à Reforma (ao evangelho pregado pela reforma).

            Conclusões:
  • O laicato ocupou lugar preponderante na vida e expansão da igreja primitiva.
  • O laicato recebeu notável reconhecimento na teologia e ensino dos reformadores.

Implicações:
  • Cada crente tem um ministério a desempenhar à De acordo com a compreensão bíblica da igreja, todo cristão é criado à imagem de Deus, e este concede a cada um dons para ministérios de significação eterna.
§  Cada membro do Corpo de Cristo tem o direito e o dever de realizar a obra missionária da igreja.





Aula nº 8

A ÉTICA DO TRABALHO E A AÇÃO SOCIAL
(Fundamentos da Teologia Reformada – Hermisten Maia)

Definição de Trabalho
É o esforço físico ou intelectual, com vistas a um determinado fim. O verbo “trabalhar” provém do latim vulgar tripaliar (torturar com – o tripallium, instrumento de tortura de três paus, que também servia para “ferrar os animais rebeldes”). O termo evoluiu, tomando o sentido de “esforçar-se”, “laborar”, “obrar”.

Algumas Perspectivas Históricas e Filosóficas
A tradição greco-romana desprestigiava o trabalho; a cristã, o valorizava. A Idade Média presenciou o retorno à idéia grega, considerando o trabalho manual degradante ao ser humano e inferior ao ócio, ao repouso, à vida contemplativa, bem como à atividade militar. Na visão de Tomás de Aquino (1225-1274) o trabalho era, no máximo, “eticamente neutro”. Segundo a Igreja Romana:

... a finalidade do trabalho não é enriquecer, mas conservar-se na condição em que cada um nasceu, até que desta vida mortal, passe à vida eterna. A renúncia do monge é o ideal a que toda a sociedade deve aspirar. Procurar riqueza é cair no pecado da avareza. “A pobreza é de origem divina e de ordem providencial”.

Ainda na Idade Média, especialmente a partir do século XI, a posição ocupada pelo trabalho era regida pela divisão gradativa de importância social: Oradores (oratores, eclesiásticos), defensores (bellatores, guerreiros) e trabalhadores (laboratores, agricultores, camponeses). Os eclesiásticos, no seu ócio e nas suas abstrações “teológicas”, ocupavam lugar de proeminência. No currículo das universidades medievais era explícita a visão desprivilegiada do trabalho: “... as disciplinas “mecânicas” ou “lucrativas” [...] eram banidas da escola, deixadas para os leigos pecadores e “iletrados” (illiteratus quer dizer aquele que ignora o latim, que não estudou as artes liberais).

A Perspectiva de Calvino
A Reforma resgatou o conceito cristão de trabalho:

Calvino, fundamentando-se nas Escrituras, é um dos raros teólogos a pôr em evidência, com tanta clareza, a participação do trabalho do homem na obra de Deus. Dessarte, conferiu ele ao labor humano dignidade e valor espirituais que jamais teve na Escolástica, nem, por mais forte razão, na antiguidade. Este fato irá ter grandes repercussões no desenvolvimento econômico das sociedades calvinistas

Lutero e Calvino concordavam quanto à responsabilidade do homem de cumprir sua vocação por meio do trabalho. Não há lugar para ociosidade. O trabalho é “bênção de Deus”. Além disso, ele está relacionado ao progresso da raça humana. Lutero fortaleceu a idéia de que se trata de uma vocação divina. Calvino afirmou:

Se seguirmos fielmente nosso chamamento divino, receberemos o consolo de saber que não há trabalho insignificante ou nojento que não seja verdadeiramente respeitado e importante ante os olhos de Deus.

O amor ao próximo faz com que o honesto trabalho não se limite a satisfazer nossas necessidades, mas também a ajudar nossos irmãos: “O amor nos leva a fazer muito mais. Ninguém pode viver exclusivamente para si mesmo e negligenciar o próximo. Todos nós temos de devotar-nos à ação de suprir as necessidades do próximo”.
Segundo Calvino, “a indolência e a inatividade são amaldiçoadas por Deus”. Todavia, a graça de Deus atenua a severidade de punição, anexando ao labor humano uma dose de satisfação que deveria caracterizar primariamente o trabalho.
Ainda que o dinheiro emprestado a juros seja permitido, é o trabalho honesto, fruto do labor, que deve ser fonte de recursos para o sustento da família; não se deve aproveitar das necessidades alheias, vivendo-se simplesmente de transações financeiras. A usura ilícita é condenada. Um princípio justo é que em todas as negociações haja benefícios para ambas as partes. O ganho ilícito, através do qual o patrimônio é dilapidado, é iniqüidade, uma forma de furto. Portanto, “não se deve fazer um uso pervertido dos labores que outras pessoas empreendem em seu próprio benefício”.

Trabalho, Poupança e Frugalidade
Calvino defendeu três princípios éticos fundamentais: trabalho, poupança e frugalidade. A poupança deveria ter sempre o sentido social. Comentando 2 Coríntios 8.15, ele declara:

Moisés admoesta o povo que por algum tempo fora alimentado com o maná, para que soubesse que o ser humano não é alimentado por meio de sua própria indústria e labor, senão pela bênção de Deus. Assim, no maná vemos claramente como se ele fosse, num espelho, a imagem do pão ordinário que comemos, [...] O Senhor não nos prescreveu um ômer ou qualquer outra medida para o alimento que temos cada dia, mas ele nos recomendou a frugalidade e a temperança, e proibiu que o homem exceda por causa da sua abundância.
Por isso, aqueles que têm riquezas, seja por herança ou por conquista de sua própria indústria e labor, devem lembrar que o excedente não deve ser usado para intemperança ou luxúria, mas para aliviar as necessidades dos irmãos. [...] Assim como o maná, que era acumulado como excesso de ganância ou falta de fé, ficava imediatamente purificado, assim também não devemos alimentar dúvidas de que as riquezas que são acumuladas à expensa de nossos irmãos são malditas, e logo perecerão, e seu possuidor será arruinado juntamente com elas, de modo que não conseguimos imaginar que a forma de um rico crescer é fazendo provisões para um futuro distante e defraudando os nossos irmãos pobres daquela ajuda que a eles é devida.

O reformador genebrês também adverte quanto ao perigo de transformar o trabalho em objeto de avareza justamente pela falta de fé na provisão do Senhor.

O comportamento cristão na riqueza e na pobreza
Interpretando Hebreus 13.16, Calvino afirma que os benefícios prestados aos homens são parcialmente em culto a Deus, sendo isto uma grande honra que Deus nos concede. Não amar o próximo é ofensa a Deus e às pessoas. Em contrapartida, o auxílio recíproco revela a unidade do Espírito em nós.
“Repartir com os outros” tem uma referência mais ampla do que fazer o bem. Inclui todos os deveres pelos quais os homens se auxiliam reciprocamente; e é um genuíno distintivo do amor que os que se encontram unidos pelo Espírito de Deus comunicam entre si.
Seguem alguns princípios apresentados e vivenciados por Calvino concernentes ao uso dos bens concedidos por Deus (suas orientações refletem a fundamentação teológica de sua prática).

1. Em tudo devemos contemplar o Criador e dar-lhe graças. A ingratidão para com Deus é resultado, em parte, de nossa desconsideração de seus feitos para conosco. Portanto, devemos cultivar o tipo de sensibilidade espiritual que nos faça enxergar com gratidão e louvor os atos de Deus em nossa existência, a fim de não sermos injustos para com ele. Os recursos de que dispomos devem ser um estímulo a sermos agradecidos a Deus por sua generosa bondade.

(...).

2. Devemos viver neste mundo com comedimento, sem colocar o coração nos bens materiais; tais preocupações nos fazem esquecer da vida celestial e de “adornar nossa alma com seus verdadeiros atavios”. (...).

A moderação deve pautar o uso de nossos bens (Jo 15.19; 17.14; Fp 3.20; Cl 3.14; Hb 11.16; 1 Jo 2.15). Devido aos nossos desejos incontrolados, devemos rogar a Deus que nos dê moderação, “pois a única forma de agir com moderação própria é quando Deus governa e preside nossos afetos”. Para que não nos ensoberbeçamos, Deus, que nos conhece de modo perfeito, preventivamente equilibra a abundância com a amargura, para que não sejamos tentados.

3. Suportemos a pobreza; usemos moderadamente da abundância. “Tanto sei estar humilhado, como também ser honrado...” (Fp 4.12). Tendo em vista essas palavras de Paulo, Calvino disse: “Para assegurarmos que a suficiência [divina] nos satisfaça, aprendamos a controlar nosso desejos de modo a não queremos mais do que é necessário para a manutenção de nossa vida”.
Nosso desejo incontrolado nos coloca em oposição direta à vontade de Deus. A tendência é de nos envaidecermos com a abundância e nos deprimirmos com a carência. Para muitos de nós, não se ensoberbecer com a riqueza pode ser mais difícil do que não se desesperar com a pobreza. “Aquele que é impaciente sob a privação manifestará vício oposto quando estiver no meio do luxo. Paulo sabia, por experiência própria, agir de modo santo em ambas as circunstâncias. Em tudo, ele era agradecido a Deus (1 Ts 5.18), sabendo que, em Cristo, poderia suportar e vencer qualquer situação. O apóstolo é exemplo de simplicidade em qualquer conjuntura (Fp 4.12).
Calvino observa que temos de usar moderadamente dos recursos que Deus nos deu, para que não caiamos na torpeza do excesso, da vanglória e da arrogância (Rm 13.14). O reformador insiste também no ponto de que aqueles que não aprenderem a viver na pobreza, quando ricos, revelarão sua arrogância e orgulho. Ele de igual modo acredita que é na pobreza que tendemos a nos tornar mais humildes e fraternos. Devemos aprender a repartir e também a ser assistidos pelos nossos irmãos. (...).

4. Somos administradores dos bens de Deus. Devemos ser benevolentes como o Pai celestial, praticando atos de bondade em favor do próximo, sendo despenseiros dos dons da graça de Deus. Precisamos nos lembrar dos seguintes pontos:
·         Tudo pertence a Deus – O que temos é um depósito do que um dia teremos que prestar conta (Lc 16.2).
·         O sentido da riqueza está em fazer o bem – Segundo Calvino, a riqueza residia em não desejar mais do que se tem, e a pobreza, o oposto.
·         A justa graça de compartilhar com alegria – Notemos bem como podemos ser sempre liberais mesmo quando mergulhados na mais terrível pobreza, se suprimos as deficiências de nossas bolsas pela generosidade de nossos corações. A grandeza de nosso trabalho não está simplesmente no que fazemos, mas como e com qual objetivo o fazemos. (...) Nossa “riqueza”, ou seja, suficiência, como resultado da bondade de Deus, tem um sentido social. (...) Ajudar aos necessitados deve ser entendido não como a perda de algum bem, antes, como um privilégio que é concedido a nós pela graça de Deus, que nos capacita a ser generosos e a suportar com paciência as tribulações. No entanto esta ajuda não poderá ser com arrogância; antes deve ser praticada com amor, prontidão, humildade, cortesia e simpatia.
·         O valor de cada um – As pessoas devem ser avaliadas não pelo seu dinheiro, mas por sua piedade. Os piedosos aprendem a reverenciar e a imitar os genuínos servos de Deus.
·         Socorro e oração – Da oração do Senhor, Calvino extrai o principio de que devemos nos preocupar com todos os necessitados. Contudo, sabendo da impossibilidade de conhecermos a todos e de termos recursos para ajudar a todos os que conhecemos, diz que a ajuda não exclui a oração nem esta àquela.





