A perigosa arte
de enganar
Ricardo Gondim Rodrigues
Alguns divertimentos infantis são
universais. Um dos que mais gostávamos, e que nos entretinha muito, chamávamos
de esconde-esconde. Consistia em esconder do restante dos amigos de tal maneira
que ninguém conseguisse nos descobrir. Hoje, depois de crescido, surpreendo-me
que essa brincadeira seja comum também entre os adultos. Aliás, parece que
gente grande gosta mais de brincar de esconde-esconde que as crianças. Só que
agora, o jogo é mais perigoso.
Mentinos, enganamos e
dissimulamos. Criamos mecanismos que nos escondem de nós mesmos, do próximo e
de Deus. Fernando Pessoa olhou para sua própria vida e não se reconheceu no que
foi; escondera-se por detrás de máscaras e, corajoso, desabafou:
"Vivi, estudei, amei, e até
cri,
E hoje, não há mendigo que eu não
inveje só por não ser eu...
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o
fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era
e não desmenti, e perdi-me
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara."
Eduardo Giannetti, que escreveu
um excelente livro com o título Auto-Engano,
(Companhia das Letras) comentou sobre esta poesia de Fernando Pessoa afirmando:
"A experiência do poeta dramatiza e leva ao extremo uma possibilidade que
é comum a todos: será minha esta vida?" Pessoa, de tanto dissimular, de
tanto usar máscaras, já não se encontrava. Laconicamente, concluiu que não era
quem sempre tentou ser, e agora não possuía mais forças para tentar ser outra
pessoa. A máscara está pegada à cara.
O autor do Eclesiastes buscou
descobrir-se e cansado, declarou: "Pelo que aborreci a vida, pois me foi
penosa a obra que se faz debaixo do sol; sim, tudo é vaidade e correr atrás do
vento" (2.17). Jeremias, também exausto de lidar com tantos engodos e
artifícios de dissimulação, perguntou: "Enganoso é o coração, mais do que
todas as coisas, e desesperadamente corrupto, quem o conhecerá"? (17.9).
Os artifícios da dissimulação e
do auto-engano não acontecem somente nos indivíduos. Países como a União
Soviética do expurgo stalinista, a Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial,
e a Argentina do regime militar demonstram claramente que a arte da
dissimulação pode ser globalizada.
O próprio cristianismo já
sucumbiu várias vezes à mentira. Acreditava-se que as Cruzadas eram legítimos
esforços para resgatar de volta os monumentos cristãos. Hoje, sabe-se que
haviam outros interesses por detrás daquelas empreitadas malucas. O mesmo pode
ser dito da Inquisição, da terrível perseguição que os anabatistas e pietistas
sofreram na Europa etc. Matou-se muito em nome de Deus.
Quando houve eleição para a
última constituinte, mentiu-se. Várias igrejas acreditaram na versão enganosa
de alguns candidatos evangélicos. Haveria uma conspiração católica para aprovar
uma constituição discriminatória favorecendo a Igreja de Roma. Depois, na
eleição para presidente, ouviu-se que determinado candidato mandaria fechar
igrejas e reinstituir o comunismo no Brasil. Os evangélicos votaram maciçamente
naquele que acabou eleito. As conseqüências dessa mentira quase levaram o país
a um impasse institucional, com o impeachment
do presidente da república.
Há meios de nos salvaguardarmos
do auto-engano pessoal ou coletivo. Permita-me algumas pistas:
Necessitamos de uma idéia menos
divina e mais humana de nós mesmos. A pregação evangélica destes últimos dias
vem tão repleta de arroubos triunfalistas, que um novo cristão pensa nunca ter
um revés em sua vida. Doenças, desempregos, tristezas, mortes prematuras e
inúmeros desapontamentos são varridos para debaixo do tapete religioso, levando
as pessoas a viverem uma farsa: os crentes estão imunes ao sofrimento. Com
adesivos nos vidros dos automóveis, caixinhas de promessas com versículos fora
do contexto e sermões superficiais, vai se disseminando uma mensagem cristã
distorcida. As igrejas já não têm espaço para os que sofrem, faltam-lhes a
mensagem de consolo. Despreza-se que doenças, pobreza, mortes prematuras
participam dos relatos bíblicos e da vida dos seus personagens em proporção
maior que curas, riqueza e arrebatamentos espirituais. Oxalá, as igrejas
evangélicas não se esquecessem de que na conversão não nos tornamos anjos,
apenas pecadores justificados pela graça. Pensar o contrário é enganar-se
diante de um espelho torto.