Aula nº 9

A TEOLOGIA REFORMADA DA PREGAÇÃO
Paulo R. B. Anglada – Pr. Presbiteriano, professor de Grego e Hermenêutica no Seminário Teológico Batista Equatorial. Mestre em Teologia e Doutor em Ministério.

      A pregação, como uma forma distinta de comunicação da vontade de Deus revelada na sua Palavra, está em declínio. Em muitas igrejas ela tem sido substituída por um número cada vez maior de atividades.
Há 30 anos[4], o Dr. Martyn Lloyd-Jones foi convidado a proferir uma série de conferências no Westminster Theological Seminary, em Filadélfia. Nessas palestras, publicadas em 1971 com o título Pregação e Pregadores, ele enfatizou que a pregação é a tarefa primordial da igreja e do ministro, e explicou que estava ressaltando isso “por causa da tendência, hoje, de depreciar a pregação em prol de várias outras formas de atividade”. A situação não melhorou. John J. Timmerman observou, quase vinte anos depois, que “em muitas igrejas o sermão é uma ilha que diminui cada vez mais em um mar turbulento de atividades”.
Mesmo igrejas de tradição reformada parecem estar sucumbindo paulatina, mas progressivamente, a essa tendência, e o lugar da pregação no culto tem perdido importância. John Frame, teólogo de tradição reformada, publicou há dois anos o livro Culto em Espírito e em Verdade: Um Estudo Estimulante dos Princípios e Práticas do Culto Bíblico. No livro o autor nega, entre outras coisas, que a pregação seja função restrita dos ministros da Palavra, ou mesmo dos presbíteros em geral, considera a dramatização e o diálogo métodos legítimos de ensino no culto publico, e não vê razão pela qual um culto público não possa ser inteiramente musical. (...)
Muitas são as razões para o declínio contemporâneo da pregação. O surgimento de novos meios de comunicação e de novas mídias interativas, a aversão do homem pós-moderno pela verdade objetiva ou absoluta, a secularização da sociedade, o afastamento do cristianismo das Escrituras, e a própria corrupção da pregação, em muitos púlpitos degenerada em eloqüências de palavras, demonstração de sabedoria humana, elucubrações metafísicas, meio de entretenimento, ou embromação pastoral dominical, certamente são algumas delas. Uma das principais razões, entretanto, diz respeito à concepção moderna da pregação, muitas vezes encarada como atividade meramente humana e pouco relevante, cuja eficácia depende fundamentalmente das habilidades naturais ou capacidade do pregador.
Todas estas tendências, influências e concepções produziram resultados devastadores sobre a pregação nos meios evangélicos. Ela tornou-se como que um apêndice no culto público, e as conseqüências, sem dúvida, se têm feito sentir na vida da igreja. Na perspectiva reformada, o declínio do lugar da pregação no evangelicalismo moderno é uma constatação seríssima. Se a teologia reformada com relação à pregação reflete o ensino bíblico, então muito do estado presente da igreja cristã, se explica como resultado desse declínio da pregação. Meu propósito com este artigo é apresentar, resumidamente, o ensino reformado concernente à natureza, importância, eficácia e propósito da pregação.
1 – A Natureza da Pregação
O conceito reformado de palavra de Deus é mais amplo do que aquele geralmente compreendido pela expressão. Ele inclui a palavra escrita: a Bíblia; a palavra encarnada: Cristo; a palavra simbolizada ou representada: os sacramentos do batismo e da ceia; e a palavra proclamada: a pregação. Na teologia reformada, portanto a pregação da Palavra de Deus é palavra de Deus. (...)
Isto não significa identificação absoluta da palavra pregada com a palavra escrita. As Escrituras são definitivas e supremas, inerentemente normativas, enquanto que a autoridade da pregação é sempre delas derivada e a elas subordinadas. Não significa também que a pregação seja inspirada ou inerrante. Os pregadores, por mais fiéis que sejam na exposição das Escrituras, não são preservados do erro como o foram os autores bíblicos. Muito menos significa que os ministros da Palavra sejam instrumentos de novas revelações do Espírito.
A pregação da Palavra de Deus é palavra de Deus, primeiro porque é na condição de porta-voz, de embaixador, de representante comissionado por Deus que o pregador fala (2 co 5.20). (...) O pregador é um arauto[5]. A pregação é palavra de Deus porque é entregue em nome de Deus, e debaixo da sua autoridade. Em segundo lugar, a pregação é palavra de Deus em virtude do seu conteúdo. A pregação é palavra de Deus, porque transmite a mensagem bíblica, que é a mensagem ou Palavra de Deus. Enquanto a pregação refletir fielmente a Palavra de Deus, ela tem a mesma autoridade, e requer dos ouvintes a mesma obediência.
Pregação, definiu Philips Brooks, é a comunicação da verdade de Deus através da personalidade do pregador. Assim como a palavra inspirada não deixa de ser divina, embora escrita por autores humanos em pleno uso de suas peculiaridades humanas, assim também a palavra pregada não deixa de ser de Deus por ser mediada pela personalidade do pregador.
Na verdade, mais do que mero instrumento de comunicação da vontade de Deus, a pregação, na concepção reformada, é um dos meios pelos quais Cristo se faz presente na igreja. Assim como a fé reformada crê na real presença espiritual de Cristo nos sacramentos, crê também na sua real presença espiritual na pregação, pela qual ele salva os eleitos e edifica e governa a igreja. A pregação é a Vox Dei. (...) Por isso, quem despreza a pregação despreza a Deus, porque Ele não fala por novas revelações do céu, mas pela voz de seus ministros, a quem confiou a pregação da Sua Palavra. Ao falar Deus aos homens por meio da pregação, Calvino identifica dois benefícios: “...por um lado, Ele [Deus], por meio de um teste admirável, prova a nossa obediência, quando ouvimos seus ministros exatamente como ouviríamos a Ele mesmo; enquanto que, por outro, Ele leva em consideração a nossa fraqueza ao dirigir-se a nós de maneira humana, por meio de intérprete, a fim de que possa atrair-nos a si mesmo, ao invés de afastar-nos por seu trovão”.


2 – A Relevância da Pregação
Em virtude dessa elevada concepção da pregação como Vox Dei, a fé reformada atribui à proclamação pública da Palavra de Deus a maior importância. Na tradição reformada a pregação é considerada como o principal meio de graça, como a tarefa primordial da igreja e do ministro da Palavra, como o elemento central do culto, como marca genuína da verdadeira igreja e como o meio por excelência pelo qual é exercido o poder das chaves.

A.   O principal meio de graça
Na teologia reformada a pregação é um meio de graça. Ela e a ministração dos sacramentos são as ordenanças pelas quais o pacto da graça é administrado na nova dispensação.
De fato, na concepção reformada, a pregação é o mais excelente meio pelo qual a graça de Deus é conferida aos homens, suplantando inclusive os sacramentos. Os sacramentos não são indispensáveis; a pregação é. Os sacramentos não tem sentido sem a pregação da Palavra, sendo-lhe subordinados. Os sacramentos servem apenas para edificar a igreja; a pregação, além disso, é o meio por excelência pelo qual a fé é suscitada; é o poder de Deus para salvação.

B.   A tarefa primordial da Igreja e do Pregador
Na concepção reformada, a pregação é a tarefa primordial da igreja e do ministro da Palavra. Em suas mensagens e escritos, os reformadores condenam insistente e duramente o clero romano por negligenciar a pregação. Incapacitados para a tarefa, os sacerdotes católicos delegavam a função a outros (especialmente a pregadores itinerantes, como os dominicanos e franciscanos), e dedicavam-se a atividades secundárias, ou mesmo à ociosidade e à luxuria. A superficialidade e leviandade com que as pessoas participavam da missa era, para Lutero, culpa dos bispos e sacerdotes, que não pregavam nem ensinavam as pessoas a ouvir a pregação.

C.   A centralidade da pregação no culto
No culto medieval, a pregação era considerada, no máximo, como elemento preparatório para a ministração e recepção dos sacramentos. Na concepção reformado-puritana, “a leitura das Escrituras, com santo temor, a sã pregação da Palavra e a consciente atenção a ela em obediência a Deus com entendimento, fé e reverência...” são os principais elementos do culto a Deus na dispensação da graça. A Reforma restaurou a pregação à sua posição bíblica, conferindo a ela a centralidade no culto público.
Na antiga dispensação, o elemento central do culto público era o sacrifício, uma pregação simbólica apontando para o sacrifício de Cristo. Na nova dispensação, havendo Cristo oferecido a si mesmo como o Cordeiro Pascal que tira o pecado do mundo, não há mais lugar para sacrifícios. A pregação da Palavra é a legitima substituta do sacrifício como atividade central do culto na dispensação da graça. O que o sacrifício proclamava de forma simbólica e pictória na antiga dispensação, deve ser agora anunciado de forma oral, pela leitura e pregação da Palavra.
D.   A marca essencial da verdadeira Igreja
Porquanto na pregação Cristo fala e se faz presente, governando e ensinando a igreja, a fé reformada é unânime em considerar que a pregação da Palavra é uma das marcas da verdadeira igreja. Diversos símbolos de fé reformados, dentre os quais a Confissão Belga (artigo 29), A Confissão Escocesa de 1560 (artigo 18), a Confissão de Fé Francesa de 1559 e a Segunda Confissão Helvética de 1566 (capitulo 17) professam que a “pregação pura do evangelho”, a “verdadeira pregação da Palavra de Deus”, é uma das marcas pelas quais a verdadeira igreja de Cristo pode ser reconhecida neste mundo. (...)
De fato, dentre as três marcas da verdadeira igreja geralmente reconhecidas (a pregação, a ministração dos sacramentos e o exercício da disciplina), a pregação é considerada a mais importante.

3 – A Eficácia da Pregação
Embora tendo a elevada concepção da pregação, a fé reformada não atribui à palavra pregada eficácia automática, mecânica ou mágica, e nem a associa primordialmente às habilidades e capacidades pessoais do pregador ou dos ouvintes. A eficácia da pregação, na teologia reformada, depende fundamentalmente da operação do Espírito Santo e da responsabilidade humana do pregador e dos ouvintes.

3.1 – A eficácia da pregação e as habilidades pessoais do pregador
Com base em 1 Coríntios 2.1-4 e 2 Coríntios 3.5, a fé reformada sustenta que a eficácia da pregação não depende, em primeiro lugar, da eloqüência, linguagem elaborada, gesticulação premeditada ou da capacidade intelectual do pregador. Um pregador pode ser eloqüente, pode gesticular bem, evidenciar grande capacidade intelectual e, no entanto, sua pregação pode ser completamente ineficaz. De fato, estas coisas podem tornar-se até em empecilho para a genuína promoção do reino de Deus. O ideal reformado-puritano da pregação inclui linguagem simples e gesticulação natural.

3.2 – A obra do Espírito Santo para a eficácia da pregação
No entendimento reformado, a eficácia da pregação depende principalmente da obra do Espírito, que ocorre em três instâncias: na preparação do sermão, na entrega da mensagem e na recepção da mensagem por ocasião da pregação.
Com relação ao pregador, a eficácia da pregação depende da capacitação do Espírito para a tarefa (2 Co 3.5-6). É o Espírito Santo quem confere poder à pregação (1 Co 2.4-5 e 1 Ts 1.5). Calvino escreveu que “nenhum mortal está por si mesmo qualificado para a pregação do evangelho, a não ser que Deus o revista com o seu Espírito”. (...)
A eficácia da pregação depende da ação iluminadora do Espírito Santo na preparação do sermão e da unção do Espírito na entrega da mensagem. (...) Se o Espírito Santo não assistir o pregador no seu labor exegético, o resultado do seu trabalho será insuficiente, por maior que seja o seu conhecimento e por mais diligente que seja o seu trabalho.
Com relação ao ouvinte, a eficácia da pregação depende, em última instância, da ação iluminadora interna do Espírito Santo na sua mente e coração. É ele quem abre o coração dos ouvintes para que compreendam a mensagem (At 16.14). É ele quem escreve a mensagem no coração dos ouvintes (2 Co 3.3). A palavra pregada só se torna eficaz pela operação interna imprescindível do Espírito Santo.

3.3 – A responsabilidade do pregador e dos ouvintes para a eficácia da pregação
Como vimos, a fé reformada condiciona a eficácia da pregação primordialmente à obra do Espírito no pregador e nos ouvintes. Isso, entretanto, não ocorre em detrimento da responsabilidade humana de um e de outros. A eficácia da pregação depende também da fidelidade do pregador em não adulterar ou mercadejar a Palavra (2 Co 2.17 e 42) e do uso correto que fizer da Palavra, o qual, por sua vez, dependerá da sua fidelidade no preparo. Depende, ainda, da responsabilidade dos ouvintes em receberem com atenção, reverência, fé e obediência a palavra pregada (Rm 1.5; 15.26).
Os ministros da Palavra são descritos nas Escrituras como “presbíteros que se afadigam na Palavra e no ensino” (1 Tm 5.17), são exortados a manejar bem a Palavra da verdade (2 Tm 2.15) e não se tornarem negligentes na preparação para a tarefa (2 Tm 4.14). Da perseverança deles nestes deveres dependerá também a eficácia da pregação para a salvação dos ouvintes (v.16).
Quanto aos ouvintes, são instados nas Escrituras a considerarem atentamente a Palavra e a não serem negligentes, mas operosos praticantes (Tg 1.25); a “acolherem com mansidão a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar as vossas almas” (Tg 1.21b); a tornarem-se “praticantes da Palavra e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (Tg 1.22).

3.4 – Conclusão
Estas considerações sobre a obra do Espírito Santo e a responsabilidade humana para a eficácia da pregação não devem levar o leitor a pensar que a pregação da Palavra só se torna eficaz quando obtém resposta positiva dos ouvintes. A genuína pregação do evangelho nunca é vã. (...) Mesmo quando rejeitada, a eficácia da palavra pregada se manifesta tornando indesculpáveis os réprobos. Ou a pregação nos aproxima de Deus, ou nos coloca mais perto do inferno.

4 – O Propósito Da Pregação Reformada
Em alguns círculos evangélicos em nossos dias, a pregação parece ter como propósito o entretenimento do auditório, a exacerbação das emoções, o bem-estar material e emocional dos ouvintes e a promoção do próprio pregador ou da sua denominação. Ricardo Gondim, pastor da Assembléia de Deus, reconhece que os púlpitos brasileiros “estão cada vez mais empobrecidos. Pastores animam seus auditórios com frases de efeito, contentam suas igrejas com mensagens superficiais...” Ele admite que necessitamos de uma nova Reforma no cristianismo, a qual deve começar pelo púlpito. Em outro artigo, o mesmo autor comenta que “há uma tendência de transformar a igreja em big business. Pior, big business do lazer espiritual”. Ele continua: “Pastores e padres abandonaram sua vocação de portadores de boas novas. Assumiram novos papéis: animadores de auditório e levantadores de fundos. O púlpito transformou-se em mero palco. A igreja, simples platéia... Sermões podem ser facilmente confundidos com palestras de neurolinguistica”.
O propósito da pregação reformada é completamente diferente. Ela tem objetivos claros e elevados com relação ao texto que está sendo pregado, com relação aos ouvintes e, especialmente, com relação a Deus e ao seu reino neste mundo.

4.1 – Com relação ao texto
Uma das qualidades mais marcantes da pregação reformada consiste na determinação de fazer do propósito do texto o propósito do sermão. Reformadores e puritanos compreenderam que cada passagem das Escrituras tem propósito(s) específico(s). Por isso, fizeram grande esforço para entender o texto, para discernir o seu propósito(s), para proclamar fielmente a mensagem bíblica e aplicá-la em consonância com o propósito divino.

4.2 – Com relação aos ouvintes
4.2.1 – Alcançar e converter o coração
Reformadores e puritanos queriam, com a pregação, informar o intelecto, mover as afeições e motivar a vontade. Entretanto, o alvo estava além do intelecto, dos sentimentos e das emoções. Eles almejavam alcançar e converter o coração, o próprio centro da alma humana. E isto eles buscavam, não por meio de manipulação retórica da audiência, mas através da pregação fiel da Palavra de Deus.
4.2.2 – Mediar encontros com Deus
Como o coração é alcançado e convertido? Quando pecadores têm um encontro verdadeiro com Deus mediado pela pregação do evangelho. O propósito da pregação é dar a homens e mulheres a oportunidade de vivenciarem a presença de Deus.
4.2.3 – Restaurar a imagem de Deus no homem
A conversão, entretanto, é apenas o começo. Na concepção reformada, o evangelho deve ser pregado com o objetivo de restaurar nos ouvintes a imagem de Deus corrompida na queda.
A restauração da imago Dei no coração humano é obra do Espírito Santo de Deus por meio da pregação da Palavra.

4.3 – Com relação a Deus
A restauração da imago Dei na alma e na vida do homem, não é, contudo, o propósito principal da pregação reformada. O propósito maior da pregação reformada consiste em promover o reino e a glória de Deus e destruir o reino de Satanás. Reformadores e puritanos anelavam com a pregação da Palavra, por um lado, avançar com a obra de Deus no mundo, libertando pecadores da escravidão de Satanás, e edificar os santos, instruindo-os a viver para a glória de Deus; e, por outro lado, desmascarar e lançar por terra a obra do diabo.

5 – Conclusão
Em muitos círculos evangélicos contemporâneos e até mesmo entre reformados, o surgimento de novos meios de comunicação, a aversão do homem moderno por verdades objetivas, a secularização da sociedade, o afastamento do cristianismo das Escrituras, e especialmente a concepção moderna da pregação como uma atividade meramente humana, têm resultado em evidente declínio da pregação. Outras atividades têm tomado o seu lugar no culto, e a pregação tem sido relegada a um plano secundário no culto e na vida da igreja.
Na concepção reformada, entretanto, a pregação pública da Palavra de Deus é considerada não como palavra de homem, mas como Vox Dei. Na proclamação solene da Palavra de Deus por arautos comissionados pelo próprio Deus. Cristo se faz presente, fala e governa a igreja. A fé reformada tem uma concepção quase que sacramental da pregação. Ela professa a real presença espiritual de Cristo na pregação, assim como na Ceia.
Em virtude dessa elevada concepção quanto à sua natureza, a teologia reformada atribui grande importância à pregação. Na teologia reformada, a pregação é imprescindível. É o principal meio de graça, a tarefa primordial da igreja e do ministro, o principal elemento de culto na dispensação da graça; constitui-se em marca essencial da verdadeira igreja, e meio pelo qual o reino de Deus é aberto ou fechado aos pecadores. Isto não significa que a fé reformada atribua eficácia automática à pregação. A eficácia da pregação também não está, primordialmente, nas habilidades pessoais do pregador ou dos ouvintes. Está, sim, na operação do Espírito Santo, tanto na preparação e entrega da mensagem, como na sua recepção. Os pregadores devem laborar na interpretação da Palavra, e transmiti-la fielmente. Os ouvintes, devem receber com atenção, reverência, fé e obediência a palavra pregada. Contudo, somente o Espírito Santo pode conferir eficácia à pregação, assistindo e capacitando o pregador, e iluminando e convencendo os ouvintes do pecado e da graça de Deus em Cristo. Não obstante, independentemente da resposta dos ouvintes, a genuína do evangelho nunca é vã. O reino de Deus é promovido também na condenação dos réprobos. O propósito da pregação reformada consiste na fidelidade ao sentido, significado e propósito do texto; na conversão e restauração da imagem de Deus nos ouvintes; e na promoção do reino e da glória de Deus no mundo. Que a Vox Dei seja ouvida na alma e na vida dos ouvintes, com vistas à promoção do reino e da glória de Deus no mundo.





Aula nº 10

CONSTRUINDO NOSSA PERCEPÇÃO E LEITURA HISTÓRICA SOBRE A AMÉRICA LATINA E SEUS PROBLEMAS
Antonio José do Nascimento Filho – Pastor da Igreja Presbiteriana e coordenador do Departamento de Teologia Pastoral do Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper. Mestre em Teologia (Th.M) e doutor em Missiologia (D. Miss) pelo Reformed Theological Seminary, Jackson, Mississipi, Estados Unidos.

Resumo
Neste artigo estamos apresentando diversas perspectivas teológicas diferentes, a respeito da relação entre ação social e evangelismo, com a finalidade de enriquecer a nossa visão de mundo cristão. Evidentemente certas perspectivas teológicas, fomentadas por determinados teólogos, dificilmente passariam pelo crivo da Palavra de Deus.
Entretanto, procuramos neste artigo lançar para uma melhor compreensão teológica e missiológica do papel do engajamento social, além de discutir as implicações mais amplas desta questão para a igreja contemporânea.

Palavras-Chave
Missiologia, missão, engajamento social, preocupação social, Calvino.