Necessitamos rever nosso conceito
de fé. Ele também pode gerar auto-engano. Proponho que, antes de ser uma força
dirigida a Deus, que o impulsiona a fazer aquilo em que estaria hesitante, fé
deve ser entendida como uma confiança inabalável em seu caráter. Essa noção de
fé como um poder gera o sentimento errado de que algumas pessoas têm uma oração
mais poderosa que a de outras. Crentes juram que alcançaram respostas às suas
petições porque receberam a "oração forte" de algum líder religioso.
Isso gera uma espiritualidade que busca a Deus para aumentar a força da fé,
nunca para ter maior intimidade com Ele. Enganam-se os que pensam ter maior
cacife espiritual porque conseguiram arrancar de Deus um maior número de respostas
aos seus pedidos. Multidões se iludem com a possibilidade de galgar maior poder
espiritual, quando aprenderem a fórmula correta de se dirigir a Deus. Há
conseqüências desastrosas em acreditar-se mais "espiritual" que os
demais. Além de ofender a Deus, promover um messianismo patético, isoo gera uma
espiritualidade utilitária. Deus passa a ser apenas um meio, uma força
domesticada. Isso confirma a ilusão luciferiana do Éden: "somos deuses.
Podemos induzir a divindade a agir de acordo com nossos desejos".
Por último, não podemos acreditar
que erros, heresias e muita incoerência só aconteceram no passado. Criticamos
os acontecimentos vergonhosos da Igreja em séculos passados e não aceitamos que
podemos cometer deslizes tão feios quanto aqueles. A falsa noção de que
possuímos uma revelação mais elevada que a de Pedro, Paulo e alguns dos pais
apostólicos pode ser letal. Se a soberba precede a queda, achar que nos
encontramos acima do fracasso já nos faz vulneráveis a ele — quem está em pé,
veja, não caia. Não somos os escolhidos da última hora nem temos uma graça
incomum. O perigo de sermos jogados na outra extremidade da decepção e do
imobilismo é grande, já que ninguém consegue evitar o tropeço. E se não
estivermos preparados para nossos próprios fracassos, nos afogaremos no oceano
da culpa e auto-comiseração. Giannetti nos adverte: "Quando o mar encrespa
e o céu interno fecha, a inflação moral pode virar forte deflação. O estado
depressivo da mente leva um homem a ficar privado daquele modicum de boa vontade,
apreço e respeito por si mesmo que torna a consciência de si aprazível. O
deprimido vive como um pária na sarjeta de sua convivência interna ("Não
há mendigo que eu não inveje só por não ser eu"), e sua mente é capaz de
dar crédito sincero às mais sombrias e dolorosas recriminações e confabulações
íntimas acerca de si." O refluxo de tanto ufanismo pode, no futuro, causar
uma enorme depressão.
O salmista perguntou: "Quem
há que possa discernir as próprias faltas?" (19.12). Também pediu:
"Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração: prova-me e conhece os meus
pensamentos; vê se há em mim algum caminho mau, e guia-me pelo caminho
eterno" (139.23-24). Percebe-se que os mecanismos de auto-engano e da
dissimulação são muito sutis. Portanto, esvaziemo-nos de nossa
auto-suficiência. Busquemos a verdadeira renovação espiritual, promovida pelo
Espírito Santo. Só Ele esquadrinha o coração, prova os pensamentos, e dá a cada
um segundo o seu proceder, segundo o fruto de suas ações.
A igreja evangélica necessita de
uma nova Reforma. Desçamos de qualquer pedestal da arrogância e da
auto-suficiência, e deixemos que a luz perscrutadora do Espírito penetre em
todas as câmaras de nosso viver. Só assim podemos nos imaginar noiva do
Cordeiro, sem ruga e sem mácula.
Soli Deo Gloria.
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