Introdução
A América Latina é um dinâmico tapete, um vivo mosaico, um caleidoscópio. Nenhuma analogia fará justiça a este continente que, de tão diverso, entrou em crise. O turista só consegue reconhecer a estreita realidade que lhe é apresentada e assim raramente terá uma percepção justa, correta e abalizada da realidade latino-americana. Os repórteres internacionais, por sua vez, focalizam simplesmente aqueles assuntos que servirão para a sua agência internacional: crime, violência, insegurança e instabilidade econômica. Mui raramente terá o turista, ou o jornalista internacional, condições de entender a complexidade histórica e espiritual desta vasta área e o seu legado hispano-lusitano.
O que pode fazer o pesquisador cristão, estudioso da América Latina diante desse quadro? Evidentemente, é de se esperar que o cristão lance mão de todos os recursos disponíveis para entendê-la e ao nosso povo.
O problema é que trabalhamos já munidos de uma série de pressuposições ou pré-entendimentos, que nos induzem a fazer uma aferição e um julgamento “de fato e de valor” sobre o nosso continente. Nós, cristãos, temos falhado em fazer uma leitura histórica neutra sobre a cristianização do continente sobre o papel da Igreja. E quais as razões por trás disso?
O teólogo William Taylor, professor da Universidade de Dallas, em sua obra Crisis in Latin América (1989, p.21), elucida o assunto, sugerindo quatro razões básicas:
·         Isso acontece porque, muitas vezes, a nossa percepção histórica dos fatos já está preestabelecida.
·         Porque a nossa percepção histórica está arraigada nos valores da classe média ou dominante, ou de um certo contexto socioeconômico.
·         Porque a nossa percepção histórica é autoprotecionista, visando salvaguardar o status quo da Igreja.
·         Porque a nossa percepção histórica é exacerbadamente institucional e denominacionalista.

Se quisermos construir a nossa cosmovisão, precisamos rogar ao Espírito de Deus por iluminação, para um claro entendimento deste continente, ao fazermos a nossa leitura histórica.
Alguém que viaja pela região, mesmo que seja em um só país, por certo chegará a conclusão de que não existe uma América Latina somente, mas muitas. Se atentarmos para o ponto de vista étnico, temos diversas raças: espanhóis, portugueses, índios, europeus, africanos e orientais, numa profunda mistura genética que faz do “novo mundo” o que ele é.
Pode-se constatar a sua variedade geográfica: das áreas desérticas até as suas florestas tropicais, dos vastos pampas até a alta Cordilheira dos Andes, que corta quase todo o continente. Pode-se constatar o mesmo do ponto de vista regional: México ao norte, as nações caribenhas, os países da América Central, as nações andinas e os países do Cone Sul, incluindo Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai.
Há de se considerar ainda o aspecto lingüístico. Não existe somente uma língua falada por todos na América Latina. O espanhol é a língua nacional, na maioria dos países (cerca de trezentos milhões de habitantes); o idioma inglês é a língua falada em alguns outros (Bahamas, Guiana Inglesa, Belize, Jamaica); e o português é a língua falada no Brasil (cerca de 160 milhões de pessoas). Contudo, existem ainda cerca de 670 línguas e dialetos, falados em toda a América Latina. A maioria absoluta dessas línguas já eram faladas antes mesmo de Colombo pisar nas terras do novo mundo. Há na Guatemala, por exemplo, 25 línguas diferentes.
Se optarmos pelo aspecto socioeconômico como fator determinante, havemos de constatar discrepâncias ainda maiores: existe uma classe alta dominante, correspondente a 3% a 5%; uma classe média, correspondente a 15%; e uma classe baixa, correspondente a 80% da população. Inserida na chamada “classe baixa”, há uma faixa de 20% de miseráveis, ou seja, dos que vivem em extrema pobreza.

1 – Controvérsia Acerca do Nome
Se não existe uma só América Latina, o que, então justifica este nome? (...)
Como foi, então, que esta vasta área foi batizada com o nome de “América Latina”? Certamente Cristóvão Colombo não imaginou isso. Ele estava convicto de que havia descoberto o caminho para a Índia, ou mesmo que havia alcançado as costas do país. Por estar convencido disto, chamou os nativos habitantes da terra de “índios”. Imediatamente, a Espanha denominou as terras recém-descobertas de “Índias Ocidentais” nos seus mapas, cujo título permaneceu por quase quatro séculos. No tempo em que se tornou claro que as terras descobertas eram, na realidade, o “novo mundo”, já era tarde para retificar o erro, ou não havia razão para isso, conforme pensavam os colonizadores.
Na verdade, o título inspirou-se em um empresário italiano[6] que seguiu a Colombo, segundo é historiado por Donald Marquand Dozer em sua obra Latin America: Na Interpretative History.
Quando “Estados Unidos da América” foi escolhido como o nome da república norte-americana, os franceses, por sua vez, começaram a chamar os povos de língua hispânica e portuguesa de latino-americanos, tendo em vista as línguas de origem latina. (...)

2 – Igreja e Crise Urbana
Neste início do terceiro milênio, quando a Igreja de Jesus Cristo enfrenta grandes desafios para a evangelização do mundo, mudanças radicais devem ser feitas, com o objetivo de atender efetivamente às necessidades espirituais e humanas de cada grupo.
As rápidas mudanças sociais que ocorrem atualmente na América Latina constituem um vasto movimento revolucionário de idéias, instituições e indivíduos, que, em sua amplitude e complexidade, parece desafiar a análise e a descrição. Grandes problemas econômicos estão surgindo, com a demanda por padrões de vida mais elevados, por melhor assistência médica e por maiores oportunidades educacionais.
De uma perspectiva sociológica, a Igreja é uma instituição incorporada em um ambiente sociopolítico. Como tal, ela exerce um impacto na vida de muitas pessoas. A grande questão que gostaríamos de abordar neste artigo é: como a Igreja pode funcionar melhor, como agente eficaz da evangelização, neste contexto sociopolítico da América Latina?
Entre as mudanças que vêm ocorrendo nos últimos tempos, a preponderante é a demográfica, que transformou o perfil do globo. E a mudança mais evidente é a incrível explosão generalizada de habitantes. Neste sentido, os missiólogos Dayton e Frazer comentam:

Para compreender o que isto significa, imaginemos um círculo representando o mundo de 6 bilhões de pessoas (população mundial em 1999). Podemos dividir os 6 bilhões em três partes, aproximadamente 2 bilhões cada. Um terço dessa população professa a crença em Jesus como Senhor (Dayton & Frazer, 1999, p.3-4).

Nas cidades da América do Sul, uma parcela considerável deste crescimento deve-se à busca de emprego, ao subemprego. De acordo com Johnstone, “há na América Latina 35 cidades com mais de um milhão habitantes, número que inclui duas das maiores cidades do mundo – São Paulo (Brasil) e Cidade do México” (1988, p.64). A imensidão dessa explosão urbana desafia qualquer avaliação.
Embora a América do Sul tenha sido descoberta há cinco séculos, e apesar de ela representar uma sétima parte da superfície terrestre do planeta, muito pouca atenção tem sido dispensada às imensas possibilidades de incomparáveis condições dessa região das Américas. Em quase todos os seus países são enormes as possibilidades de desenvolvimento.  Johnstone menciona alguns fatores que corroboram o ingente e múltiplo empenho com o qual essas nações devem ser focalizadas e compreendidas:

Rápido crescimento populacional, regimes corruptos despóticos e crescente dívida internacional, desde 1978, têm provocado graves crises econômicas nos anos 80. Brasil, Argentina, Bolívia e Peru têm, particularmente, sérios problemas de dívida internacional. Em algumas terras, violentas mudanças podem ser precipitadas pelos baixos padrões de vida, há crescente empobrecimento e somente uma débil esperança de alguma melhora rápida. O hiato entre as elites ricas e os pobres é um dos que devem diminuir, se uma mudança pacífica deva ocorrer (ibidem, p.65).

3 – Igreja e Crises Sociais da América Latina
Na passagem do último século, em 1899, quando realizou em Roma seu primeiro plenário, o Concílio Latino-Americano analisou os perigos que ameaçavam a Igreja Católica Romana, acrescentando o protestantismo à mesma relação, juntamente com maçonaria, superstição, paganismo, liberalismo e secularismo. O protestantismo chegou à América do Sul no século dezenove. Os missionários, a maioria dos quais norte-americanos, juntamente com numerosos convertidos que foram logo arrebanhados, favoreceram a separação entre a Igreja e o Estado, a liberdade de consciência e a educação pública universal, como meio de liberdade espiritual e progresso social.
É incontestável que a semente plantada pelos missionários protestantes durante o século dezenove começou a dar frutos; a despeito da grande oposição da parte da Igreja estabelecida, as igrejas protestantes foram rapidamente ganhando terreno e não podiam ser desconsideradas. Padilla, em sua obra The New Face Of Evangelicalism, descreve o desafio que o protestantismo representou para o catolicismo romana na América do Sul.

Em 1955, o protestantismo tinha se tornado uma questão de tamanha preocupação para a Igreja Católica Romana que a primeira Conferência Episcopal Latino-Americana (Celan), reunida no Rio de Janeiro, considerava-o uma das principais forças hostis, o que tornou necessário recorrer à ajuda de missionários da Europa e da América do Norte (Padilla, 1975, p.77).

Nos tempos atuais, o continente sul-americano encontra-se numa situação dinâmica e revolucionária, caracterizada por crescimento demográfico explosivo, mobilização interna de massas humanas, formação de grupos sociais (trabalhadores, estudantes, camponeses), que pressionam em prol de reformas, incipiente porém acelerado processo de industrialização e desintegração de grupos tradicionais. O caráter revolucionário da situação emerge da oposição radical entre as forças em conflito e da nítida piora das condições de miséria, fome, doença, ignorância e ansiedade em que vive a grande maioria da população, bem como da ausência de canais normais de mobilidade social, que dariam alguma esperança por um futuro melhor.
Mesmo entre os evangélicos, a situação econômica não é diferente. Qualquer pessoa familiarizada com o protestantismo na América do Sul sabe que, aí, uma alta porcentagem de cristãos protestantes é constituída de pessoas pobres. Eles sempre foram historicamente – e grandes contingentes ainda o são – pobres, incultos e excluídos das decisões mais importantes tomadas pelos líderes nacionais para melhorar sua própria vida e a de outros na sociedade. Taylor elucida este aspecto de forma bastante apropriada:

Os missionários enviados à América Latina – ou a qualquer outro lugar para o mesmo propósito – devem procurar entender as condições contemporâneas. Como missionários, não podemos desfrutar o luxo do ministério sem uma crescente sensibilidade diante dessas crises. Aqui estão alguns dos fatos penosos que enfrentam os latinos-americanos. 1. A explosão populacional entre aqueles que não podem permitir-se ter mais filhos, justamente, os pobres. Há uma população correntemente chegando próxima de 400 milhões, mas que dobrará dentro de 33 anos ao ritmo atual de crescimento. Onde vão viver? O que vão comer? Como irão à escola? Quem lhes proverá assistência médica e empregos? 2. Um espírito predominante de desesperação que tão tragicamente obstrui um desenvolvimento saudável. 3. A incerteza que haja sistemas políticos e a ânsia contínua por aqueles que tragam estabilidade. Assim, como missionário na América Latina, tenho sido engolfado pelas duras realidades de meu verdadeiro contexto latino-americano. Tive de compreender o que estava por trás das ferventes questões da América Latina (Taylor, 1991, p.53).

Considerando todas estas condições, se o objetivo principal da Igreja é o evangelismo, que, por sua vez, visa à conversão, esta conversão implica, antes de mais nada, uma mudança radical de estilo de vida, que passa a envolver pelo menos três relações novas – com Cristo, com a Igreja e com o mundo – as quais têm importantíssimas conseqüências, uma vez que os resultados do evangelismo incluem:

·         Obediência (a quem é agora reconhecido como Senhor).
·         Incorporação à sua Igreja (porque pertencer a Cristo é pertencer ao povo de Cristo, conforme Atos 2.4,47).
·         Serviço responsável no mundo (porque a conversão perderá todo o sentido se não resultar em mudança da vida egocêntrica para a vida de serviço sacrificial, conforme Marcos 10.43-45).

Todo cristão é chamado para a missão de evangelização e para testemunhar, em palavras e atos, por meio do dom que Deus lhe tenha dado.

4 – Papel Social da Igreja no Contexto Latino-Americano
A palavra “igreja” origina-se do vocábulo hebraico “am” e do termo grego “eklesia”, que vem a significar “congregação ou ajuntamento de povo”. A Igreja é um centro de fermentação da sociedade contemporânea. A sociedade secular usualmente a considera uma ordem antiquada, sem a qual o grupo social e os indivíduos poderiam funcionar de forma mais efetiva. Alguns teólogos e missiólogos, ao contrário, reconhecem que a Igreja cumpre com o seu propósito divino na medida em que ela se envolve com a sociedade, renunciando à preservação de uma identidade peculiar. Outros, por sua vez, colocam a Igreja no coração do propósito divino para a presente era e vêem o crescimento como uma de suas responsabilidades supremas.
A Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo tem uma importante tarefa a cumprir no mundo atual. A primeira missão da Igreja, e, por conseguinte, das igrejas, é proclamar o evangelho de Cristo e reunir os crentes em comunidades cristãs locais, onde possam ser edificados na fé para se tornarem eficazes na obra, e, por este meio, plantarem novas congregações por todo o mundo. Naturalmente, há muitas outras tarefas relevantes a serem realizadas pelos crentes em Cristo, seja como indivíduos, seja como comunidade. Poucos desses objetivos serão realizados, porém, a menos que novos crentes sejam acrescidos à Igreja universal e que as igrejas existentes cresçam até a plenitude daquele que é sua Cabeça.
Ao longo dos séculos, a resposta à Grande Comissão (Mateus 28.18-20) incluiu:

·         Ministério de evangelistas itinerantes.
·         Criação de uma enorme variedade de movimentos, organizações e ordens, que podem ser agrupadas sob o nome de “movimentos paraeclesiásticos”.
·         Organizações de instituições cristãs, tais como congregações, agências de envio de missionários, denominações, escolas fundamentais, ministérios para juventude, centros de retiro, acampamentos, orfanatos, faculdades, seminários teológicos, hospitais.
·         Recrutamento e envio de missionários a outras partes do planeta.
·         Tradução e distribuição universal da Bíblia.
·         Fundação de comunidades de cristãos comprometidos a dar testemunho da sua fé.

As missões paraeclesiástica são vistas como “braços da Igreja”, com o fim de empreender todo tipo concebível de boa obra, desde alimentar o faminto até imunizar a população contra enfermidades. Estes são empenhos dignos de serem alcançados e, de acordo com Gálatas 6.10, que devem ser qualificados como realizações cristãs. Além disso, deve ficar bem claro que as organizações formadas para cumpri-las devem proclamar que Deus está perdoando os pecadores e reconciliando-os consigo por meio de Jesus Cristo, que foi feito Senhor sobre o céu e a terra.
Neste sentido, pergunta-se: Como é que as boas-novas de Jesus Cristo poderão ser eficazmente levadas a todas as nações, tribos e raças? Certamente, homens dotados, ungidos, terão de cruzar fronteiras e quebrar barreiras, como pioneiros, para comunicar o evangelho a cada uma dessas pessoas. Somente o evangelho pode transformar os corações humanos, e nenhuma outra influência torna as pessoas mais humanas. Entretanto, a fé cristã não pode limitar-se à proclamação verbal. Para além da evangelização de todo o mundo, o povo de Deus deve mobilizar-se para tornar-se mais sensível ao sofrimento humano e envolvido no cuidado, ajuda e outros tipos de assistência social, trazendo glória ao Senhor e promovendo a justiça e a paz entre os homens.
É interessante lembrar, neste contexto, que o termo “missão” deriva da palavra latina missio (enviar), que se refere à proclamação do evangelho a todos os homens a todas as partes do mundo. Uma vez que ela objetiva a conversão das nações em todos os tempos (Mateus 28.19,20; Atos 1.8), o envio de missionários é, portanto, de máxima importância. A interpretação atual da missão vê esta atividade da Igreja como parte da missio Dei, do Deus triúno, que se propõe a reconciliar o mundo consigo por meio de Cristo. Assim o Pai envia o Filho, assim eles enviam a Igreja sob a direção e inspiração do Espírito Santo.
A missão é um instrumento da ação divina na história, para a consumação de seus propósitos entre as criaturas humanas. Por essa razão, o missiólogo David Bosch lembra que este ofício tem: “origem no coração de Deus. Ele é uma fonte da qual emana amor. Esta é a mais profunda origem da missão. É impossível penetrar ainda mais fundo; há missão, porque Deus ama as pessoas” (Bosch, 1992, p.392).
Em seu sentido mais amplo, “missão” é tudo o que a Igreja faz a serviço do Reino de Deus. Em sentido mais restrito, contudo, refere-se à atividade missionária, à pregação do evangelho entre povos e culturas que ainda não ouviram falar Dele. Nos meios teológicos, esta discussão tem sido associadas intimamente à evangelização. O termo “evangelização”, por sua vez, deriva da palavra grega evanggelion (boas-novas), mensagem anunciada, implantada e desenvolvida para salvar os seres humanos, todos pecadores. O verbo do Novo Testamento euaggelizesthai (da palavra grega euaggelizesqai), indica o meio para transmitir o evangelho, as boas-novas de Jesus Cristo.
De acordo com Hesselgrave, “[...] a missão primária da Igreja, e, por conseguinte, das igrejas, é proclamar o evangelho de Cristo e reunir os crentes em igrejas locais, onde possam ser edificados e preparados no serviço, a fim de plantarem novas congregações por todo o mundo” (1980, p.20).
Em sentido amplo, a evangelização pode ser vista como a obra integral da Igreja para proclamar o Reino de Deus (Marcos 1.15). Ela compreende três amplas categorias de ministério:

·         Evangelismo – proclamação do evangelho aos ainda não alcançados dentro de nossa própria sociedade ou cultura.
·         Atividade missionária – uma proclamação que interage com a cultura do público-alvo.
·         Atividade pastoral – ato de prover e aprofundar o evangelho entre aqueles que já o aceitaram.

Orlando Costas, conhecido teólogo latino-americano, apresenta uma interessante definição:

Evangelizar é participar de uma ação transformadora, isto é, as boas-novas da salvação. Neste sentido, a evangelização não é um conceito, mas sim uma tarefa dinâmica, encarnada primeiro na vida e ação salvífica de Jesus Cristo. Portanto, ela não pode ser reduzida a uma fórmula verbal. Evangelizar é reproduzir pelo poder do Espírito Santo a salvação que foi revelada em Jesus Cristo (Costas, 1989, p.133).

Os cristãos reformados, semelhantemente, professam a seguinte confissão sobre a essência da missão cristã:

O Filho de Deus por amor de toda raça humana, do princípio ao fim do mundo, congrega, defende e preserva para si mesmo, por seu Espírito e Palavra, na unidade da fé, uma Igreja escolhida para a vida eterna (Catecismo de Heidelberg, Dia do Senhor, XXI).

A inflexível atividade redentiva do Filho de Deus, exposta nesta passagem do Catecismo de Heidelberg, demonstra-se de forma intensa na atualidade. Obreiros estão sendo enviados por Deus em resposta às orações de seu povo, o evangelho está alcançando progresso sem precedentes em muitos países, pessoas de muitas culturas estão nascendo de novo e igrejas estão sendo plantadas. Em contrapartida, há um notável agravante, apontado por teólogos e missiólogos: o fenômeno das mudanças tão aceleradas e freqüentes no mundo de hoje. Glasser mostra com sensibilidade que este será um dos maiores desafios da nova era:

O mundo tem mudado grandemente desde o Congresso Internacional de Evangelização Mundial, realizado em Lausanne, Suíça, em 1974. Urbanização acelerada e conseqüente secularização, assustadora explosão populacional associada à desintegração da família uso de drogas, terrorismo e violência, inflação e crescente empobrecimento, somados a um padrão universal quase epidêmico de corrupção política – todas estas realidades têm conspirado para provocar uma sensação universal de mal-estar, com pouca perspectiva de remediar nos dias à frente (Glasser, p.4).

Um dos sintomas deste mal-estar entre os evangélicos é a tensão que algumas vezes podemos observar entre evangelismo e preocupação social. Nem sempre é fácil harmonizar palavras e ações, pregação e prática, ou proclamação e demonstração, conjuntamente em uma postura bíblica construtiva. Ambos os lados, muitas vezes, parecem até ficar orgulhosos pelo fato de estarem dando pouco ou nenhuma atenção às forças que defendem à oposição oposta. A nosso ver, contudo, nada impede os cristãos de apreciar a validade bíblica de ambos, em seus mútuos argumentos, e chegar a um consenso que reflita uma posição bíblica mais completa. Poderiam, então, apresentar ao mundo uma posição cristã mais forte e mais equilibrada do que poderiam fazer isoladamente.
Cristo chama os cristãos para verem as coisas pela ótica da outra pessoa. Se eles obedecessem, poderiam obter uma visão muitas vezes mais clara da realidade em seus múltiplos aspectos. O cristianismo converge para a vida como um todo, não apenas para as suas partes. É preciso um esforço especial para manter a perspectiva equilibrada, que atenta da forma mais imparcial possível para todo o panorama.
5 – Posições Teológicas Distintas Quanto ao Papel Social da Igreja

5.1 – Ação social como traição ao evangelismo
Isto nos leva a uma primeira posição extrema. Com seu pressuposto epistemológico dualista, associado a uma espécie quase gnóstica de pietismo pessoal, conivente com a desesperança do mundo (com guerras e rumores de guerra, pestilência, fome, tremores de terra, etc.), muitos adeptos desta visão consideram o envolvimento social uma tentativa indevida de legitimar o ilegítimo. O mundo para eles é mau e irremediavelmente corrupto. Os crentes devem afastar-se dele, se quiserem evitar a contaminação. Stott localizou a raiz desta visão da reação dos evangélicos contra a disseminação do evangelho social no início do século vinte (Stott, 1980, p.1).
Os seguidores desta tendência esquecem-se do fato de que o Deus da redenção é também o Deus da criação, que se assenta sobre o círculo da Terra e mantém juntas todas as coisas. Esquecem-se também o princípio de que o sal e a luz não podem fazer sentido, se isolados, mas somente se eles se encontrarem com o amor em meio à escuridão deste mundo.

5.2 – Ação social como evangelismo
Há evangélicos cuja linha de distinção entre a responsabilidade social e o evangelismo é tão frágil que pode ser desprezada. Em seu ensaio sobre a crise contemporânea. Richardson afirma que o evangelismo é ação social. Conclui sua tese com estas palavras: “A ação social dificilmente é um subproduto do evangelismo, porque ela ocorre no momento em que alguém aceita o chamado para o discipulado” (Richardson, 1977, p.89).
Castro rejeita como artificial qualquer tentativa de estabelecer uma distinção entre evangelismo e envolvimento social. Vê ambos existindo de forma separada, os quais podem ser vistos individualmente à medida que interagem. Em outro artigo, ele declara: “O evangelismo existe somente onde há preocupação social. Sem ela pode haver propaganda, proselitismo, mas dificilmente boas-novas” (1978, p.88). Esta posição também se torna perigosa, uma vez que pressupõe que nunca pode haver o evangelismo se não houver ação social, o que se contrapõe ao ensino e exemplo das Escrituras sobre o assunto.

5.3 – Ação social como um meio para o evangelismo
Os sinônimos para a palavra meio são, neste contexto, ponte e preparação. Qualquer forma de atuação social, quer seja a de alimentar o faminto, dar remédio para o doente, educar o analfabeto, reabilitar refugiados, é vista como um meio para um fim, ou seja, o evangelismo e a conversão.
Visto deste ângulo, considere-se, por exemplo, o princípio de passar do conhecido para o desconhecido, da necessidade sentida para a real, do material para o espiritual. O ensino do Senhor Jesus Cristo a respeito de si mesmo, como o verdadeiro pão da vida, logo após alimentar cinco mil pessoas com o pão material, adverte a pessoa contra uma desconsideração apressada deste episódio (vide João 6.1-29), que nos exorta para o nosso papel de observarmos e procurarmos atender às necessidades do nosso próximo.
A história das missões modernas revela que os missionários que a marcaram positivamente se preocuparam com ambos os aspectos, a pregação do evangelho e a assistência social, como, por exemplo, prover medicamento para o doente, educação para os incultos, etc. Na época da Colônia, muitas conversões que ocorreram no campo missionário tiveram lugar em escolas da missão.
Para tanto, Lindsell nos oferece a regra chave: “Toda vez que a assistência social tornar possível o confronto com os homens com o evangelho, será útil” (Lindsell, 1965, p.439).

5.4 – Ação social como uma manifestação do evangelismo
Os defensores desta visão vêem o envolvimento social como uma demonstração do evangelho. O primeiro dá visibilidade ao último. A analogia da fé e obra na epístola de Tiago é muitas vezes usada para explicar este ponto de vista. Stott, embora não seja ele próprio um defensor desta linha, chama este tipo de ação social de “sacramento” da prática evangelística, já que sua função é torná-la visível. Neste sentido, identificam um forte precedente no ministério de Jesus Cristo, cujas palavras e ações eram tão inseparáveis quanto duas irmãs gêmeas. Entretanto, ele expressa também inquietação, uma vez, que essa visão “faz da assistência social uma subdivisão do evangelismo, uma aspecto da proclamação” (Stott, 1977, p.26).
Acrescente-se também que a diferença entre este ponto de vista e o anterior (que a ação social é um meio para o evangelismo) é apenas uma questão de grau e não de natureza, já que ambos visam ao mesmo resultado.
[...]

5.5 – Ação social como parceira do evangelismo
O principal defensor desta visão é Stott. Ele articula sua tese nas seguintes palavras:

Como parceiros, ambos se pertencem e, não obstante, são independentes um do outro. Cada qual firma-se sobre seus próprios pés, em seu próprio direito, lado a lado. Nenhum deles é um meio para o outro, ou mesmo uma manifestação do outro, pois cada um é um fim em si mesmo. Ambos são expressões do amor não fingido (Stott, 1977, p.27).

Para sustentar melhor sua posição, Stott chama a atenção dos cristãos para a analogia entre ter e ver do apóstolo João (3.17,18). Ele se apressa em acrescentar que as duas coisas, evangelismo e ação social, nem sempre precisam andar juntas, uma vez que as situações variam, como também variam os chamados cristãos. Argumenta que, normalmente, a pessoa não deverá ter que tomar uma decisão radical e excludente, mas deve saber que a salvação eterna é mais importante do que o bem-estar temporal.

5.6 – Ação social e evangelismo como igualmente importantes
Podemos citar alguns expoentes neste campo, como, por exemplo, Ronald Sider, Samuel Escobar e Davi Bosch. Se há palavras adequadas para caracterizar a missão da Igreja, de acordo com Bosh, elas são os conceitos bíblicos de “martyria” (testemunha) e os subconceitos de “kerygma” (proclamação), “koinonia” (comunhão), “diakonia” (serviço) e “leitougia” (liturgia).
Quanto à questão sobre como articular a obra social e o evangelismo, Bosh responde:

Eles se assemelham às duas lâminas da tesoura, que operam em uníssono, mantidos juntos pela koinonia, a comunhão, que, de igual modo, não é parte separada da tarefa da Igreja, mas sim o cimento que mantém juntas a kerygma e a diakonia... ambas dimensões indissoluvelmente unidas (Bosh, 1980, p.227).

Bosh assinala um reconhecimento de uma variedade de dons, significando que diferentes cristãos desempenham diferentes papéis, e, mais importante variando situações que requerem diversificação de formas do testemunho cristão.
[...]

5.7 – Ação social como parte da proclamação do evangelho
Esta é a tendência dos que advogam que a assistência social é mais do que apenas alimentar o faminto e curar o doente. É empenhar-se no intuito de fazer a justiça de Cristo permear cada aspecto da vida – social, econômico, religioso, político, etc. A tarefa da Igreja permanece a de pregar o evangelho e conquistar o mundo para Cristo[7]. Mas esta tarefa de pregar o evangelho do Reino também já diz tudo, incluindo a responsabilidade sociopolítica da Igreja e de seus membros.
[...]

6 – A Influência Social de Calvino e de Lutero
Como presbiterianos e reformados que somos, conhecedores da genuína tradição cristã, não podemos ignorar a realização da missão benfazeja, misericordiosa e compassiva dos cristãos em prol da sociedade como um todo. Testemunhar o evangelho em palavras e em obras é dever de todo cristão.
Usaremos, nesta parte final, como paradigmas da missão social da Igreja, o exemplo magnífico que nos foi legado pelos reformadores João Calvino e Martinho Lutero. Eles viveram num contexto e clima político, socioeconômico e religioso de mudanças, no final da Idade Média (1300-1500).
O feudalismo havia começado a declinar e fortes governos monárquicos centralizadores estabeleciam-se na Europa. A Renascença havia promovido o humanismo com a reativação do ensino do grego e do latim; há desenvolvimento da ciência e as novas tendências nas artes; economicamente, há desenvolvimento contínuo do comércio e da indústria, que incentivaram uma economia capitalista, mudando a estrutura social, entre outras coisas. É preciso considerar ainda o grande influxo de pessoas nas cidades, em busca de novos empregos, trazidas pelo empobrecimento econômico de amplas camadas da sociedade, especialmente colonos e famílias de agricultores.



6.1 – Preocupação de Martinho Lutero na área social (1483-1546)
Para compreender a visão de Lutero sobre o evangelismo e a responsabilidade social, deve-se conhecer seu conceito dos dois reinos: o Reino de Deus e o reino deste mundo. O cristão, como filho de Deus, pertence ao primeiro, e, como cidadão deste mundo, pertence ao último. Ele, é, portanto, responsável perante Deus, bem como perante a autoridade civil.
Com respeito à responsabilidade social, Lutero ensinou duas importantes verdades. A primeira é que, embora reconheça a relevância das boas obras, rejeita a idéia de que estas trazem perdão pelos pecados. Em suas 95 Teses (1517), ele declara:

Os cristãos devem ser ensinados que aquele que dá ao pobre ou empresta ao necessitado pratica uma obra melhor do que comprar perdões (43).

Os cristãos devem ser ensinados que aquele que vê um homem em necessidade, passa por ele e dá [seu dinheiro] por perdões, não compra as indulgências do papa, mas a indignação de Deus (45).

É preciso considerar, neste sentido, que Lutero se opunha à visão anabatista de separação entre Igreja e Estado, porque acreditava que Deus pode usar o governo secular para estabelecer a justiça social, tanto que, em 1520, ele escreveu uma carta aberta à nobreza cristã e instou o Estado a fazer reformas econômicas e sociais para melhorar a vida do pobre.

6.2 – Preocupação Social de João Calvino (1509-1564)
Calvino está acima dos demais líderes da Reforma francesa e suíça. De Genebra, ele causou profundo impacto sobre a Europa e o restante do mundo. Ironicamente, por poderosa que fosse a sua influência ali, ele foi sempre uma espécie de hóspede em terra estranha. Em certo sentido, era apenas um dos muitos refugiados que viviam naquela cidade com seus olhos em sua terra natal, esperando que algum dia toda a França fosse evangelizada e que a religião reformada pudesse prosperar livremente (Mackinnon, 1962; Parker, 1975).
Esperando esse dia, ele e seus amigos acolhiam a contínua corrente de protestantes refugiados das áreas dominadas pelo catolicismo romano, oferecendo-lhes comida e abrigo. Um grande diferencial característico da reforma calvinista foi a institucionalização desta hospitalidade, pela criação de um fundo de assistência social, que ficou conhecido como Bolsa Francesa ou Fundo Francês para Estrangeiros Pobres, destinado àqueles que chegavam em Genebra para viver de acordo com a visão reformada da Palavra.
Sua influência foi consolidada por meio da academia que ele fundou, que mais tarde se tornaria Universidade de Genebra. As instituições educacionais foram nitidamente importante para ele. Calvino promoveu a educação na escola secundária e insistiu sobre a educação primária compulsória para meninos e meninas. Ele também compreendia a relevância das instituições de caridade para o bem-estar, não apenas dos totalmente indigentes e desfavorecidos, mas de muitas vítimas dos eventos históricos de seu tempo. [...]
Calvino revelava, frequentemente, uma sensibilidade para a posição e necessidades do indivíduo no seio da sociedade, sobretudo dos desprivilegiados e dos pobres, como comenta Wallace:

Do púlpito ele muitas vezes saía de seu estilo para incitar a consciência de seus ouvintes sobre seu dever para com os desprovidos financeiramente ao seu redor. Quando ele pregava sobre a proibição do Velho Testamento de despojar o devedor pobre de um penhor insuportável por seu débito, ele falava em voz alta que pode ser ouvida hoje como um reclamo de que nenhuma sociedade deve privar qualquer homem da oportunidade de trabalhar para o seu sustento (Wallace, 1990, p.123).

Os seres humanos são feitos à semelhança de Deus, possuindo capacidades peculiares que o distinguem da criatura animal ou vegetal. É isto o que importa para o seu valor peculiar e que sempre tem inspiração a filantropia cristã. Assim, o fundamento cristão para o cumprimento da obra social está no ensino bíblico acerca do homem.
[...]

Conclusão
Este artigo procurou contribuir para uma compreensão melhor do papel da atividade social cristã da Igreja na América Latina hoje, tendo como propósito fornecer à Igreja contemporânea ponderações que a ajudem a cumprir mais efetivamente sua missão no contexto latino-americano.
É mister que os seguintes fatores bíblicos, teológicos e históricos sejam reconhecidos e vistos como determinantes para o cumprimento da missão da Igreja:

·         Que o povo de Deus está investido de uma responsabilidade ética especial em favor dos pobres. No Antigo Testamento, a lembrança do povo de Deus como escravo no Egito era razão para motivá-lo a mostrar misericórdia ao oprimido (Deuteronômio 24.14-22; Levítico 19.15; Amós 2.6-7; Zacarias 7.9-10). Todos esses ensinos a respeito do pobre fazem parte da Palavra de Deus. O Antigo Testamento enfatiza que o Senhor requer justiça para os pobres e julgará aqueles que os oprimem.
·         Que o zelo de Deus pelo pobre no Antigo Testamento aparece de modo coerente, dentro do contexto da justiça divina e da obra de justiça no meio de seu povo. Assim, no enfoque bíblico, palavras como “pobre”, “necessitado”, “oprimido”, “forasteiro” têm tipicamente um conteúdo moral, relacionando-se às exigências de Deus por justiça.
·         Que a Igreja do Novo Testamento não se omite quanto à obrigação de proceder com justiça na evangelização. A mensagem do evangelho no Novo Testamento de modo algum reduz a inspiração e a autoridade do Antigo Testamento. O Novo Testamento intensifica as manifestações e as exigências da revelação hebraica; de modo algum cancela a ordem de Deus por justiça, caridade e amor. Ao contrário, ele requer uma nova dinâmica e uma nova dimensão àquela instrução (vide Mateus 5-7; Marcos 12.28-30); Lucas 10.30-37; 1 João 4.7-11).
·         Que a missão da Igreja neste mundo é mais do que proclamação verbal. É um serviço sacrificial para o qual Cristo envia seus seguidores ao mundo, assim como o Pai o enviou (vide João 1.14; Filipenses 2.2-11; Marcos 10.44,45; Romanos 5.8).
·         Que a obra social cristã está alicerçada sobre uma doutrina mais abrangente de Deus, Cristo, o Reino de Deus, o homem e a Igreja. Tanto no evangelismo como na responsabilidade social, os cristãos devem discernir o próprio Deus como o fundamento para suas ações. Ele criou os homens, e todos terão de prestar contas a ele no dia do juízo. Ele é o Deus de justiça, que, em toda comunidade humana, odeia o mal e ama a justiça (vide Salmo 11.4-7; 146.7-9).
·         Que todos os empreendimentos missionários durante a história da Igreja têm se preocupado e se envolvido com o que denominamos responsabilidade social. Eles a têm visto como parte de seu ministério de anunciar o evangelho. Além disso, demonstraram o notável grau de consistência, ao longo da história, com sua focalização sobre a educação, assistência social médica, agricultura e várias espécies de soerguimento social dos membros abandonados ou oprimidos da sociedade.

Muitas pessoas vêem a igreja como uma espécie de clube, com a diferença de que o interesse de seus membros está voltado para Deus e não para os seus próprios. São pessoas religiosas que praticam atos religiosos em conjunto. Os membros de um clube pagam suas mensalidades e têm direito aos privilégios dos associados; muitos membros de Igreja também seguem este exemplo. Dentro deste cenário, elas se esquecem da compreensão bíblica da Igreja, como a única sociedade cooperativa que existe para o benefício dos não-membros.
[...].





TEOLOGIA REFORMADA – Aula nº 11

OS CINCO PONTOS DO CALVINISMO
  (Tradução livre e adaptada do livro The Five Points of Calvinism - Defined, Defended, Documented, de David N. Steele e Curtis C. Thomas, Partes I e II, [Presbyterian & Reformed Publishing Co, Phillipsburg, NJ, USA.], feita por João Alves dos Santos)

I.   A ORIGEM DOS “CINCO PONTOS”     
                                          
A. O PROTESTO DO PARTIDO ARMINIANO, NA HOLANDA
Os Cinco Pontos do Calvinismo tiveram sua origem a partir de um protesto que os seguidores de James Arminius (um professor de seminário holandês) apresentaram ao “Estado da Holanda” em 1610, um ano após a morte de seu líder. O protesto consistia de “cinco artigos de fé”, baseados nos ensinos de Armínio, e ficou conhecido na história como a “Remonstrance” (Representação), ou seja, “O Protesto”. O partido arminiano insistia que os símbolos oficiais de doutrina das Igrejas da Holanda (Confissão Belga e Catecismo de Heidelberg) fossem mudados para se conformar com os pontos de vista doutrinários contidos no Protesto. As doutrinas às quais os arminianos fizeram objeção eram as relacionadas com a soberania divina, a inabilidade humana, a eleição incondicional ou predestinação, a redenção particular (ou expiação limitada), a graça irresistível (chamada eficaz) e a perseverança dos santos. Essas são doutrinas ensinadas nesses símbolos da Igreja Holandesa, e os arminianos queriam que elas fossem revistas.

B. OS “CINCO PONTOS DO ARMINIANISMO”
Os cinco artigos de fé contidos na “Remonstrance” (Representação) podem ser resumidos no seguinte:

ü  1. Deus elege ou reprova na base da fé prevista ou da incredulidade.
ü  2. Cristo morreu por todos os homens, em geral, e em favor de cada um, em particular, embora somente os que crêem sejam salvos.
ü  3. Devido à depravação do homem, a graça divina é necessária para a fé ou qualquer boa obra.
ü  4. Essa graça pode ser resistida.
ü  5. Se todos os que são verdadeiramente regenerados irão seguramente perseverar na fé é um ponto que necessita de maior investigação.
 
Esse último ponto foi depois alterado para ensinar definitivamente a possibilidade dos realmente regenerados perderem sua fé, e, por conseguinte, a sua salvação. Todavia, nem todos os arminianos estão de acordo, nesse ponto. Há muitos que acreditam que os verdadeiramente regenerados não podem perder a salvação e estão eternamente salvos.

C. A BASE FILOSÓFICA DO ARMINIANISMO
Conforme expõe J. I. Packer (O “Antigo” Evangelho, pp. 5, 6) a teologia contida nessa “Remonstrance” originou-se de dois princípios filosóficos: primeiro, que a soberania de Deus é incompatível com a liberdade humana, e, portanto, também com a responsabilidade humana; em segundo lugar, que habilidade é algo que limita a obrigação...
Com bases nesses princípios, os arminianos extraíram duas deduções: primeira, visto que a Bíblia considera a fé como um ato humano livre e responsável, ela não pode ser causada por Deus, mas é exercida independentemente dEle; segunda, visto que a Bíblia considera a fé como obrigatória da parte de todos quantos ouvem o Evangelho, a capacidade de crer deve ser universal. Portanto, eles afirmam, as Escrituras devem ser interpretadas como ensinando as seguintes posições:
      
ü  1. O homem nunca é de tal modo corrompido pelo pecado que não possa crer salvaticiamente (salvificamente) no Evangelho, uma vez que este lhe seja apresentado;
ü  2. O homem nunca é de tal modo controlado por Deus que não possa rejeitá-lo;
ü  3. A eleição divina daqueles que serão salvos alicerça-se sobre o fato da previsão divina de que eles haverão de crer, por sua própria deliberação;
ü  4. A morte de Cristo não garantiu a salvação para ninguém, pois não garantiu o dom da fé para ninguém (e nem mesmo existe tal dom); o que ela fez foi criar a possibilidade de salvação para todo aquele que crê;
ü  5. Depende inteiramente dos crentes manterem-se em um estado de graça, conservando a sua fé; aqueles que falham nesse ponto, desviam-se e se perdem.
 
Dessa maneira, o arminianismo faz a salvação do indivíduo depender, em última análise, do próprio homem, pois a fé salvadora é encarada, do princípio ao fim, como obra do homem, pertencente ao homem e nunca a Deus.

D. A REJEIÇÃO DO ARMINIANISMO PELO SÍNODO DE DORT E A FORMULACÃO DOS CINCO PONTOS DO CALVINISMO
Em 1618 foi convocado um Sínodo nacional para reunir-se em Dort, a fim de examinar os pontos de vista de Armínio à luz das Escrituras. Essa convocação foi feita pelos Estados Gerais da Holanda para o dia 13 de novembro de 1618. Constou de 84 membros e 18 representantes seculares. Entre esses estavam 27 delegados da Alemanha, Suíça, Inglaterra e de outros países da Europa. Durante os sete meses de duração do Sínodo houve 154 sessões para tratar desses artigos.
Após um exame minucioso e detalhado de cada ponto, feito pelos maiores teólogos da época, representando a maioria das Igrejas Reformadas da Europa, o Sínodo concluiu que, à luz do ensino claro das Escrituras, esses artigos tinham que ser rejeitados como não bíblicos. Isso foi feito por unanimidade. Não somente isso, mas o Concílio impôs censura eclesiástica aos “remonstrantes”, - depondo-os de seus cargos, e a autoridade civil (governo) os baniu do país por cerca de seis anos. Além de rejeitar os cinco artigos de fé dos arminianos, o Sínodo formulou o ensino bíblico a respeito desse assunto na forma de cinco capítulos que têm sido, desde então, conhecidos como “os cinco pontos do Calvinismo”, pelo fato de Calvino ter sido grande defensor e expositor desse assunto.
Embora cause estranheza a muitos essa posição, devido à mudança teológica que as igrejas têm sofrido desde vários séculos, os reformadores eram unânimes em condenar o arminianismo como uma heresia ou quase isso. A salvação era vista como uma obra da graça de Deus, do começo ao fim, sem qualquer contribuição do homem. Essa posição pode ser resumida na seguinte proposição: Deus salva pecadores.





II.  OS CINCO PONTOS DO ARMINIANISMO CONTRASTADOS COM OS CINCO PONTOS DO CALVINISMO


1.  LIVRE-ARBÍTRIO OU DEPRAVAÇÃO TOTAL
Livre-Arbítrio ou Habilidade Humana - Arminianismo: Embora a natureza humana tenha sido seriamente afetada pela queda, o homem não ficou reduzido a um estado de incapacidade total. Deus, graciosamente, capacita todo e qualquer pecador a arrepender-se e crer, mas o faz sem interferir na liberdade do homem. Todo pecador possui uma vontade livre (livre arbítrio), e seu destino eterno depende do modo como ele usa esse livre arbítrio. A liberdade do homem consiste em sua habilidade de escolher entre o bem e o mal, em assuntos espirituais. Sua vontade não está escravizada pela sua natureza pecaminosa.. O pecador tem o poder de cooperar com o Espírito de Deus e ser regenerado ou resistir à graça de Deus e perecer. O pecador perdido precisa da assistência do Espírito, mas não precisa ser regenerado pelo Espírito antes de poder crer, pois a fé é um ato deliberado do homem e precede o novo nascimento. A fé é o dom do pecador a Deus, é a contribuição do homem para a salvação.
Depravação Total ou Incapacidade Total - Calvinismo: Devido à queda, o homem é incapaz de, por si mesmo, crer de modo salvador no Evangelho. O pecador está morto, cego e surdo para as coisas de Deus. Seu coração é enganoso e desesperadamente corrupto. Sua vontade não é livre, pois está escravizada à sua natureza má; por isso ele não irá - e não poderá jamais - escolher o bem e não o mal em assuntos espirituais. Por conseguinte, é preciso mais do que simples assistência do Espírito para se trazer um pecador a Cristo. É preciso a regeneração, pela qual o Espírito vivifica o pecador e lhe dá uma nova natureza. A fé não é algo que o homem dá (contribui) para a salvação, mas é ela própria parte do dom divino da salvação. É o dom de Deus para o pecador e não o dom do pecador para Deus.


2. ELEIÇÃO CONDICIONAL OU ELEIÇÃO INCONDICIONAL
Eleição Condicional - Arminianismo: A escolha divina de certos indivíduos para a salvação, antes da fundação do mundo, foi baseada na Sua previsão (presciência) de que eles responderiam à Sua chamada (fé prevista). Deus selecionou apenas aqueles que Ele sabia que iriam, livremente e por si mesmos, crer no Evangelho. A eleição, portanto, foi determinada ou condicionada pelo que o homem iria fazer. A fé que Deus previu e sobre a qual Ele baseou a Sua escolha não foi dada ao pecador por Deus (não foi criada pelo poder regenerador do Espírito Santo), mas resultou tão somente da vontade do homem. Foi deixado inteiramente ao arbítrio do homem o decidir quem creria e, por conseguinte, quem seria eleito para a salvação. Deus escolheu aqueles que Ele sabia que iriam, de sua livre vontade, escolher a Cristo. Assim, a causa última da salvação não é a escolha que Deus faz do pecador, mas a escolha que o pecador faz de Cristo.
Eleição Incondicional - Calvinismo: A escolha divina de certos indivíduos para a salvação, antes da fundação do mundo, repousou tão somente na Sua soberana vontade. A escolha de determinados pecadores feita por Deus não foi baseada em qualquer resposta ou obediência prevista da parte destes, tal como fé ou arrependimento. Pelo contrário, é Deus quem dá a fé e o arrependimento a cada pessoa a quem Ele escolheu. Esses atos são o resultado e não a causa da escolha divina. A eleição, portanto, não foi determinada nem condicionada por qualquer qualidade ou ato previsto no homem. Aqueles a quem Deus soberanamente elegeu, Ele os traz, através do poder do Espírito, a uma voluntária aceitação de Cristo. Desta forma, a causa última da salvação não é a escolha que o pecador faz de Cristo, mas a escolha que Deus faz do pecador.


3. EXPIAÇÃO GERAL OU EXPIAÇÃO LIMITADA
Redenção Universal ou Expiação Geral - Arminianismo: A obra redentora de Cristo tornou possível a salvação de todos, mas na verdade não assegurou a salvação de ninguém. Embora Cristo tenha morrido por todos os homens, em geral, e em favor de cada um, em particular, somente aqueles que crêem nEle são salvos. A morte de Cristo capacitou a Deus a perdoar pecadores na condição de que creiam, mas na verdade não removeu (expiou) o pecado de ninguém. A redenção de Cristo só se torna efetiva se o homem escolhe aceitá-la.
Redenção Particular ou Expiação Limitada - Calvinismo: A obra redentora de Cristo foi intencionada para salvar somente os eleitos e, de fato, assegurou a salvação destes. Sua morte foi um sofrimento substitucionário da penalidade do pecado no lugar de certos pecadores específicos. Além de remover o pecado do Seu povo, a redenção de Cristo assegurou tudo que é necessário para a sua salvação, incluindo a fé que os une a Ele. O dom da fé é infalivelmente aplicado pelo Espírito a todos por quem Cristo morreu, deste modo, garantindo a sua salvação.


4. POSSIBILIDADE DE SE RESISTIR À OBRA DO ESPIRITO SANTO OU GRAÇA EFICAZ (IRRESISTÍVEL)
O Espírito Santo Pode Ser Eficazmente Resistido - Arminianismo: O Espírito chama internamente todos aqueles que são externamente chamados pelo convite do Evangelho. Ele faz tudo que pode para trazer cada pecador à salvação. Sendo o homem livre, pode resistir de modo efetivo a essa chamada do Espírito. O Espírito não pode regenerar o pecador antes que ele creia. A fé (que é a contribuição do homem para a salvação) precede e torna possível o novo nascimento. Desta forma, o livre arbítrio limita o Espírito na aplicação da obra salvadora de Cristo. O Espírito Santo só pode atrair a Cristo aqueles que O permitem atuar neles. Até que o pecador responda, o Espírito não pode dar a vida. A graça de Deus, portanto, não é invencível; ela pode ser, e de fato é, freqüentemente, resistida e impedida pelo homem.
Chamado Irresistível ou Graça Eficaz - Calvinismo: Além da chamada externa à salvação, que é feita de modo geral a todos que ouvem o evangelho, o Espírito Santo estende aos eleitos uma chamada especial interna, a qual inevitavelmente os traz à salvação. A chamada externa (que é feita indistintamente a todos) pode ser, e, freqüentemente é, rejeitada; ao passo que a chamada interna (que é feita somente aos eleitos) não pode ser rejeitada. Ela sempre resulta na conversão. Por meio desta chamada especial o Espírito atrai irresistivelmente pecadores a Cristo. Ele não é limitado em Sua obra de aplicação da salvação pela vontade do homem, nem depende, para o Seu sucesso, da cooperação humana. O Espírito graciosamente leva o pecador eleito a cooperar, a crer, a arrepender-se, a vir livre e voluntariamente a Cristo. A graça de Deus, portanto, é invencível. Nunca deixa de resultar na salvação daqueles a quem ela é estendida.



5.  QUEDA DA GRAÇA OU PERSEVERANÇA DOS SANTOS
Cair Da Graça - Arminianismo: Aqueles que crêem e são verdadeiramente salvos podem perder sua salvação por não guardar (preservar) a sua fé. Nem todos os arminianos concordam com este ponto. Alguns sustentam que os crentes estão eternamente seguros em Cristo; que o pecador, uma vez regenerado, nunca pode perder a sua salvação.
Perseverança dos Santos - Calvinismo: Todos aqueles que são escolhidos por Deus e a quem o Espírito concedeu a fé, são eternamente salvos. Estes são mantidos na fé pelo poder do Deus Todo Poderoso e nela perseveram até o fim.


Sumário dessas Posições:
De acordo com o Arminianismo: A salvação é realizada através da combinação de esforços de Deus (que toma a iniciativa) e do homem (que deve responder a essa iniciativa). A resposta do homem é o fator decisivo (determinante). Deus tem providenciado salvação para todos, mas Sua provisão só se torna efetiva (eficaz) para aqueles que, de sua própria e livre vontade, “escolhem” cooperar com Ele e aceitar Sua oferta de graça. No ponto crucial, a vontade do homem desempenha um papel decisivo. Desta forma é o homem, e não Deus, que determina quem será o recipiente do dom da salvação.

·         Este era o sistema de doutrina apresentado na “Remonstrance” (Representação) dos Arminianos e rejeitado pelo Sínodo de Dort em 1619, por não ser considerado bíblico.

De acordo com o Calvinismo: A salvação é realizada pelo infinito poder do Deus Triúno. O Pai escolheu um povo, o Filho morreu por ele e o Espírito Santo torna a morte de Cristo eficaz para trazer os eleitos à fé e ao arrependimento; desse modo, fazendo-os obedecer voluntariamente ao evangelho. Todo o processo (eleição, redenção, regeneração, etc.) é obra de Deus e é operado tão somente pela graça. Desta forma, Deus e não o homem, determina quem serão os recipientes do dom da salvação.

·         Este sistema de teologia foi reafirmado pelo Sínodo de Dort em 1619 como sendo a doutrina da salvação contida nas Escrituras Sagradas. É o sistema apresentado na Confissão de Fé de Westminster e em todas as Confissões Reformadas. Na época do Sínodo de Dort foi formulado em “cinco pontos” (em resposta aos cinco pontos submetidos pelos arminianos à Igreja da Holanda) e têm sido, desde então, conhecidos como “os cinco pontos do Calvinismo”.

 Pr. Cornélio Póvoa de Oliveira



[1] Anabaptistas ("re-baptizadores", do grego "ana" e "baptizo") são cristãos da chamada "ala radical" da Reforma Protestante. São assim chamados porque os convertidos eram batizados em idade adulta, desconsiderando o até então batismo obrigatório da igreja romana. Assim, re-batizavam todos os que já tivessem sido batizados em criança, crendo que o verdadeiro baptismo só tem valor quando as pessoas se convertem conscientemente a Cristo.
O primeiro uso do termo Anabatistas ocorreu após o Segundo Concílio de Cartago no ano 225 quando 87 bispos sob a direção de Cipriano decidiram rebatizar os fiéis das igrejas adeptas Novaciano, porém o o bispo da Igreja de Roma, Papa Estêvão I favoreceu a aceitação do batismo feito por grupos cismáticos. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Anabatista)
[2] Este item foi acrescentado ao texto do Pr. Valdeci por mim (Pr. Cornélio Póvoa de Oliveira).
[3] Lutero compreendia que todo crente era um sacerdote, pois todos os crentes podiam pregar o evangelho e participar dos sacramentos. Também acreditava que todo crente poderia ter uma relação direta com Deus por meio da Palavra.
[4] Este estudo foi escrito em 1999.
[5] O uso do termo arauto para descrever o ofício do pregador encerra duas implicações. Primeiro, que não lhe compete inventar sua mensagem, mas transmiti-la e explicá-la. O arauto não transmite a mensagem como mero instrumento sonoro, como uma trombeta ou tambor; ele é um meio inteligente de comunicação...; ele tem um cérebro além de uma língua; e espera-se que ele entregue a mensagem e a explique conforme o Senhor desejava falar ao povo.
[6] Entre 1499 e 1502, um homem de negócios de Florença (Itália) que possuía negócios em Sevilla (Espanha), Américo Vespúcio, realizou três viagens no curso das quais descobriu a foz do Rio Amazonas e explorou toda a costa da América do Sul, desde a Venezuela até o Rio da Prata (Argentina). Suas descobertas tornaram-se notórias em toda a Europa da época e, assim, as terras do novo mundo passaram a ser chamadas de América, em homenagem àquele navegador (Dozer, 1979, p.9).
[7] Creio que poderíamos brincar com as palavras e dizer que esta é a visão daqueles que realmente querem literalmente conquistar o mundo para Cristo (Pr. Cornélio).

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